Coisa
difícil e fácil a gente escrever sobre Monteiro Lobato.
A
gente pensa que é fácil porque há um mundo de coisas para dizer sobre a sua
obra, a sua vida, as suas atitudes, mas difícil, por isso mesmo, porque não sabemos
como começar, nunca achamos ter dito o suficiente, e percebemos que nunca
chegaremos mesmo a dizê-lo. Precisamos de mais distância. Ainda nos encontramos
muito ao pé da montanha, não nos afastamos o necessário para perspectivá-la.
E,
no entanto, Monteiro Lobato é tão simples, tão humano, tão accessível, tão
sincero, que conquistou as crianças do Brasil, todas as crianças, de todas as
idades. Eu não o conheço pessoalmente, mas acredito na sua sinceridade, porque
seria impossível conceber que um escritor que fez da verdade o substrato de todas
as suas páginas, das mais ingênuas às mais sérias, tivesse coragem para se
enganar a si próprio. O estilo é o homem,
e no caso de Monteiro Lobato, basta lê-lo, para se descortinar o homem
"por dentro" sem "véus diáfanos", sem tibiezas, sem
distorcismos.
Ainda
agora, relendo muitas de suas páginas, e entrando em contato com outras
inéditas, todas enfeixadas pela Cia. Editora Nacional num magnífico volume
comemorativo do 25º aniversário de sua estreia como escritor, me deixo aqui, de
cócoras, a matutar na sua extraordinária personalidade. Lobato é complexo e simples.
Talvez o complexo nele seja a vida, seja a variedade de assuntos que atraem a
sua atenção, o mundo mesmo, "o vasto mundo" de Carlos Drummond de
Andrade. O simples é ele mesmo, sua maneira de contar, de dizer, de transmitir
o complexo. No fim, devo estar meio paradoxal, mas vá lá. Lobato também o é. Nele,
há um pouco de tudo, na multiplicidade de suas atividades intelectuais. Mas, é
sempre ele mesmo, quer se trate de uma acanhada tertúlia sobre ortografia e
acentuação, quer de um problema vital para o Brasil, como a questão do
petróleo. É a rês extraviada, singularmente extraviada pelo caminho certo,
evitando a manada que vai passivamente, a toque de flauta e sob a estocada do
espigão, para os currais. Mas bem poucos como Lobato podem tomar tais atitudes,
porque ele realmente tem em si as credenciais de cultura, inteligência e
coragem moral, necessárias para remar contra a corrente. Caberia aqui, aquele
pensamento de Romain Roland: "Pensar sinceramente, mesmo que seja contra
todos, ainda é pensar por todos".
Estes
aspectos da personalidade de Monteiro Lobato, podemos observar neste volume:
"Urupês, outros contos e coisas", onde, sob sua supervisão, se
encontram selecionadas as suas páginas mais decisivas, a respeito dos aspectos
e problemas que mereceram sua análise e estudo. Por estes dias de muita sombra
e subserviência, quando um grande número de intelectuais preferiu ao silêncio
digno, ou ao menos, a entrelinha imprevidente e audaciosa, a demagogia fácil e
remunerada do sabujismo, confesso que minha admiração por Lobato, se não
cresceu, ganhou em intensidade. Ele é daqueles escritores que ainda se dão ao
luxo de usar uma coluna vertebral, e dá gosto a gente ouvir esse idioma
estranho de independência, espécie de "sermo
eruditus" abolido diante da invasão barbárica. Há na prosa do autor de Mr. Slang e o Brasil, quando ela vai além
do conto, da obra de ficção, e focaliza assuntos sérios, no campo econômico e
social, um ar irreverente e superior de espadachim da pena. E se esse
intemerato d'Artagnan caboclo há de irritar os que
não ousam terçar armas com ele aberta e lealmente, em campo neutro, a nós
moços, só entusiasmo pode causar. Afinal de contas, Lobato é uma tábua de
salvação, à qual se apegam os que não querem soçobrar definitivamente. Dia
chegará em que todos avistaremos terra, e pisaremos terra, e seremos novamente
livres.
***
O
que agrada sobretudo em Monteiro Lobato é a sua dupla independência de estilo e
caráter, realizando uma obra limpa, objetiva, realista, mas nem por isso isenta
daquele sopro mágico de beleza, que é o que caracteriza a verdade que também é
arte. De um modo geral, no entanto, o "pai" do Jeca Tatu não é homem
de palavras, mas de assuntos. Dele não se dirá o que se disse de certo clássico
português, "que era um estilo à procura de assunto". Em Lobato, há
uma coincidência feliz, mas foi sem dúvida o "assunto" que encontrou
um estilo, e que estilo! Foi assim que, de certa feita, precisando defender
seus interesses que eram os interesses de toda uma coletividade,
"virou" escritor da noite para o dia.
