Catulo
da Paixão e os artistas
Artista boêmio, Catulo da Paixão
Cearense tinha milhares de amigos, nos meios musicais, nas rodas teatrais, nos
círculos literários do Brasil. Tendo se ligado a dezenas de compositores, que
escreveram músicas para os seus versos, que pediram a sua colaboração
consagradora e que, com ele, foram pioneiros da indústria do disco no Brasil,
Catulo da Paixão Cearense escreveu duas operetas, "O Marroeiro" (com Ignácio
Raposo), e "Flor de Santidade". Era sócio efetivo da Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais e, sempre que deixava o seu tranquilo subúrbio,
não deixava de ir aos nossos teatros e de visitar os seus amigos que fazem da
ribalta a sua profissão.
Entre as amizades de Catulo, o grande
comediante Procópio Ferreira foi uma das maiores. Procópio chegou a se fazer
retratar, pelo pintor Ismailovitch, num quadro em que Catulo figura, juntamente
com outros dos seus amigos. O volume "Fábulas e alegorias", de
Catulo, dedicado a Procópio Ferreira, só veio à lume, na sua primeira edição,
porque esse festejado ator financiou a publicação do volume, hoje reeditado
pela terceira vez. Procópio, nas suas festas artísticas, sempre prestigiou o
grande poeta sertanejo, interpretando admiravelmente os seus melhores poemas,
entre os quais "O Marroeiro". Quando Procópio estava no Rio, Catulo
estava constantemente em sua companhia. E foi o ilustre ator um dos maiores
entusiastas da "campanha do tostão", empreendida pela “A Noite”, para
o erguimento do busto de Catulo no passeio público.
Procópio Ferreira conta muitos
episódios curiosos a respeito do grande poeta. Um desses episódios se refere à estreia
da comédia "Maria Cachucha", de Joracy Camargo, no Teatro Serrador.
Conta Procópio:
— Estava eu me preparando no meu
camarim quando entrou Catulo com um pequeno embrulho. Queria que eu o guardasse.
E esclareceu: "Tenha muito cuidado. São ovos. Mas fique tranquilo, que eu
não vou assistir à peça..."
Procópio refere também uma passagem das
suas relações com Catulo, a respeito da estreia de sua filha, Bibi Ferreira, no
teatro. Como é sabido, essa estreia se deu na peça de Carlo Goldoni, "La
Locandeira", em que Bibi fazia o papel de Mirandolina. Mas deixemos que o
próprio Procópio conte o episódio.
— Dias depois da estreia de Bibi no
teatro, ele me apareceu. Temendo que eu o reprovasse por não tê-lo visto na
noite da première começou a falar da
porta como uma criança assustada que tem pressa em justificar uma falta.
"Você está danado comigo, já sei.
Mas não me foi possível aparecer. Fiquei muito emocionado. Fiquei com medo que
a menina falhasse. Não gosto de assistir coisas tristes. Mas agora estou
satisfeito. Todos dizem bem da garota. Vou vê-la hoje. Diga-lhe que estou na plateia.
No final Catulo entrou na caixa com os olhos marejados de lágrimas. "Ah! Procópio,
pela primeira vez senti no meu coração uma picada".
Que foi? perguntei-lhe assustado.
"Senti inveja. Inveja de não ser você. Que festa não vai nessa tua alma. A
vida Procópio, é boa. Dá-nos tantas compensações. Devemos amá-la, muito,
muito".
Pediu-me o álbum de Bibi e escreveu
uns versos lindos que, infelizmente não tenho de cor. Lembro-me que terminava
com — aquele verso de uma das estrofes do “Marroeiro” — "o pinto já sai da
casca com a pinta que o galo tem".
