Alexandre
Herculano e o catolicismo
Nas questões de literatura e arte diz
Teófilo Braga que as primeiras impressões do espírito de Herculano o tornaram
um padre por dentro. Por que motivo o distinto escritor não deu este epíteto a
tantos outros portugueses ilustres que não só foram católicos mas nunca lutaram
com os padres, nunca ousaram combater energicamente a reação ultramontana e o
jesuitismo, nunca se preocuparam com os progressos que a Companhia de Jesus tem
feito em Portugal? Que um homem rude, sem instrução, tendo apenas algumas
ideias superficiais ministradas pelo jornalismo político, chegue a confundir a
religião com o jesuitismo, isso não me admira; o que me causa verdadeiro
assombro, o que me impressiona muito desagradavelmente é que Teófilo Braga,
cujo talento é assaz notável, procure deprimir Herculano dando-lhe o epíteto de
padre. O grande lírico João de Deus, vivendo numa época menos religiosa, foi um
católico fervoroso que nunca desagradou ao clero como Alexandre Herculano; mas
quem se lembrou de dar ao espontâneo, singelo e mavioso poeta do Campo de flores o epíteto de padre?
Almeida Garrett, o glorioso reformador do teatro nacional, escreveu um
elegantíssimo tratado de educação, onde não se revela menos católico do que
Herculano; todavia qual foi o crítico que procurou deprimi-lo chamando-lhe
padre? Não me consta que alguém desse este epíteto nem a Rebelo da Silva por
ter sido o autor dos Fastos da Igreja
nem a Camilo Castelo Branco por haver escrito uma obra religiosíssima, a Divindade de Jesus. A seguirmos a
crítica de Teófilo Braga, não só poderíamos afirmar que o mosteiro dos
Jerônimos ficaria em breve repleto de padres se quiséssemos continuar a
trasladar para aquele suntuoso monumento os restos mortais dos nossos grandes
homens, mas também daríamos o referido epíteto à maior parte desses gênios
prodigiosos cujos descobrimentos científicos contribuíram tão poderosamente
para o progresso da humanidade como Kepler, Newton, Leibnitz, Pascal,
Descartes, Claude Bernard, Pasteur e tantos outros, cujo espírito eminentemente
religioso é bem notório.
Herculano era da máxima tolerância
para com aqueles cujas opiniões divergiam das suas; não admitia restrições para
a livre manifestação do pensamento. Foi um católico liberal como o célebre
historiador e teólogo alemão Doellinger, que fazia dele o mais alto conceito e
o admirava entusiasticamente, consultando-o sobre muitos pontos históricos e
chegando a ocupar-se, nos Anais
históricos de Munique, da vida e obras do nosso eminente prosador, a quem
fez os maiores elogios. Na questão religiosa, Doellinger, o grande historiador
da igreja, um dos mais profundos teólogos da Alemanha, desempenhou um papel
semelhante ao de Herculano; foi o denodado campeão do partido dos velhos católicos
alemães, que ousaram arrostar as fúrias de Roma; como escritor e professor de
teologia, exerceu um grande prestígio no seu país, combatendo energicamente as
novas modificações feitas no cristianismo e procurando assim desviar a mocidade
católica alemã da influência nefasta dos jesuítas; por isso era mal visto em
Roma, era detestado pelo partido jesuítico, pelos sectários do neocatolicismo.
Herculano foi o adversário mais
temível que os jesuítas tiveram em Portugal; era dentro do cristianismo que ele
os combatia com o máximo vigor; os seus vastos e profundos conhecimentos de
teologia e de história eclesiástica foram as armas mais poderosas por ele
manejadas para demonstrar os erros dos ultramontanos e a grande diferença que
existia entre as doutrinas jesuíticas e as que haviam professado os cristãos
dos primeiros séculos; era expondo lucidamente as opiniões dos padres da Igreja
e dos antigos papas que ele dava os golpes mais profundos na Companhia de Jesus
e no partido ultramontano. Na verdade os jesuítas têm-se afastado tanto da
igreja primitiva que não é mister sair do cristianismo para combatê-los; é com
o Evangelho na mão que mais solidamente se podem refutar os seus erros
gravíssimos. O Manifesto da Associação popular promotora da educação do sexo feminino,
redigido por Herculano, o qual se acha inserto no segundo volume dos Opúsculos, é a obra mais eloquente e
profunda que em Portugal se tem escrito contra a educação jesuítica; é um livro
que deve ser lido por todos aqueles que ainda se preocupam com o futuro da
nossa pátria e prezam a moralidade da família portuguesa. Deste brilhante
opúsculo vou reproduzir o seguinte trecho, que é sem dúvida um dos mais
eloquentes que se têm escrito em todas as línguas:
"O procedimento dos poderes
públicos durante dez anos e as suas tristes hesitações na atual conjuntura
legitimam, santificam a nossa resolução; porque se trata do envenenamento moral
da sociedade pelo envenenamento moral da família. Uma lei desta terra, uma lei
de sete séculos, uma lei cuja duração representa um profundo sentimento de
honra, diz que se pude ser homicida sem crime quando a prostituição do
adultério vai enodoar o seio da família. É que a família é a molécula social, e
gangrenada ela, a sociedade esfacela-se num monte de podridão. Vamos muito
menos longe que a lei. E todavia o perigo é maior; porque nos seminários da
reação não se hostiliza só a liberdade: ensina-se também a revelar à donzela e
à mãe de família delícias mais monstruosos que o adultério. Defendemos nossas
mulheres, nossas irmãs, nossas filhas: defendemos as mulheres, as irmãs e as
filhas dos que hão de vir depois de nós. Onde estará aqui o crime, a violência,
o erro, o motivo sequer de suspeição? Não dissimulamos, não tergiversamos; a
nossa linguagem é simples e explícita como as nossas intenções."
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DIOGO ROSA MACHADO
DIOGO ROSA MACHADO
"Alexandre
Herculano, Conferência Pública realizada no Ateneu Comercial de Lisboa", 15
de Julho de 1900.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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