Repercute, ainda, em todas as
camadas sociais a morte de Catulo da Paixão Cearense, o grande bardo sertanejo.
As manifestações de reverência à memória do cantor do "Luar do
Sertão" continuam a se fazer sentir. Justo, portanto, que se rememore, em
pinceladas largas, o fim do século XIX e o alvorecer do século dos nossos dias,
quando Catulo, integrando a notável equipe de boêmios, de menestréis que
escreviam os seus poemas de angústia, de amor, de esperança e vida nas noites
trepidantes de boêmia, sentia, como todos da roda alegre, as vestes e as frontes
banhadas pelo orvalho da madrugada.
O Rio de Janeiro, então, com
os seus cafés repletos, povoados de mocidade, com orquestras animadas, refletia
perfeitamente a agitação de uma cidade que se fixava nos alicerces de um grande
futuro. Os últimos dias do século dezenove e os primeiros do século XX
estabeleceram o meridiano que separaria o Rio de Janeiro — cidade antiga, dos
quiosques, das ruas estreitas e pouco ventiladas; para o Rio — cidade moderna,
estuante de iluminação, de largas avenidas, enfim, o Rio — cidade maravilhosa.
E foi nesse período de transição, quando as picaretas do progresso enchiam de
poeira sufocante os gritos dos conservadores epicamente retrógrados, é que Emílio
de Menezes, Olavo Bilac, Patrocínio, Pardal Mallet, Paula Ney, Coelho Neto,
Catulo e outros cantavam os seus poemas maravilhosos, ostentando a púrpura
divina da inteligência cintilante, sob as aclamações dos admiradores que os
cercavam. E quase sempre a madrugada tranquila e sangrenta de luz os vinha
surpreender nas mesas dos cafés transformados em berços da inspiração poética.
Alguns deles mais vividos, outros ainda iniciados na longa carreira das letras
e na fugaz aventura da boêmia, porém todos irmanados num só desejo: viver,
viver boemiamente, construir algo de belo tomando como tema a própria vida que
eles dissipavam ao sabor das noitadas alegres.
***
Enquanto o pequeno grupo
traçava diretrizes para a literatura nacional, enchendo as prateleiras das
livrarias, povoando de anedotas e trocadilhos magníficos a cidade, os centros
do mundanismo, havia, desgraçadamente a se firmar no atraso, a modalidade de
comércio.
A cidade era suja e monótona.
As rodas das vitórias, dos tílburis e dos "troleys" riscavam as lajes
que constituíam o calçamento das ruas. O bondezinho puxado a burros era um
convite ao sono. Nas sinuosas vielas, nas ladeiras imundas, os indolentes e
alcoólatras inveterados estabeleciam as bancas do baralho onde tinham começo e
fim o vício, a delinquência, a honra...
O comércio daquela época...
Com raríssimas exceções, era profundo e paradoxalmente pouco comerciável. Atrás
dos balcões indiferentes à higiene, rapazolas esquálidos, subalimentados, de
mau humor permanente e doentio, corriam de um lado para outro sob o comando
vigilante e inamistoso de patrões suarentos e bem nutridos que aconchegavam ao
peito, com requintes maternais, o peso fraudulento, o amigo maior da sua
prosperidade. Não havia horário certo para o funcionamento do comércio. Altas
horas da noite, sob a luz bruxuleante de lampiões fumarentos, o pobre caixeiro
ainda se desdobrava em energias na arrumação das prateleiras, atendendo
fregueses retardatários.
Naquela época não se admitia o
trabalho feminino no comércio. Mormente no balcão. Devia dedicar-se,
exclusivamente, aos misteres do lar. Esgrimindo as suas agulhas de tricô passava
a carioca a espiar através das vidraças a agitação de uma cidade atrasada e
onde o comércio era o seu melhor reflexo.
Afora as casas de modas das
ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias, nas confeitarias, cafés, livrarias ali também
localizadas, tudo o mais era a verdadeira antítese do que hoje se compreende
por comércio. Aquelas vias públicas e mais os largos de São Francisco e
Carioca, eram os pontos preferidos para o desfile da elegância feminina.
Senhoras e senhoritas, de saias rodadas e leques pomposos, de gigantescos e
complicados chapéus, faziam o "footing" durante a tarde, enchendo o
ar daquelas ruas do aroma inebriante de essências raras. À porta das
confeitarias, dos cafés, ao longo das calçadas os rapazes da época, e também os
senhores de atitudes graves, de cabelos grisalhos e colarinhos
"guilhotinescos", assistiam ao desfile mundano da alta sociedade.
