Alexandre
Herculano e a crença religiosa
Herculano foi inimigo acérrimo da hipocrisia e do fanatismo; o seu culto era incomparavelmente mais interno do que externo; pela contemplação da natureza é que ele principalmente se elevava à ideia de Deus.
Diz o Sr. Teófilo
Braga que Herculano mandou construir uma capela em Vale de Lobos. Isso não
admira porque, sendo Herculano toda a vida um grande poeta, como o revelam as
suas obras tanto em verso como em prosa, devia comprazer-se em ter diante dos
olhos objetos que lhe recordassem os belos e saudosos tempos da sua infância.
Na casa onde Herculano nasceu e passou os seus primeiros anos havia uma ermida
onde um frade arrábido costumava dizer missa os dias santos. No Monge de Císter pinta-nos ele com as
mais vivas cores a profunda saudade que lhe causava a lembrança dos dias santos
da sua infância, do altar onde no sábado à noite se punham jarras de flores, do
frade que lhe contava lindas historias ao almoço. Os verdadeiros poetas, os
grandes sentimentalistas amam sempre o passado. Os homens demasiadamente positivos
não podem compreender o sentimentalismo veemente das grandes almas. Se a cruz
era para Herculano o símbolo da liberdade, da fraternidade e do progresso, não
é de admirar que ele a amasse entusiasticamente, como o revelou na sua
eloquente e filosófica poesia A cruz
mutilada, escrita na sua mocidade. O ter mandado Herculano construir uma
capela em Vale de Lobos não é pois uma prova de que o seu espírito retrocedesse
com a idade. Alem disso o grande escritor não deixou de ser cristão em época
alguma da sua vida. Rousseau, a quem os padres chamam ímpio, nunca zombava da
religião como Voltaire. É porque o autor do Emílio
era um sentimentalista ardente como Herculano. Littré, apesar de positivista,
não queria perturbar sua mulher quando ela estava diante do oratório fazendo
oração. Foi a instâncias de sua esposa que Herculano mandou construir a capela
de que já fiz menção. Ainda que ele não fosse católico, haveria porventura
neste procedimento alguma coisa digna de censura? O verdadeiro filósofo, o
amigo da tolerância e da liberdade conserva sempre no seu coração o mais
profundo respeito pelas crenças alheias. A liberdade de consciência é um dos
princípios mais sacrossantos, um dos direitos mais sagrados, não só na
sociedade mas até no lar doméstico, no santuário da família. O chefe de família
não é um déspota nem a mulher uma escrava. A religiosidade é uma tendência
natural da mulher, a crença é uma das condições da sua vida moral; se quiserem
extinguir-lhe no coração o sentimento religioso, lançar-se-á no caminho do
jesuitismo, o que certamente será um grande mal para a família e para a
sociedade. A religião é um instrumento poderoso nas mãos do jesuíta; quem
conseguir arrancar-lhe esta arma prestará incontestavelmente um grande serviço
às gerações futuras. É por meio da propaganda verdadeiramente religiosa que se
dão os golpes mais profundos na Companhia de Jesus. A religião nasce do coração
e a filosofia da inteligência. Se a mulher é mais dominada pelo sentimento,
como poderá ela compreender sistemas filosóficos que estejam em antagonismo com
o seu estado psicológico, com as grandiosas aspirações do seu nobre coração?
Embora todas as opiniões sinceras sejam para mim respeitáveis, eu entendo que,
em vez de se agredir o cristianismo, se devem conter energicamente os erros
dos falsificadores, que são os jesuítas e todos os padres cujas doutrinas sejam
idênticas às dos filhos de Loyola.
Herculano, com a sua
crença religiosa, ficou profundamente impressionado pelos estragos que a
Companhia de Jesus fazia no cristianismo; por isso mostra-nos, em muitas das
suas páginas imortais, quão perigosa é para o futuro da nossa pátria essa
sociedade fundada no século dezesseis por Santo Inácio de Loyola e cujas
intrigas obrigaram a sair de Portugal os lentes mais distintos da Universidade
de Coimbra. Na prosa mais poética e viril que nos apresenta a nossa literatura,
expôs e criticou os fatos mais interessantes da história do ultramontanismo;
com a sua vista de águia previu os progressos que o jesuitismo havia de fazer
em nossos dias.
O Sr. Teófilo Braga
censura a Herculano o seu ardor em combater o jesuitismo e os novos dogmas
introduzidos na religião católica, dizendo que ele dispendeu as suas forças
contra os moinhos de vento do marianismo, do infalibilismo e do silabismo e que
o jesuitismo se tornou para ele uma preocupação constante; mas, como o autor da
Historia do Romantismo se tem ocupado
dos mesmos assuntos, é evidente que escreve contra si próprio, o que me causa
verdadeiro pasmo. Além disto a censura feita a Herculano recai sobre a própria
imprensa republicana, que muito frequentemente narra e estigmatiza escândalos
jesuíticos.
É o poder da igreja
tão pequeno que se não devam combater com a máxima energia as suas doutrinas
contrárias ao bem social? Tem porventura o jesuitismo tão pouca força que se
deva considerar um elemento desprezível? Não tem a Companhia de Jesus
progredido assombrosamente no nosso país? Não estão os colégios jesuíticos
repletos de alunos? Leibnitz, um dos gênios mais vastos e profundos não só da Alemanha
mas de todo o mundo, disse muito sensatamente: "Dai-me a educação, que eu
transformarei a Europa em menos de um século." Alexandre Herculano, com o
seu profundo critério, conhecia a grande força da educação; por isso receava
que o jesuitismo viesse causar a decadência intelectual e moral da sua pátria.
