Se fosse
possível definir o indefinível, diria eu que a poesia é a expressão comovida e
harmoniosa do mundo tal como é revelado pelo sentimento. Tê-la-ia definido
aproximadamente ao menos?
Contenta-me
que nessa fórmula estejam os elementos essenciais: — de um lado, o mundo, ou
antes a representação do mundo ante o homem, na sua realidade presente, na sua
origem, na sua possibilidade, no seu destino, e o mesmo homem, dentro dele;
mas com a condição de serem mais sentidos que entendidos, pois que a
inteligência raciocinante analisa, decompõe e abstrai, ao passo que o
sentimento percebe concretamente por imagens; — do outro lado, a emoção que
essas imagens excitam no espírito, não confusa, mas em linhas harmoniosas e
concertada em ritmo, que é próprio modelo da emoção verdadeira.
Tal é a
ocasião da poesia, e tudo pode sê-lo, contanto que se relacione com o
sentimento humano.
De dois
homens, ambos poetas, é possível que o mesmo fenômeno, ato ou coisa, tenha para
um a força inspiradora, e ao outro pareça insignificante e trivial. A diferença
procederá menos da capacidade da pessoa, da sua inteligência, que do estado do
seu sentimento, o qual é constituído pelos antecedentes e circunstâncias
aleatórias. A um homem da cidade, contente da cidade, não oferece o campo com o
seu cenário e os seus costumes, um tema de poesia; a um homem campestre a
cidade, ou impressiona pelo tumulto inadequado a inspirá-lo, ou desperta, pelo
contraste, a imagem do campo, que ele sente e pelo qual se comove.
Despertando, entretanto, o sentimento de um
ou do outro, este pelo campo, aquele pela cidade, para um e outro
reciprocamente o campo e a cidade assumirão a força poética, se a expressão que
os comunicar, for sinceramente comovida.
Não basta pois em si o objeto inspirador; é mister que o interprete um sentimento; e não basta ainda ter sido sentido, é preciso compor-se em comoção, que induza em outrem sentimento equivalente.
É difícil dizer
o que é que mais releva, se o sentimento inicial, se a emoção ulterior que lhe
dá corpo. Na verdade existe uma relação, como de causa e efeito, e entre causa
e efeito não há separar dependência; e nesta espécie, causa e efeito
invertem-se e influem-se mutuamente, durante a gestação recôndita da obra
poética.
Feita essa
consideração, cuja análise interessa mais à psicologia que à estética, pode-se
afirmar que na poesia o principal é a expressão, porque é o que a torna
sensível, é o que a faz existir para os outros, é como no homem físico, o
semblante, que o manifesta e o distingue. É pois individual, como a fisionomia,
ainda que, como a fisionomia, tem os traços comuns da espécie, da raça e da
família.
Aos traços
comuns da espécie, da raça e da família, corresponderiam na expressão poética
os dos gêneros épico, lírico e dramático. Às feições individuais responderiam
as qualidades do estilo. Do mesmo modo que no semblante humano as feições são
diferentes, embora sejam comuns os traços de família e de raça, dos quais elas
se formam; assim a expressão de cada poeta, formada na identidade da língua e
dos costumes, do meio e do pensamento, distingue-se pela característica
pessoal, de índole, de emoção, de impressões sucessivas, da influência obscura
das circunstâncias; e isso lhe constitui o estilo. A expressão que resulta do
sentimento experimentado e da pessoalidade do estilo, individualiza o que em
natureza existe aparentemente confuso; e ao mesmo tempo, pelo só efeito da
individualização, predomina sobre todas as manifestações comuns daquele
sentimento. Exemplificando: o amor é um sentimento comum a todos os homens;
todos o exprimem necessariamente, mas a expressão poética do amor, como a dá o
poeta sincero ao seu amor individual, parece a todos os homens a única, embora
essa unicidade seja sucessivamente atribuída a cada nova expressão sinceramente
poética do amor. Cada expressão individualiza um estado, um momento de amor,
mas pela sua mesma força de comoção vivida, torna-se um tipo universal.
