Afrânio
Peixoto, na sua curiosidade universal, sabia tudo, porque tudo lia com
interesse transbordante e comunicativo. Mas de alguns assuntos foi mestre
grande e respeitado. Assim de sua medicina legal, a que abriu novos horizontes,
da higiene aplicada às realidades nacionais, que professou com igual
autoridade, de história da literatura e da educação, de seus poetas prediletos,
Camões e Castro Alves. Na estreiteza de um comentário fiquemos com esta faceta
do talento indagador, crítico, iluminado pelo senso humanista dos problemas
estéticos, do homem extraordinário que tanto podia ser romancista como os
melhores da língua portuguesa, como professor e cientista entre os maiores do
seu meio e do seu tempo.
O
amor a Camões teve em Afrânio a compensação moderna do amor a Castro Alves,
envolvendo aos dois num culto harmonioso, que se referia intencionalmente aos
extremos da curva poética, das origens às culminâncias do lirismo pátrio. Fez de
Os Lusíadas o breviário de sua paixão
literária, o código da beleza vernácula, o tesouro farto e misterioso entre
cujas pedrarias de ocidente e oriente cintila, sangra e canta o coração da
raça. Estudou o poema e o poeta com um sentimento de proporção, a erudição
analítica, a compreensão sutil e renovadora que lhe deu direito de figurar na
linha dos mais ilustres camonistas — de Severim de Faria a José Maria
Rodrigues, de morgado de Mateus a Afonso Lopes Vieira, ou seja, na série dos
devotos, em que entraram Garrett, Oliveira Martins e Camilo. Os "Ensaios
Camonianos" aí estão para testemunhar os primores desse culto, com a
defesa, a interpretação, a exaltação dos dez cantos de Os Lusíadas apreciados como lirismo eterno, ciência profunda,
dignidade humana, mensagem, política, discurso cívico, história cândida, poesia
pura e imortal — a mais sonora e alta que a Renascença produziu, sublime nas
próprias imperfeições...
Considerou
a Castro Alves o neto brasileiro de Camões, mostrou a influência, que dele
recebeu o cantor os Escravos, e erigiu
a sua vida e a sua arte modelos impostos, pela veneração do povo, ao orgulho do
país. Nenhum dos "cástridas" (nome que deu aos admiradores de Castro
Alves) lhe sobrepujou a exposição sensata e empolgante dessa poesia, nem a
estudou com tão claro espírito de verdade. O Brasil precisava do seu símbolo
juvenil de idealismo libertário, de seu trovador adolescente que murmurasse ao
ouvido das gerações a música dos amores imperecíveis, e que fosse — bardo da
Abolição, inimigo angélico das tiranias, Ariel militante — o namorado das
Ilusões que incessantemente se renovam. Partia de pressuposto morosamente
justo: de que o poeta e uma força espiritual que se não separa da aventura
dolorosa ou ingênua da sua pobre vida, e, assim, deve apresentar-se menos nos
seus versos do que na sua biografia. O Castro Alves de Afrânio Peixoto é,
enfim, não um abstrato ou esquivo menestrel de lira dourada, porém o homem na
verdade tangível dos seus infortúnios, na grandeza insólita dos seus protestos,
na sua realidade viva — e nova.
Foi
Afrânio quem resolveu o supremo problema, quanto à poética de seu genial
conterrâneo, de lhe pôr em ordem as poesias, restituindo-as à classificação
idealizada pelo autor (Obras Completas,
1921). De sua iniciativa fora a comemoração, com esplêndido relevo, do cinquentenário,
em 1921. Não o fulminasse tão cedo a morte, e seria a sua a voz mais festejada
nas celebrações do centenário, que se avizinha, em 1922.
Dois
postas marcam dois destinos. Mas no caso de Afrânio assinalavam dois pontos
siderais, unidos por sua admirável intuição dos valores permanentes. Um era
Portugal — e a língua. O outro era o Brasil — e a literatura. O seu trabalho
pessoal e magnífico de escritor de cem livros consistiu em tecer entre esses
dois lumes a ponte delicada da análise e da mística intelectual — que era como
um arco-íris sobre as duas margens do oceano.
---
PEDRO CALMON
"Ilustração Brasileira", fevereiro de 1947.
PEDRO CALMON
"Ilustração Brasileira", fevereiro de 1947.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...