Alexandre
Herculano e a Torre do Tombo
Não sei ao certo qual
a vez primeira era que o nosso grande historiador subiria as escadas do Arquivo
Nacional, então instalado na parte do edifício de São Bento fronteira á calçada
da Estrela. Não sei, nem tão pouco a impressão, por ventura de respeito e
veneração, que ele havia de sentir, ao pisar aqueles gelados corredores
beneditinos e as celas onde se albergavam monumentos multiplamente seculares!
Quem nos diz se o aluno dos padres de Saint Philip Neri, no Hospício das
Necessidades, não faria quotidianamente caminho para ali, ao sair de sua casa
no pátio do Gil, à Rua de São Bento?! E quem nos diz também se a pouco e pouco
o amor do passado, surgindo no seu espírito, radicando-se nele, e desabrochando
ao fim nos ótimos frutos, por demais conhecidos, não lhe havia de espicaçar a
curiosidade de conhecer o conteúdo da tão falada Torre do Tombo?!
Quanto sabemos ao
certo é que, com vinte anos de idade, se matriculou na aula de Diplomática,
então regida na Torre do Tombo pelo lente substituto, Francisco Ribeiro
Dosguimarães. Da aplicação e talento do aluno hão de falar os seus trabalhos
históricos.
Tomando parte ativa
nas lutas políticas da época, e obrigado a expatriar-se, vemo-lo em Rennes
dedicado aos seus estudos prediletos; vemo-lo ocupar de 1833 a 1836 um lugar na
Biblioteca do Porto e vemo-lo finalmente em 1839, escolhido por el-rei D.
Fernando para seu bibliotecário e pouco depois encarregado de dirigir a valiosa
biblioteca da Ajuda.
Poderá alguém
contestar de boa fé que nessa peregrinação entre livros e manuscritos lhe não
servissem de muito as luzes adquiridas na Torre do Tombo?
Mas eis Herculano de
regresso à capital e agora com a sua situação definida, com a sua carreira
direitamente traçada. Ouçamo-lo pois: "Fora a este (D. Fernando), escreve
ele no prefácio da terceira edição da História
de Portugal, que eu devera uma situação isenta de pesados encargos, a qual
me tornara possível dedicar a maior e melhor parte do tempo ao duro e longo
lavor que hoje exige a composição da história". Com efeito, se a escolha
não podia ser mais acertada para a Biblioteca da Ajuda, também o deixava de
pulso livre dar largas aos seus voos de condor, correr à desfilada pelo passado
qual ardente visionário, por esse passado que ele tentaria erguer, "como
Lázaro, do pó sepulcral dos arquivos".
Foi então — nos
primeiros anos da nova profissão — que Herculano concebeu o plano gigantesco da
História de Portugal. Diz-no-lo
expressamente no já citado prefácio da terceira edição.
Conhecedor dos
trabalhos históricos dos cronistas, da embusteira Monarquia Lusitana, dos trabalhos da Academia Real da História — dessa infinidade de Memórias, legadas pelo século XVIII, tão
nitidamente impressas quão falhas de crítica — Herculano tinha igualmente
estudado a obra um pouco demolidora, exageradamente crítica talvez da
autenticidade das fontes, de que era autor João Pedro Ribeiro: as Dissertações cronológicas e críticas.
Esse foi o seu
precursor; todavia, para quem comparar Ribeiro ao milhafre, de vista aguda sim,
mas de horizontes estreitos, Herculano é a águia, pairando alto e abrangendo no
seu olhar dominador vasto e extenso panorama. Ribeiro viu muito, viu por vezes
bem; viu no entanto só um aspecto dos documentos. Herculano, com o seu gênio,
estudou-os todos; aproveitou bastante das Dissertações,
mas pôde ir incomparavelmente mais adiante.
