Alexandre Herculano foi um dos principais representantes da alma portuguesa. A tristeza, que tem caracterizado o povo português em todos as épocas, também caracterizava a grande alma de Herculano.
O célebre crítico
Villemain diz que o português era refletido e melancólico antes da época em que
todos os povos o deviam ser. Esta meditação melancólica, que nus distingue dos
outros povos meridionais e nos assemelha aos povos do norte, revelou-se muito
cedo na nossa literatura. A profunda melancolia que se observa nas deliciosas
páginas da Menina e moça de Bernardim
Ribeiro e nos seus versos singelos e melodiosos, nas poesias sentimentais de
Cristóvão Falcão, de Camões e de Soares de Passos e na maravilhosa relação de
naufrágios intitulada História
trágico-marítima, essa profunda melancolia também é vigorosamente expressa
nas Poesias de Herculano e
principalmente no seu majestoso, soberbo e sublime Monasticon.
Não é, porém, só na
vigorosa expressão da melancolia que Herculano é um dos mais notáveis
representantes da alma portuguesa; também o é na poderosa energia com que
exprime todos os sentimentos nobres e elevados. O amor, a coragem, o
patriotismo e a generosidade são afetos característicos do povo português;
Herculano exprimiu-os de um modo verdadeiramente assombroso.
Como Camões, foi
simultaneamente poeta e soldado. O príncipe dos prosadores tem muitos pontos de
contato com o príncipe dos poetas. Camões combateu na África e na Ásia em prol
da pátria; Herculano pelejou no cerco do Porto a favor da liberdade. Camões
esteve desterrado em Macau; Herculano viu-se obrigado a emigrar para se
esquivar às perseguições do governo absoluto de D. Miguel. Camões, impelido
pelo seu ardente patriotismo e pela imensidade do seu gênio, escreveu os Lusíadas, narrando em belos e magníficos
versos os feitos mais brilhantes da nossa história; Herculano, levado pelas
suas tendências especiais para os estudos históricos e pelo seu grande amor da
pátria, escreveu num estilo majestoso como o de Barros, harmonioso como o de
Fr. Luís de Sousa, vigoroso como o de Tácito, vernáculo como o de Vieira e
singelo como o de Fernão Lopes, a História
de Portugal, o mais grandioso de todos os seus monumentos, a obra mais
eminentemente nacional que em Portugal se escreveu depois dos Lusíadas.
O sentimento de dignidade
pessoal era igual em ambos os escritores. Camões nunca lisonjeou os poderosos
no meio das maiores privações; Herculano nunca fez o mínimo sacrifício da
própria consciência, foi sempre amigo da verdade e da justiça.
Em ambos brilhou o
patriotismo no mais alto grau. Em Camões exerceu uma impressão dolorosa o
desastre de Alcácer-Quibir; Herculano sofreu profundamente com o progresso da
nossa corrupção moral e com a nossa decadência política. Camões, numa carta que
dirigiu a D. Francisco de Almeida quando Portugal estava próximo a perder a sua
independência, escreveu: "Enfim acabarei a vida, e verão todos que fui tão
afeiçoado à minha pátria que não me contentei de morrer nela mas com ela."
Herculano, pouco antes da sua morte, profundamente sensibilizado pela
decadência moral e política do seu país, exclamou: "Isto dá vontade da
gente morrer!"
Na vivacidade do
diálogo, na virilidade do estilo e no ardente entusiasmo que transmite aos
leitores, também se assemelha Herculano ao grande épico. É admirável a energia
com que o nosso mais eminente romancista histórico pinta as almas dos seus
heróis, fazendo ressurgir o espírito religioso, patriótico e guerreiro de
épocas remotíssimas. No seu pequeno mas excelente romance O Castelo de Faria, que faz parte das Lendas e narrativas, encontra-se o seguinte trecho, cuja eloquência
simples, majestosa e robusta nos traz à memória as passagens mais eloquentes
dos Lusíadas:
"Um arauto saiu
do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã; todas as
bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num
silêncio profundo.