A poesia
coexiste com o mundo e o homem; a expressão da poesia, porém, humana e pessoal,
varia com a mutação das idades e dos meios; e cada idade e cada meio possuiria
modos de expressão nitidamente diversos dos anteriores e estranhos, se não
fosse o prestígio conservador, e por sua vez inspirador, das expressões que no
passado atingiram a graça da perfeição e da perpetuidade.
O efeito, p.
e., do progresso material e científico, que determinou a explicação máxima
atingível das coisas do mundo e o conhecimento total da terra e dos seus
habitantes, foi a extinção dos mitos, e o predomínio da razão. A poesia do homem
moderno, em condição progressiva, devera exprimir-se na linguagem da prosa, que
é a forma própria da análise. Perduraria a expressão simétrica somente em
raros poetas, que pudessem ficar alheios à marcha analítica e prosaica do
espírito humano, preservando a alma elementar que foi a da infância do mundo,
ignorante na ilusão e no sonho do mistério. A sobrevivência da poesia em verso,
na maior parte dos que versejam, procede da imitação deleitosa, e em si mesma
artística, das formas consagradas da beleza. Por isso subsistem ainda os
gêneros, conservados pelo talento a serviço da vontade, por arte aliada à
eloquência, por economia do esforço e pelo reflexo inspirador das glórias
antigas.
Mas ainda
algumas almas elementares sobrenadam ao nivelamento; e para estas, cada vez
mais raras criaturas, o verso é bem a legítima e ingênua forma de expressão
poética. A uns uma feliz contingência os fez apontar, em plena civilização de
desencanto, encantados, quase selvagens, extremes de ciência, com os sentidos
virginalmente cheios da sensação direta e simples da vida. A outros, uma força
preserva intactas, sob as aquisições da ciência e as impressões dos tempos, como
sob uma máscara, a ingenuidade e a pureza da infância da alma: há no espírito
deles compartimentos impermeáveis entre si, em que o espírito vive, casado à
razão, casado ao sentimento; culto ou inculto, lógico ou místico; e pode ser
assim ora a alma elementar da poesia, ora a razão poderosa e sutil da filosofia
e da crítica.
Está, entre
aqueles primeiros, Catulo Cearense. Nascido no interior brasileiro, em terras
que reproduzem a fase da infância da terra, ali viveu toda a idade plástica do
espírito, vendo, ouvindo, cheirando, gostando, palpando, até a saturação dos
sentidos, a natureza agreste brasileira. Não ficava lugar para a penetração de
outras imagens estranhas; e as que recebesse depois seriam superposições
flutuantes, indecisas, efêmeras, incapazes de apagar as primitivas, que já lhe
formavam a consciência estética.
Permanecesse
Catulo no sertão, teria sido naturalmente poeta, como são poetas as criaturas
simples, na sua fala ingênua, de tom concreto, inspiradas da natureza vizinha
e familiar; e o teria sido ainda pelo dom pessoal do sentimento e da imaginação
vivaz. A sua concepção poética, porém, ficaria restrita em virtude da sua mesma
familiaridade dos costumes e pela habituação do cenário; não iria talvez além
das impressões, incisivas embora, mas curtas, que dão a matéria dos versos
populares, raros excedentes de uma quadra, jamais dilatados à proporção de um
canto. Nem o auditório que estimula o cantor, tem ali capacidade de atenção
para o desenvolvimento dos temas, nem o mesmo cantor possui as condições de
coordenação e elaboração de demorados assuntos de poesia. A ocasião de compô-la
oferecem-na os desafios à viola, de compasso breve; e o improviso significa a
instantaneidade do sentimento provocado ao pé de uma fogueira festiva, ou a
par de um baião, antes como acessório ou pretexto, do que como causa.