Era oficial maior da
Torre do Tombo, no tempo em que Herculano a começou assiduamente a frequentar,
José Manuel Severo Aureliano Basto. Guarda-mor seria Vieira de Castro ou o
visconde de Santarém, ausente em Paris. Em qualquer das hipóteses seria com o
oficial maior que Herculano se entenderia, pois que a frequência do Arquivo não
era nesse tempo permitida ao público, e o seu nome deveria figurar na tabeliã
junto do relógio, a fim de o porteiro ser sabedor que lhe não era vedada a
entrada nas casas dos armários no interior da Casa da Coroa. Nessa mesma
tabeliã figurara alguns anos antes o nome de João Pedro Ribeiro.
Isto, se se
cumprissem as disposições regulamentares, porque tamanhas foram as facilidades
com que Herculano começou as suas investigações históricas, que é ele mesmo a
declarar-nos não ter tido para isso autorização oficial!
Quem tenha alguma vez
tentado orientar-se no meandro labiríntico, que é a Torre do Tombo, avaliará a priori se Herculano precisaria ou não
do auxílio e da boa vontade do oficial maior Severo Basto. Possuía na verdade
conhecimentos paleográficos adquiridos no Arquivo, mas não era natural conhecer
as coleções que interessavam ao seu estudo. Por isso, sabedor de quais elas
eram, seguir-se-ia imediatamente o percorrer os índices, elaborados umas
dezenas de anos antes, no tempo em que era guarda-mor o conhecido Manuel da
Maia.
E assim havia o
mestre de percorrer, bem-dizendo certamente esse trabalho, os índices das
Chancelarias dos primeiros reinados, os índices das gavetas e os índices das
Bulas. Isto para a sua História de
Portugal, porque para a História da
origem da Inquisição grande auxílio lhe haviam de ter prestado os índices
do Corpo Cronológico e da Coleção de São Vicente, este último não organizado na
Torre do Tombo.
Consciencioso como
era, não admira que Herculano se não contentasse com as indicações dos índices
e percorresse a um e um, nas manhãs de segundas e quintas-feiras, esses
pergaminhos amarelecidos pelo tempo e que indiferentes tinham visto perpassar
gerações sobre gerações, como indiferentes tinham vindo do castelo de São Jorge
para o edifício de São Bento.
Consultado sobre
questões íntimas do Arquivo, como aconteceu em 1843, por ocasião dum conflito
com José Feliciano de Castilho, minuciosamente narrado no nosso opúsculo sobre O Visconde de Santarém como Guarda-mor da
Torre do Tombo, Herculano manteve tão boas relações com Severo Basto que,
aparecendo o primeiro volume da História
de Portugal, acompanhou a sua oferta da seguinte carta inédita e
desconhecida:
"Ilustríssimo
amigo e senhor. — Não me sendo possível oferecer um exemplar do primeiro volume
da História de Portugal a cada um dos
meus amigos desse Arquivo, ofereço um a vossa senhoria, certo de que lhe
facultará o uso dele, se julgarem que vale a pena de se ocuparem com isso, do
que eu próprio não tenho muita certeza. — Sou de vossa senhoria, amigo e companheiro
obrigadíssmo. — A. Herculano)."
Quer-se prova mais
cabal da consideração ligada pelo mestre ao funcionalismo superior da Torre do
Tombo, e, em especial, ao seu ilustre oficial maior?
Aí vai outra bem
clara e terminante:
"Ilustríssimo
senhor. — Fiado na bondade de vossa senhoria, que a circunstância de ter
aturado por tanto tempo o José de Hamburgo, tornou proverbial, e demonstrou
inesgotável, tomo a liberdade de lhe pedir queira mandar pôr sobre o bofete em
que costuma trabalhar no Arquivo o Sr. Visconde de Juromenha, esse cartapácio
velho que eu lhe prometi, e que não mando a sua casa porque me não lembra o
número. Também rogo me haja de mandar pôr lá para um canto esse rolo de papel,
que vem a ser uns quadros sinóticos, em que pretendo extratar os forais, o que,
se me for possível chegar à Torre, e vossa senhoria me facultar licença,
começarei hoje mesmo ou na próxima quinta-feira. — De vossa senhoria, amigo
venerador e companheiro. — A. Herculano".