— Moço alcaide, moço
alcaide! bradou o arauto, teu pai cativo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento,
adiantado da Galiza pelo muito excelente e temido D. Henrique de Castela,
deseja falar contigo, de fora do teu castelo.
Gonçalo Nunes, o
filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro, e, chegando à barbacã,
disse ao arauto:
À Virgem proteja meu
pai: dizei-lhe que eu o espero.
O arauto voltou ao
grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e, depois de breve demora, o
tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé dela, o velho guerreiro saiu
dentre os seus guardadores, e falou com o filho:
" — Sabes tu,
Gonçalo Nunes, de quem é este castelo, que, segundo o regimento de guerra,
entreguei à tua guarda, quando saí em socorro e ajuda do esforçado conde de
Ceia?
— É, respondeu
Gonçalo Nunes, de nosso rei e senhor, D. Fernando de Portugal, a quem por ele
fizeste preito e menagem.
— Sabes tu, Gonçalo
Nunes, que o dever de um leal alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o
seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?
— Sei, oh meu pai!
prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que
começavam a murmurar. — Mas não vás que a tua morte é certa se os inimigos
perceberem que me aconselhaste a resistência?
Nuno Gonçalves, como
se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então:
— Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide
do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas
o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo sem
tropeçarem no teu cadáver.
— Morra! gritou o
almocadem castelhano, morra o que nos atraiçoou!
E Nuno Gonçalves caiu
no chão, atravessado de muitas espadas e lanças.
"Defende-te,
alcaide!" foram as últimas palavras que ele murmurou.
Gonçalo Nunes corria
como louco ao redor da barbacã, clamando vingança.
Uma nuvem de flechas
partiu do alto dos muros; grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves
misturaram o próprio sangue com o sangue do homem leal ao juramento."
Este trecho
eloquentíssimo, cuja energia é inexcedível, revela-nos a maravilhosa aptidão
que Herculano possuía para pintar as grandes paixões, as paixões heroicas. A
fala que Nuno Gonçalves dirige a seu filho Gonçalo Nunes excitando-o a defender
corajosamente o castelo, embora com sacrifício da própria vida, não produz
menos entusiasmo no meu coração do que a fala de D. Nuno Álvares Pereira no
Conselho de Guerra, que é incontestavelmente um dos trechos mais eloquentes dos
Lusíadas. O estilo de Herculano é
incomparavelmente mais épico do que o de todos os poetas que em Portugal têm
florescido depois de Camões; é principalmente pela nobreza e virilidade do seu
estilo mágico que Herculano há de ser sempre considerado um dos maiores
prosadores do mundo. Assim como Platão possuía o entusiasmo de Homero, assim
nas obras de Herculano revela-se o ardente entusiasmo do príncipe dos nossos
poetas.
Todo o homem recebe
uma influência poderosa do meio em que vive; Herculano não podia deixar de
receber esta influência mas, pelos seus vastos e profundos conhecimentos e pela
sua eloquência enérgica, solene e majestosa, elevou-se muito acima dos seus
contemporâneos, alcançando sobre eles um poder espiritual tão assombroso que os
seus escritos eram considerados evangelhos.
A influência que
Herculano exerceu neste século foi muito superior à influencia de Sá de Miranda
no século dezesseis porque, apesar da grande semelhança de caráter que tiveram
os dois ilustres escritores, Herculano possuiu um talento mais genial e vasto.
Quando Herculano residia no seu eremitério da Ajuda, agrupavam-se em volta dele
os talentos mais notáveis que Portugal possuía naquela época, e até o bondoso e
ilustrado rei D. Pedro V o visitava frequentemente para lhe pedir os seus
conselhos. Herculano foi para o nosso país o grande patriarca do século
dezenove; nenhum escritor ainda conseguiu neste século exercer sobre a
sociedade portuguesa uma influência igual à sua; ninguém, depois de Camões,
influiu tão poderosamente na nossa literatura e civilização. — Disse.
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DIOGO ROSA MACHADO
DIOGO ROSA MACHADO
"Alexandre
Herculano, Conferência Pública realizada no Ateneu Comercial de Lisboa", 15
de Julho de 1900.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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