9/15/2019

Alexandre Herculano e a alma portuguesa (Ensaio)



Alexandre Herculano e a alma portuguesa

Alexandre Herculano foi um dos principais representantes da alma portuguesa. A tristeza, que tem caracterizado o povo português em todos as épocas, também caracterizava a grande alma de Herculano.

O célebre crítico Villemain diz que o português era refletido e melancólico antes da época em que todos os povos o deviam ser. Esta meditação melancólica, que nus distingue dos outros povos meridionais e nos assemelha aos povos do norte, revelou-se muito cedo na nossa literatura. A profunda melancolia que se observa nas deliciosas páginas da Menina e moça de Bernardim Ribeiro e nos seus versos singelos e melodiosos, nas poesias sentimentais de Cristóvão Falcão, de Camões e de Soares de Passos e na maravilhosa relação de naufrágios intitulada História trágico-marítima, essa profunda melancolia também é vigorosamente expressa nas Poesias de Herculano e principalmente no seu majestoso, soberbo e sublime Monasticon.

Não é, porém, só na vigorosa expressão da melancolia que Herculano é um dos mais notáveis representantes da alma portuguesa; também o é na poderosa energia com que exprime todos os sentimentos nobres e elevados. O amor, a coragem, o patriotismo e a generosidade são afetos característicos do povo português; Herculano exprimiu-os de um modo verdadeiramente assombroso.

Como Camões, foi simultaneamente poeta e soldado. O príncipe dos prosadores tem muitos pontos de contato com o príncipe dos poetas. Camões combateu na África e na Ásia em prol da pátria; Herculano pelejou no cerco do Porto a favor da liberdade. Camões esteve desterrado em Macau; Herculano viu-se obrigado a emigrar para se esquivar às perseguições do governo absoluto de D. Miguel. Camões, impelido pelo seu ardente patriotismo e pela imensidade do seu gênio, escreveu os Lusíadas, narrando em belos e magníficos versos os feitos mais brilhantes da nossa história; Herculano, levado pelas suas tendências especiais para os estudos históricos e pelo seu grande amor da pátria, escreveu num estilo majestoso como o de Barros, harmonioso como o de Fr. Luís de Sousa, vigoroso como o de Tácito, vernáculo como o de Vieira e singelo como o de Fernão Lopes, a História de Portugal, o mais grandioso de todos os seus monumentos, a obra mais eminentemente nacional que em Portugal se escreveu depois dos Lusíadas.

O sentimento de dignidade pessoal era igual em ambos os escritores. Camões nunca lisonjeou os poderosos no meio das maiores privações; Herculano nunca fez o mínimo sacrifício da própria consciência, foi sempre amigo da verdade e da justiça.

Em ambos brilhou o patriotismo no mais alto grau. Em Camões exerceu uma impressão dolorosa o desastre de Alcácer-Quibir; Herculano sofreu profundamente com o progresso da nossa corrupção moral e com a nossa decadência política. Camões, numa carta que dirigiu a D. Francisco de Almeida quando Portugal estava próximo a perder a sua independência, escreveu: "Enfim acabarei a vida, e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria que não me contentei de morrer nela mas com ela." Herculano, pouco antes da sua morte, profundamente sensibilizado pela decadência moral e política do seu país, exclamou: "Isto dá vontade da gente morrer!"

Na vivacidade do diálogo, na virilidade do estilo e no ardente entusiasmo que transmite aos leitores, também se assemelha Herculano ao grande épico. É admirável a energia com que o nosso mais eminente romancista histórico pinta as almas dos seus heróis, fazendo ressurgir o espírito religioso, patriótico e guerreiro de épocas remotíssimas. No seu pequeno mas excelente romance O Castelo de Faria, que faz parte das Lendas e narrativas, encontra-se o seguinte trecho, cuja eloquência simples, majestosa e robusta nos traz à memória as passagens mais eloquentes dos Lusíadas:

"Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã; todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num silêncio profundo.

— Moço alcaide, moço alcaide! bradou o arauto, teu pai cativo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, adiantado da Galiza pelo muito excelente e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo.

Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro, e, chegando à barbacã, disse ao arauto:
À Virgem proteja meu pai: dizei-lhe que eu o espero.

O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e, depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus guardadores, e falou com o filho:

" — Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é este castelo, que, segundo o regimento de guerra, entreguei à tua guarda, quando saí em socorro e ajuda do esforçado conde de Ceia?

— É, respondeu Gonçalo Nunes, de nosso rei e senhor, D. Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem.

— Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um leal alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?

— Sei, oh meu pai! prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. — Mas não vás que a tua morte é certa se os inimigos perceberem que me aconselhaste a resistência?

Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então:

 — Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo sem tropeçarem no teu cadáver.

— Morra! gritou o almocadem castelhano, morra o que nos atraiçoou!

E Nuno Gonçalves caiu no chão, atravessado de muitas espadas e lanças.

"Defende-te, alcaide!" foram as últimas palavras que ele murmurou.

Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando vingança.
Uma nuvem de flechas partiu do alto dos muros; grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com o sangue do homem leal ao juramento."

Este trecho eloquentíssimo, cuja energia é inexcedível, revela-nos a maravilhosa aptidão que Herculano possuía para pintar as grandes paixões, as paixões heroicas. A fala que Nuno Gonçalves dirige a seu filho Gonçalo Nunes excitando-o a defender corajosamente o castelo, embora com sacrifício da própria vida, não produz menos entusiasmo no meu coração do que a fala de D. Nuno Álvares Pereira no Conselho de Guerra, que é incontestavelmente um dos trechos mais eloquentes dos Lusíadas. O estilo de Herculano é incomparavelmente mais épico do que o de todos os poetas que em Portugal têm florescido depois de Camões; é principalmente pela nobreza e virilidade do seu estilo mágico que Herculano há de ser sempre considerado um dos maiores prosadores do mundo. Assim como Platão possuía o entusiasmo de Homero, assim nas obras de Herculano revela-se o ardente entusiasmo do príncipe dos nossos poetas.

Todo o homem recebe uma influência poderosa do meio em que vive; Herculano não podia deixar de receber esta influência mas, pelos seus vastos e profundos conhecimentos e pela sua eloquência enérgica, solene e majestosa, elevou-se muito acima dos seus contemporâneos, alcançando sobre eles um poder espiritual tão assombroso que os seus escritos eram considerados evangelhos.

A influência que Herculano exerceu neste século foi muito superior à influencia de Sá de Miranda no século dezesseis porque, apesar da grande semelhança de caráter que tiveram os dois ilustres escritores, Herculano possuiu um talento mais genial e vasto. Quando Herculano residia no seu eremitério da Ajuda, agrupavam-se em volta dele os talentos mais notáveis que Portugal possuía naquela época, e até o bondoso e ilustrado rei D. Pedro V o visitava frequentemente para lhe pedir os seus conselhos. Herculano foi para o nosso país o grande patriarca do século dezenove; nenhum escritor ainda conseguiu neste século exercer sobre a sociedade portuguesa uma influência igual à sua; ninguém, depois de Camões, influiu tão poderosamente na nossa literatura e civilização. — Disse.

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DIOGO ROSA MACHADO
"Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Ateneu Comercial de Lisboa", 15 de Julho de 1900.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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