É nos vedado saber em
que época esta carta foi escrita, pois é vulgar as cartas do grande historiador
não serem datadas. No entanto, como fica bem patente, a sua gratidão ao
oficial-maior da Torre do Tombo, o reconhecimento da sua bondade e dos favores
recebidos!
Todavia, prova ainda
bem mais frisante havia de prestar do desvelo que lhe merecia o aumento das
coleções do Arquivo Nacional. Foi quando, em espinhosa peregrinação oficial, o
Mestre percorreu, como comissário da Academia, nos anos de 1853 e 1854, as
Beiras e o Minho, estudando os cartórios das corporações eclesiásticas e
promovendo o seu recolhimento à Torre do Tombo.
É desse tempo a
entrada no Arquivo do célebre códice iluminado do século XII, Apocalipse de Lorvão, que as freiras
daquele convento lhe ofertaram.
Não contente com
isso, por conta da Academia Real das Ciências, começou publicando os documentos
históricos desde o século VIII em diante, e ainda nessa obra é o seu braço
direito um funcionário do Arquivo, elevado depois a diretor, o Sr. José Basto.
O seu maior elogio está nas palavras seguintes:
"Todas as cópias
(para esse trabalho), escreveu o Mestre, foram tiradas com o maior esmero e
quase todas se acham já escrupulosamente conferidas com os originais".
Uma nuvem bem negra
veio, porém, empanar a cordialidade de relações de Herculano com a Torre do
Tombo. Em 1856 nomearam guarda-mor Costa de Macedo, seu inimigo declarado.
Herculano deixou de poder frequentar o Arquivo e tamanho prejuízo lhe causava
tal fato que chegou a escrever ter cessado para ele a carreira de historiador...
"...Esse homem,
escrevia ele em carta à Academia... foi nomeado guarda-mor da Torre do Tombo,
cargo importante, porque pressupõe, não só elevados dotes literários, mas
também inconcussa probidade... Honrado com a confiança do supremo poder,
vingado do desar que recebera, o sucessor de Gomes Eanes de Azurara, de Rui de
Pina, de Damião de Góes, de João Pinto Ribeiro, de José de Seabra, de D.
Francisco de São Luís, atirou à Academia com os seus diplomas de secretário e
de sócio, etc."
Felizmente não durou
muito tempo tão estranha situação, porque, em outubro de 1857, foi Costa de
Macedo aposentado. No Código Civil é ainda Herculano quem introduz o artigo
2.497 de tanto interesse para o Arquivo Nacional.
Quem hoje percorre na
Torre do Tombo o Indiculo, o Livro Preto da Sé de Coimbra, o Obituário e o Livro de Noa, de Santa Cruz, o Livro
dos Mestrados, o Livro das leis e
posturas, o Livro dos bens de D. João
de Portel, o Livro dos Copos e o Tombo da comarca da Beira, códices de
que Herculano lançou mão para a sua História
de Portugal; quem percorre, dizemos, as folhas de pergaminho desses
medievos cronicons, certamente poderá
neles adivinhar, ainda agora, vestígios dos dedos do Mestre, estudando paciente
e laboriosamente aqueles caracteres paleográficos.
E que o seu espírito
paira ali como se fosse um nume protetor. É que a sua alma se identificou tanto
com os documentos que nos parece senti-la ainda hoje vibrar, qual vigilante
sentinela.
Por isso, na terrível
crise social que atravessamos, em que são relegados para um triste plano
secundário os trabalhos literários da nossa terra, Mestre, é á tua sombra
austera que nos havemos de acoitar nos momentos de desânimo, como outrora te
acoitaste desalentado sob os robles frondejantes do teu lindo Val de Lobos.
---
ANTÔNIO BAIÃO
"Homenagem ao Mestre" (1910)
"Homenagem ao Mestre" (1910)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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