Amortecida a dança, calado o instrumento, toda a inspiração se corporificou em
cantigas dialogadas, ou desconexas. O sentimento, quando real e agredido,
expandiu-se no desforço físico; e tudo entra na necessidade do meio rudimentar
da natureza, trivial ou só por momentos trágico. Algum sentimento mais
profundo que surja, traduz-se na toada vaga e inarticulada da música solitária,
porque para a palavra não acha a simpatia continuada de alheio ouvido.
O bem ou mal
do Catulo foi o seu afastamento do sertão natal. Distante, sob a experiência de
outros costumes, deixou de ser ator no cenário nativo, para ser o espectador
alongado e mais sensível dele. A humanidade embrionária do sertão cresceu aos
seus olhos em figuras acabadas; os sentimentos, limitados aos desafios,
tomaram a intensidade de estados de alma, estuosos e ardentes; os usos
quotidianos tocaram-se do prestígio para a revelação a estranhos: surgiu o
cenário em relevo, nas suas partes mais indiferentes aos seus olhos de outrora;
tornou-se possível a perspectiva; cresceu a saudade; deu-se o choque vibratório
de todas as sensações adormecidas e da saturação dos sentidos virgens resultou
a força imaginativa do poeta sertanejo em plena cidade.
A mesma
relação necessária entre o objeto inspirador e a emoção expressiva, há entre o
poeta e o auditório. O isolamento — e estar no campo é como estar isolado — é
negativo para a criação. O trabalho espiritual procede com a condição da dualidade
da luz e do som, que não existem sem o meio transmissor: não há luz no vácuo,
não há som sem a ondulação do ar ou a vibração de um corpo. A voz do passado só
ressoa para o ouvido alheio, próximo ou distante, mas possível, que a esperança
realiza.
Agora na
cidade havia auditório para escutar o poeta sertanejo; e curiosidade para
estimulá-lo.
O tema,
encurtado em cantigas, dilatou-se em poemas.
Não tinha
Catulo precisão de modelo. Bastava-lhe contar o que vira, ouvira, cheirara,
palpara e gostara no seu sertão distante. A condição do êxito era a
espontaneidade e a harmonia da expressão e do tema: em suma que ele fosse em
tudo sertanejo sincero. Convinha que ele esquecesse o que lhe tinha dado a
civilização da cidade, e a cultura literária, com os seus benefícios e sobretudo
com os seus perigos de imitação e artificialismo.
Não conheço
senão poucos versos dos que ele escreveu antes de Meu sertão. Não eram os versos da sua poesia. Esta revelou-se em toda a sua força e
originalidade nos poemas Quinca Micuá, O marroeiro, A promessa, A vaquejada, O cangaceiro, Terra caída, daquele volume, e A resposta de Jeca Tatú, e Braz Macação, deste novo livro.
A poesia de
Catulo, produzida na plena conformidade do seu talento, é a narrativa
dramática, e caracteriza-se pela perfeita objetivação. A pessoa do poeta se
desvanece, e exemplifica bem o estado da inspiração poética, segundo a
concebiam os gregos, o entusiasmo divino: o poeta age inconsciente sob o
domínio da emoção. É um puro instrumento vibrátil, em que o som se forma por
impulso exterior, adquire tonalidades que ele pela sua contextura lhe comunica,
mas não anuncia na sua composição a qualidade material do mesmo instrumento.
Na voz de
Catulo canta não a pessoa dele, mas o sertão e o sertanejo. A métrica do verso
é, nem devia ser outra, a mesma redondilha que é o vagido poético do povo; a
prosódia é também a do povo matuto, abreviada, abrandada e simplificada, quase
dialetal. Podia, dentro do mesmo número de sílabas, ser grafada como a
linguagem comum; mas seria uma alteração da voz, do que Catulo foi um eco, e um
transmissor orgânico; seria como exigir-se-lhe uma consciência de homem de
cidade naquele estado de inconsciência inspirada.
