Além de poeta,
historiador, romancista, polemista e filósofo, foi soldado.
E se, como tal, não
atingiu culminâncias, obteve no entanto um lugar de bastante evidência, de
destaque muito honroso. Se não deslumbra pelos feitos d'armas, como deslumbra
pelos trabalhos literários e científicos, onde o talento corre em torrente,
merece todavia registro a sua briosa conduta nos campos de batalha, conduta de
que há conhecimento por valiosos documentos oficiais e particulares. Se os
serviços à pátria, como soldado, não constituem o bloco basilar da sua figura
épica, nem por isso deixam de ser bom material de construção, cooperando para a
estrutura moral do gigante, porque — na acepção translata do termo, Alexandre Herculano era um gigante —
como lhe chamou o distinto poeta Antônio Xavier Rodrigues Cordeiro, que no seu
"Almanaque Luso-Brasileiro" para 1879 publicou uma das melhores
biografias de Alexandre Herculano.
Escolhemos, para
homenagear Herculano, a apresentação da sua biografia militar. Não é difícil a
tarefa, mas é exatamente essa circunstância — para nós ponderosa — a
determinante da escolha. É modesto o labor, bem sabemos, mas está em harmonia
com as nossas forças. Nemo dat quod non
habet, nec plusquam habet. Falece-nos fôlego para empreendimento mais
ousado. Falta-nos competência para enfileirar ao lado dos Plutarcos do colosso,
e examiná-lo sob os aspectos mais transcendentes da sua genial individualidade.
Mas sustemos as divagações e entremos no assunto, que talvez não desperte
interesse, mas com certeza será visto com agrado, ou, pelo menos, com
benevolência.
***
Recorramos aos
documentos.
Abra-se o registro do
Batalhão de Voluntários da Rainha, 1º livro, 1828 a 1833, como indica a
etiqueta lombar. À página 122 (no registro da 4ª Companhia) lê-se:
"Número 99.
Soldado Alexandre Herculano de Carvalho. Passou a este Batalhão em 26 de março
de 1882 do Extinto Batalhão vindo de França, socorrido de etape até 23 e de pão
até 26 dito, e principiou a ser abonado de pret desde 19 do mesmo por ordem de
sua excelência o Sr. Marechal de campo conde de Vila Flor e passou a ser
abonado do dia 3 de fevereiro por ordem de S. M. Imperial de 23 de maio
dito."
Desta nota biográfica
infere-se que Herculano não encetou a carreira militar no Batalhão de Voluntários
da Rainha, como parece depreender-se do texto da biografia acima citada.
Pertenceu antes ao "Extinto Batalhão vindo de França". E, a título de
esclarecimento, diremos, antes de mais nada, que Alexandre Herculano,
comprometido na revolta do 4 de infantaria contra o governo (noite de 21 para
22 de agosto de 1831) teve de embarcar para Inglaterra, passando depois à
França, sendo um dos emigrados liberais do depósito de Rennes, seguindo dali,
em fevereiro de 1832, para Belle Isle, donde embarcou para a Ilha Terceira; e
que o Batalhão de Voluntários da Rainha viera, em duas frações, de Plymouth
para a mesma ilha em janeiro e fevereiro de 1829.
Continuemos as
transcrições.
Abra-se agora o
Registro Novo de 1 de outubro de 1833 até 1837. É já chamado Regimento de
Voluntários da Rainha. À página 22 (no registro da 3ª Companhia) lê-se:
"Nº 35. Soldado
Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo. — Filiação, Teodoro Candoro Cândido
de Araújo. — Naturalidade, Lisboa. — Anos de idade, 22. — Polegadas de altura,
60. — Assentamento de praça e juramento, 26 de março de 1832. — Sinais: cabelo,
castanho; olhos, azuis. — Estado, solteiro. — Ocupação, bibliotecário. —
Casualidades: baixa, 22 de agosto de 1884. — Observações: Era nº 99. Foi escuso
do serviço por ordem de Sua Majestade Imperial, o Duque de Bragança, comandante
em chefe do exército, comunicada em ofício de 3 de agosto de 1834, do Barão do
Pico do Celeiro, Brigadeiro geral e governador militar da Província do Douro;
sendo empregado na Biblioteca desta cidade deixou de ser abonado dos seus
vencimentos de pret, pão e etape desde o 1º de maio de 1833. Ficou-lhe em
dívida o mês de abril segundo as determinações de Sua Majestade Imperial, do
que se lhe passou título na quantia de 3.000 réis. Assinado: — J. J. E.
Mosqueira, capitão de Voluntários da Rainha.
Vamos terminar com
chave de ouro as nossas transcrições, recorrendo agora à excelente biografia por
Xavier Cordeiro.
Depois de dizer que o
seu biografado entrou nos reconhecimentos de Braga e Valongo, ação de Ponte
Ferreira, expedição a Villa do Conde e em várias sortidas e tiroteios nas
linhas de defesa do Porto, Cordeiro apresenta-nos atestados dos serviços
militares de Herculano, um passado pelo seu capitão Esteves Mosqueira, outro
pelo capitão Joaquim Antônio Nunes. Atesta aquele que enquanto Herculano serviu
na sua companhia "teve sempre uma conduta militar irrepreensível e digna
do maior elogio, granjeando a devida consideração de todos os seus companheiros
d'armas pelo distinto e singular comportamento com que se houve em todas as
ocasiões de fogo, realçando pela sua bravura e denodado valor entre os
demais."
Atesta o capitão
Nunes (como subalterno que fora da 1ª companhia) que, embora dispensado de todo
o serviço "não houve um só fogo nas linhas de defesa em que
espontaneamente se não unisse à 1ª companhia, batendo-se com o maior sangue
frio, e chamando os seus irmãos à glória, porque foi sempre um dos primeiros a
avançar contra o inimigo."
Honrosos atentados,
sem dúvida, evidenciando à saciedade ter Herculano merecido a gloriosa
antonomásia de "bravo do Mindelo", para alguns meramente decorativa.
Honrosos atestados,
sem dúvida, demonstrando exuberantemente que até como soldado ele bem sérvio a
pátria.
***
Veneradores tão
entusiastas, quanto obscuros, do extraordinário talento de Alexandre Herculano,
curvamo-nos reverentes perante a sua memória, justamente nimbada pelo halo
brilhante da admiração geral.
---
CUNHA BRANDÃO
Boletim
da Real Associação dos Arqueólogos Portugueses (1910)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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