A moral perversa dos
jesuítas foi no século dezessete posta a descoberto não por um ímpio, não por
um ateu, mas por um dos mais eloquentes e profundos apologistas do
cristianismo, por um gênio prodigioso que, depois de ter feito os mais
assombrosos descobrimentos científicos, depois de ter penetrado vários segredos
da natureza, depois de ter resolvido os mais difíceis problemas da matemática,
levantou, em favor do cristianismo, esse grandioso monumento filosófico
intitulado Pensamentos, que, apesar
de ter ficado incompleto, revela a profundeza do gênio que o traçou; este
grande homem, este escritor religiosíssimo, este moralista austero, que se
chamava Blaise Pascal, foi quem mais poderosamente contribuiu para a queda dos
jesuítas no século dezoito. As suas Provinciais,
escritas num estilo cômico e vigoroso, espalharam-se por toda a Europa e as
máximas corruptas dos jesuítas foram ridicularizadas não só nas academias mas
até nos palácios dos reis. Como poderia Herculano, o entusiasta ardente da
moral pura e severa do Evangelho, deixar de combater energicamente as doutrinas
anticristãs da seita jesuítica?
Diz o Sr. Teófilo
Braga que Herculano, depois de se mostrar partidário do casamento civil, veio a
casar-se catolicamente; o distinto professor acha este procedimento
contraditório com as opiniões de Herculano. Quando, ao ler a História do Romantismo, encontrei esta
asserção tão infundada, que fiquei realmente estupefato. O Sr. Teófilo Braga
inverte completamente as doutrinas de Herculano, expostas com tanta lucidez nos
seus Estudos sobre o casamento civil,
e coloca-se a uma distância que lhe torna impossível apreciá-lo com exatidão.
Não há escrito algum
em que Herculano tivesse combatido o casamento católico; pelo contrário, ele
admitia duas espécies de casamento: o católico e o civil. O que repugnava ao
seu espírito profundamente liberal e tolerante é que os indivíduos que não
acreditassem no catolicismo se vissem obrigados a receber o sacramento do matrimônio,
a praticar um ato contrário ao seu modo de pensar e que ele considerava um
verdadeiro sacrilégio, uma ofensa à religião. Se Herculano era um velho
católico, se ele estava convicto de que o sacramento do matrimônio remontava
aos primeiros séculos do cristianismo, como procedeu o grande historiador
contra as suas opiniões casando-se catolicamente? Herculano nunca defendeu leis
que proibissem a qualquer indivíduo o seguir as suas crenças, tinha o mais
profundo respeito pela liberdade de consciência, era inimigo de todas as
violências feitas ao espírito humano, queria liberdade para todos, não era
intolerante como os hipócritas da liberdade, que não respeitam a consciência
alheia. Herculano sustentou que devia existir um registro civil especial para os
casamentos dos não-católicos, não admitindo que os nubentes fossem interrogados
acerca das suas crenças religiosas, o que, segundo a sua opinião, seria um
atentado contra a liberdade de consciência, um processo verdadeiramente
inquisitória! Quanto ao casamento católico, considerava-o debaixo de dois
aspectos: como sacramento e como contrato. Estando num país, cuja maioria era
constituída por católicos, admitia que o registro eclesiástico servisse de
registro civil. Era assim que o grande historiador procurava conciliar o
princípio sacrossanto da liberdade de consciência com o respeito à religião do
Estado. Sejam quais forem as opiniões acerca das doutrinas sustentadas por
Herculano relativamente ao casamento civil, é incontestável que não há
fundamento algum para se afirmar que o seu casamento católico esteve em
contradição com as suas ideias.
O seguinte trecho dos
Estudos sobre o casamento civil é uma
prova evidente de quanto é inexata a opinião do Sr. Teófilo Braga:
"O catolicismo
puro e desinteressado não tem culpa desta horrível e imensa traição que nas
altas regiões da jerarquia sacerdotal se está perpetrando contra ele. Não tem
culpa de que o vendam por trinta dinheiros ao anjo mau da reação política. O
catolicismo não quer que forcem os que não creem nele a receber um sacramento,
porque não pede um ato que lhe repugna, que reputa uma profanação; não pede que
os poderes públicos constranjam os membros do próprio grêmio a não pecarem,
porque a inquisição é para ele a maior afronta que lhe têm feito os homens. O
catolicismo puro não confunde o sacramento, que é coisa espiritual, com o
contrato, que é matéria jurídica, porque desde os tempos apostólicos, conforme
temos visto, jamais os confundiram as tradições legítimas da igreja...
Considerada a questão à exclusiva luz do direito, o sacerdote que autoriza o
contrato e o abençoa é, no primeiro caso, oficial civil, e no segundo, ministro
da religião. É uma coisa simples, clara, inofensiva. Em nome da liberdade,
deixemo-la ficar na lei."
DIOGO ROSA
MACHADO
"Alexandre
Herculano, Conferência Pública realizada no Ateneu Comercial de Lisboa", 15
de Julho de 1900.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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