Estava o Rio de Janeiro
vivendo os últimos lances do século dezenove. O calendário desfolhava-se
monotonamente, porém, com o alvorecer do século vinte vinham as esperanças do
progresso, das conquistas da sabedoria humana. Resta uma pergunta. Quem sabe se
não foram nas calçadas das ruas do Ouvidor e Gonçalves Dias que os reformadores
se inspiraram, ou melhor, se imbuíram da necessidade de rasgar novas ruas, de
decretar guerra aos lampiões, ao comércio imundo dos quiosques, etc.?
***
Nos salões de Botafogo, nas
grandes mansões de São Cristóvão e Laranjeiras o piano mantinha o seu
prestígio. Dentro da noite calma os acordes do "minueto", da
"polca" ecoavam. Já nesse período o violão, instrumento considerado
violador dos princípios da boa ética familiar, tangido dos meios da alta
sociedade, era dedilhado nos bailes públicos, nos bares, etc. Foi aí que surgiu
Catulo da Paixão Cearense. Cantando modinhas, rimando com perfeição, trouxe até
o Rio de Janeiro a poesia dos nossos irmãos sertanejos. Seu nome foi se
tornando conhecido e pouco a pouco conseguiu penetrar, com o seu amigo violão,
os umbrais das grandes casas residenciais.
O Rio de Janeiro vive essa
época o momento decisivo da sua evolução. Água em abundância é colocada à
disposição da população. Cientistas incompreendidos traçam os rumos da higiene
da cidade. As picaretas começam a tarefa da demolição das casas anti-higiênicas
e sombrias. Rasgam-se novas avenidas. Os trilhos dos bondes elétricos são assentados.
O asfalto cobre de negro o calçamento de paralelepípedos. Os teatros anunciam
grandes companhias. O "Lírico" recebe a visita dos mais famosos
cantores do mundo. Claudia Muzzio, Caruso, Tita Ruffo e outros arrancam
aclamações frenéticas. As campanhas políticas atingem ao auge do entusiasmo.
Patrocínio eletriza multidões com a arrogância das suas palavras. Rui Barbosa
enche de orgulho a nacionalidade com o fulgor da sua inteligência e com o
fascínio da sua cultura.
Que é isso senão o Rio de
Janeiro, centro irradiador da cultura nacional, de braços abertos para o
progresso, para as maravilhas do conhecimento humano, berço de um país em
marcha para as conquistas universais?
***
Hoje, o, Rio de Janeiro é a
cidade maravilhosa. Suas avenidas bem traçadas, a majestade arquitetônica dos
seus prédios, o rendilhado das suas praias, seus pontos pitorescos arrancam
exclamações embevecidas dos visitantes.
Cultua-se a memória dos seus
líderes do passado, dos construtores da nossa cultura, dos menestréis boêmios
que dissipavam a sua inteligência nas noitadas alegres.
Desapareceram os quiosques, os
bondinhos de burros, os armazéns iluminados pelos candeeiros fumegantes onde os
caixeiros esquálidos sentiam a apavorante aproximação da tuberculose.
O Rio é, atualmente, uma
grande cidade. Que diferente é o seu comércio de hoje daquele do tempo do
"onça!" Tem organização de trabalho, atenção para com o público,
honestidade nas transações. Quem não se embevece, por exemplo, com a ordem e a
atenção das graciosas vendedoras das Lojas
Americanas, que foram, praticamente, as pioneiras do trabalho feminino,
entre nós, proporcionando à mulher vencer as barreiras dos preconceitos sociais e conquistar mesmo, em
vários pontos, a preferência para certos, cargos. Sempre amáveis, prontas a
sugerir e a esclarecer as conveniências da compra da freguesia, são verdadeiras
sentinelas em defesa da boa ordem, do conceito do nosso comércio. Assim como
nas Lojas Americanas, outras casas
também mantém uma equipe de jovens alegres e graciosas para atender o público.
Nas formosas e ricas vitrinas do centro da cidade o transeunte percebe o dedo
mágico e feminino do bom gosto na arrumação, na apresentação da mercadoria
exposta à venda.
Há exceções, sem dúvida, que
são anomalias que o tempo há de corrigir.
***
Catulo, autor do Marrueiro, poema encantador de ternura
cabocla; cantor do Luar do Sertão,
síntese maravilhosa das belezas da nossa terra, foi um grande amigo da cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro. Aqui repousam os seus restos mortais. Por
isso, pelo grande amor que devotou a esta cidade, é que seus filhos cultuarão
através dos tempos a sua memória, a memória do grande bardo sertanejo
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Jornal "A Noite", 19 de julho de 1946.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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