Entre as reminiscências de Procópio a
respeito de Catulo há também um episódio a que estão associados esse grande
ator e o autor teatral Joracy Camargo, que aparecem como autênticos
reivindicadores da glória do grande poeta sertanejo. Procópio refere esse caso
interessante nas seguintes palavras:
— Uma noite, depois do espetáculo, eu,
Joracy Camargo, Gastão Pereira da Silva e um outro amigo, poeta e romancista,
cujo nome não interessa citar, dirigíamo-nos para a casa da grande pintora
Maria Margarida, onde passávamos grande parte de nossas noites em palestra com
a notável artista, o mestre Ismalovicth e Morel. Falávamos de poesia. A certa
altura, como um tijolo que cai de súbito na cabeça, o tal amigo, sai-se com
esta: "Não gosto de Catulo. Acho-o um poeta horrível”. Nosso choque foi
tão grande que ficamos um tempo estatelados olhando para ele. "Não me
olhem assim", continuou o tal, “eu sei que vocês são amigos dele, mas em
questão de arte, me parece que a amizade deve ceder ao bom senso." E desenrolou
um novelo de conceitos sobre a arte em geral, e métodos de crítica, derramando
uma erudição velha cheia de frases feitas. Eu, Gastão tão e Joracy,
continuávamos calados. Deixávamos o homenzinho falar. Na casa de Maria
Margarida, Joracy me chamou para um canto e disse-me: "Desconfio que este
malandro não conhece nada de Catulo”. Quando julgares oportuno recita o
"Testamento da Árvore'', mas não digas de quem é. Assim fiz. Depois do chá
que nos ofereceu a pintora, anunciei versos de um poeta nosso. O tal amigo,
tomou logo uma pose catedrática de examinador. Recitei o “Testamento da Árvore”.
Ao terminar, ele ansioso perguntou emocionado: "Quem é esse grande poeta!
Que maravilha! Que imagens! Que espontaneidade!" Joracy respondeu-lhe que
só no fim diríamos o nome. O homenzinho estava nervoso, irrequieto, mexia-se na
cadeira, formigava de ansiedade pelo nome do vate. Continuei a declamação, como
o "Sol e a Lua", "A lagoa", e algumas fábulas. Ao terminar,
Joracy levanta-se e diz solenemente: "Meu caro amigo, nunca mais faça o
que fez hoje. Não arrisque juízos sobre o que não conhece. Os versos que você
acabou de ouvir, são de Catulo da Paixão Cearense". O imprudente amigo
ficou arrasado. Titubeou para se justificar, alegando por fim que conhecia
coisa esparsas, que lhe não davam bem a ideia da grandeza desse poeta
admirável. Aliás, diga-se de passagem que esse cavalheiro, não possui a justa
medida de suas atitudes. Um dia ofereceu-me um livro com uma dedicatória na
qual confessava que devia a mim a realização daquela obra e, tempos depois, entrevistado
por um Jornal do Sul, metia-me a ronca a mais não poder..."
Outra grande amizade de Catulo era a brilhante
e popular artista portuguesa Beatriz Costa, há cerca de dez anos radicada no Brasil.
Nos papéis de Catulo há a cópia de um bilhete por ele dirigido a Beatriz Costa,
deplorando um desencontro havido entre ambos. Catulo havia combinado vê-la, no
teatro, não a encontrando, porém, por se achar enferma a artista. Zangou-se e,
daí, o bilhete. Com toda a zanga, mesmo ameaçando nunca mais procurar a amiga,
Catulo não deixa, entretanto, de frisar mais uma vez a grande estima em que a
tem. É este o interessante bilhete, datado de 1937:
Beatriz:
Fiz
um enorme sacrifício para estar aí, às 3 horas, segundo foi combinado. Vi que,
de fato, estavas doente. Mas senti e senti muito e muito que não me tivesses
telefonado, hoje, de manhã cedo, para o 22-6946, dizendo estares enferma,
justificando a tua ausência, que seria, neste caso, muito natural. Não
desejando mais importunar-te e melindrado com essa falta, que considero grave,
pois confesso que sou de uma sensibilidade doentia, peço-te que não estranhes não
procurar-te mais, O que não impede que te deseje todas as felicidades que um coração
humano pode desejar a outro coração...
Catulo.
Rio,
3/8/37.
Esse bilhete é bem um retrato da alma
de Catulo, da seriedade com que ele encarava os seus compromissos e as suas
amizades. O grande poeta do sertão hão era, entretanto, amigo apenas dos
artistas vitoriosos, prósperos, felizes, na sua profissão. Era amigo também dos
humildes, dos modestos, dos obscuros. Benjamin de Oliveira, o velho palhaço
negro, que foi uma figura popularíssima da vida circense brasileira, era um
desses amigos que Catulo cultivava.