O
fato é que nele o "assunto" dominou sempre a palavra, porque Lobato é
destes raros escritores que só escrevem quando realmente têm alguma mensagem a
transmitir. A palavra nele, sempre traduz alguma coisa. Nunca sobra, enfeita, é
luxo de estilo. Ao contrário, é um instrumento da ideia, da criação. Explica-se
por isso o horror que ele tem ao preciosismo, ao academismo, ao rebuscado, numa
palavra: ao verbalismo "snob" metido a literatura. Curioso é que este
admirável "provinciano" do mundo, ao contrário dos outros
provincianos, os de província, e por isso, mesmo, nunca fez questão de esconder
a origem. Geralmente o literato provinciano chega à cidade grande envergonhado
da sua "espécie", com um artiguinho pronto sobre um acadêmico qualquer.
Fala baixo, feito seminarista, abaixa as pálpebras, feito menina de colégio de
freira, é todo humildade diante dos "nomes" da capital. Em pouco,
porém, se enverniza de "civilização", faz questão de perder os ares
de "imigrante", cobre as canelas, sacode o pó das sandálias, perfura
uma rodinha, faz os seus artigos encomiásticos, e se tem talento realmente,
dentro de algumas semanas "corta" todos os colegas, faz blague sobre
os acadêmicos seus amigos, e sabe sorrir ironicamente à Eça. .. Oh! o sorriso à
Eça dos intelectuais que se naturalizaram citadinos...
Mas,
que tem isso a ver com o admirável observador de "Problema vital"?
Nada evidentemente. O regional em Lobato é acidente. Nele, na realidade, tudo é
universal. Não conheço nacionalismo mais "do mundo" que o deste
caboclo das serras da Mantiqueira, que um dia, casualmente, "forçado pelas
circunstâncias" encontrou o seu verdadeiro "talweg". (Terá
realmente encontrado?) O nacionalismo de Lobato não tem parentesco nenhum com
qualquer nacionalismo pigmentado ou reacionário. É realista, objetivo. Não vê o
Brasil através das lentes do romantismo, muito menos das lentes de aumento do
"ufanismo" que tocou às raias do absurdo e do ridículo. O seu
primeiro artigo até sobre o nosso "Jeca", revolucionou os arraiais "nacionalistas".
Foi preciso que Rui, no seu célebre discurso sobre "A questão social e
política no Brasil", endeusasse a figura do Jeca Tatu desenhado por
Monteiro Lobato, para que os brasileiros reconhecessem que o Brasil estava de
cócoras. Lobato amou sempre na sua terra, a terra dos homens; nos homens de sua
terra, o homem, animal às vezes racional, com todos os seus defeitos e
qualidades. Como bem acentua Artur Neves, no prefácio que dedicou a esta
"antologia" lobateana, referindo-se ao aparecimento de Urupês:
"Daí
por diante a obra de Monteiro Lobato, em todos os setores, vai ser uma obra de
denúncia implacável e sistemática: denúncia da falseação política; denúncia do
estado de lazeira das populações do interior ("Problema vital"),
denúncia da "ignorância e da patifaria do governo" ("Mr. Slang e
o Brasil"), denúncia da sabotagem das riquezas feita pelo oficialismo a
serviço do imperialismo ("O Escândalo do Petróleo"), denúncia dos esnobismos
e da macaquice do que hoje chamamos granfinismo ("Ideias de Jeca Tatu"),
denúncia de todas as "estilizações" das fraquezas nacionais e de todas
as racionalizações dos nossos defeitos. "Na Antevéspera", "América",
prefácios e inúmeros artigos em jornais e revistas.
A
mentira, o enfeite sistemático das nossas coisas, desesperava-o. Mas Lobato
sabia fazer Justiça. Depois que verificou que a causa da "ruindade"
do nosso Jeca, era mais a doença do que outra coisa, não teve pejo de pedir-lhe
perdão."
O
fato é que, no artigo, no conto, em livros; poético, satírico, irônico, sério ou
brincalhão, piedoso ou irreverente, Lobato nunca traiu a verdade, e nunca se
envergonhou de reconhecer um caminho errado, para procurá-la num outro melhor.
É dessas inteligências que não cabem em definições, nem podem ser catalogadas,
e isto pela simples razão de que possui medidas e dimensões próprias. Não
pertence a escolas, igrejinhas ou grupos. É um franco atirador das letras,
guerrilheiro do ideal. No máximo, podem-nos acorrer ao pensamento outros
grandes escritores, quando certas tangências espirituais nos levam a essas
remotas aproximações. Às vezes, na sua descrição, o paisagista nos leva a pensar
em Euclides da Cunha, nos seus melhores trechos, muito embora haja na
realidade, sob o ponto de vista estilístico, um abismo entre ambos. Outras
vezes nos lembramos de Machado de Assis. Já pensei em Chaplin, em Carlitos — o
cômico-trágico, lendo alguns dos seus contos, ou aquelas suas páginas de
flagrantes da vida. Se abro seus livros de criança, meus olhos se enchem de
desenhos coloridos à Walt Disney.
Na
realidade, não há influência em Lobato. Posso pensar em Bernard Shaw ou La
Fontaine, mas Lobato é sempre Lobato, e sua obra é singular e característica
nas letras brasileiras. E com toda a sua irreverência e adorável simplicidade,
é um puro "clássico" da melhor literatura moderna do Brasil.
---
J. G. DE ARAÚJO JORGE
J. G. DE ARAÚJO JORGE
Revista "Letras Brasileiras", março de 1944.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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