Quando Benjamin de Oliveira completou meio
século de atividade no picadeiro, Catulo da Paixão Cearense lamentou não poder
comparecer, por motivo de saúde, à festa do velho palhaço, em que gostaria de tomar
parte, com o seu violão. Mas, impedido, Catulo não deixou de se associar ao
acontecimento, enviando a Benjamin de Oliveira esta vibrante saudação:
Benjamin:
Um
imprevisto rouba-me a satisfação de está contigo na tua festa de jubileu, em que
se vê como um artista popular pode tocar o coração dos intelectuais, que vão
recordar nesta noite as noites que passaram na mocidade, aplaudindo as tuas
pilhérias, num picadeiro de circo, — o palco dos teus triunfes de outrora.
Hoje,
que perfazes meio século de vida circense, recebendo tantas palmas de amigos e
apreciadores, envio-te, espiritualmente, um abraço, abraço de saudades, pois
que a tua juventude é irmã gêmea da minha juventude de boêmio.
És
feliz, porque estou certo de que, quando terminares a tua última representação
nos circos da terra, irás logo para o céu, onde levantarás um circo definitivo,
para ficares sendo eternamente o Truão de Deus e o Palhaço dos Anjos!
E
quando Deus te perguntar: — Benjamin, que fizeste de bom, de grande e nobre entre
os teus compatrícios, tu lhe responderás, dançando uma chula e cantando uma toada
brasileira.
2
de agosto de 1942.
Catulo
Cearense.
Era assim Catulo... Uma alma generosa.
Um artista e um amigo dos artistas...
"UM
BOÊMIO NO CÉU"
Por: PROCÓPIO
FERREIRA
A propósito de "Um boêmio no céu",
Procópio escreveu as seguintes linhas que, ao lado de outras impressões,
figuram na introdução dessa obra de Catulo:
“Uma alma que pede entrada no céu”,
última criação do grande Catulo, é, a meu ver, uma notável peça teatral.
Reconheço-lhe essa qualidade por possuir as virtudes máximas do teatro: —
carpintaria e simplicidade de expressão. Além disso, o tema escolhido pelo
poeta enquadra-se dentro do moderno espírito da dramaturgia, que é humanizar os
deuses ou divinizar os homens. Nenhum assunto, mais importante do que este, preocupa
tanto o pensamento do mundo atual. Diante de tanta dor neste "vale de lágrimas",
o homem espera ansioso a resposta que há de vir do infinito ou de dentro de si
mesmo. Afinal, os olhos divinos ainda estão voltados para nós, ou os Santos já
se esqueceram da terra? No encontro do homem com os Santos, Catulo mostra-nos
claramente a diferença entre a terra e o céu, dando ao nosso semelhante a
glória de ser tão grande quanto eles. O animal humano, evoluindo dentro do
sofrimento, apresenta razões indestrutíveis perante a divindade. Os Santos
espantam-se a princípio; depois compreendem; e terminam por admirar esse
mesquinho ser que anda cá por baixo, como um micróbio. Resta agora saber se os
Santos se humanizarão. O homem, no poema, fala-lhes de maneira tão convincente
que é de esperar este fenômeno. Eis a grande virtude da obra — o embaraço da
divindade ante o raciocínio do homem. Esta é a ideia. Agora, a técnica. Catulo
fê-la em verso. Porém soube fazer seus personagens falarem a sua própria linguagem.
O humano usa a linguagem desalinhavada, por vezes irreverente, do habitante do
nosso planeta. Os Santos utilizaram a linguagem serena, bela, perfeita, como
deve ser a linguagem do céu. Por vezes parece chocarem certas expressões do
homem. Pensando, porém, na sua condição, concluímos pela lógica de tais
vocábulos. Há ainda uma virtude a assinalar. O poeta nunca é desrespeitoso. Não
há ideia de sátira no seu poema. Esta poderá nascer no espírito do espectador,
conforme o ponto de vista em que ele se coloque. As reações de riso que o poema
possa provocar, serão de inteira responsabilidade de quem o ouve. O poeta é sincero.
O personagem o é também na sua argumentação. Os Santos são complacentes. Todos
estão no seu lugar. E a humanidade, que anda desde o princípio do mundo a procura
da verdade, dirá por fim se "a alma que pede entrada no céu” deverá ficar
lá, ou se os deuses deverão descer à terra para, de hoje em diante, se sentirem
melhor perante os homens''.
---
Jornal
"A Noite", 19 de julho de 1946.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes
(2019)
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