Não lhe
peçam ao poeta outra língua, nem explicação da sua poesia, nem lhe sugiram ou
solicitem outros assuntos que não os da natureza e humanidade agreste do
Brasil, nem outra forma que a da narração objetiva. Arriscar-se-iam a vê-lo
diferente e menor, sem a originalidade espontânea, ao contrário contrafeito,
canhestro ou artificioso. Cada poeta tem o seu talento peculiar e o seu gênero
de criação; e ainda nesse gênero e com esse talento não existe continuidade de
poesia, senão momentos de poesia, que não hão de ser buscados.
Contentemo-nos
com a poesia de Catulo naquelas composições citadas; essa é a sua poesia, e é a
grande poesia. Os temas que a originam são, como na grande poesia, as paixões
humanas, o amor à mulher, raro contente, quase sempre desiludido, o sentimento
religioso e o da honra, o cavalheirismo, a bravura, a tenacidade, o orgulho, a
tristeza e a saudade. É em suma a alma humana tão vivamente dramatizada, que em
cada situação, não importa o meio agreste em que ele se agita, parece
caracterizar o homem na sua universalidade. A natureza não figura em primeiro plano,
como elemento descritivo principal; mas não se pode dizer que seja secundário,
porque está essencialmente conjugada ao homem; é como a própria tinta que o
contorna e lhe define os traços, a cor e os movimentos. Tem-se a impressão de
que o poeta não descreve por palavras, senão que as próprias coisas e pessoas
surgem vivas em imagens da natureza.
Num dos poemas deste livro, diz um violeiro da casa
da mulher amada:
A casa onde ela morava
dava à gente uma
alembrança
dum brinquedo de
criança.
Numa biboca da serra,
bejada pulo um regato,
parecia aquela casa
uma frô feita de terra
sonhando dento dos
mato.
O símile
define a imaginação de Catulo. As suas imagens, nos seus grandes poemas, são
assim: não deixam perceber nem lembrar o trabalho que as fez, nem as partes de
que se compõem; parecem flores nativas da terra, desabrochando em todos os
seus matizes e formas.
Essa é a
imaginação genial do poeta; e dos poemas de Catulo se colheriam inúmeros e
exemplos da definição de Wordsworth:
“A função
peculiar da poesia, o seu emprego peculiar, o seu privilégio e o seu dever, é
tratar das coisas não como elas são, mas como elas aparecem; não como elas em si mesmas existem, mas como parece existirem aos sentidos e às paixões”.
Debaxo das asa verde
de uma jaboticabera
disfoiei toda a
minh’arma
neste acalanto maguado.
Em um poema
de humor diferente, quase satírico, o Jeca Tatu, diz a um político:
Vassuncê só abre o bico
pra cantá como um cancão
quando qué fazê seu ninho
nos gaio de uma inleição.
pra cantá como um cancão
quando qué fazê seu ninho
nos gaio de uma inleição.
Imagens dessas
não se premeditam, não se rebuscam, não se inventam em toda uma vida de
espírito; porque nascem por si, sem esforço, são a própria linguagem de quem só
percebe por imagem. Ali não há elaboração de raciocínio, nem análise; há
transbordamento de sensações de sentidos que viveram concertamente a vida da
natureza; há relâmpagos de gênio, que abrangem e aclaram, associando-as num
feixe de luz, distâncias intransponíveis ao olhar mais agudo e ao espírito
mais célere.
Daí as
sínteses que há em cada imagem: as transposições das propriedades das coisas
que lhes dão mais realidade que na realidade; são golpes de luz que da
confusão fazem irromper o tipo de beleza da verdade vivaz e único.
Não sei se
um poeta genial, agreste como o sertão que o formou, precisa ser julgado sob o
critério da arte. Há duas espécies de arte. Uma que se revela, cuidada,
pontilhosa, trabalhosa, porfiada em aparecer elegante, sem jaça, sem defeito,
medida; brilha, encanta, seduz mas acaba insinuando o cansaço do esforço em que
se gerou; e transparece então o artifício que lhe fez o arcabouço e o semblante.
Essa arte não a tem Catulo. A outra, irregular na aparência, desordenada,
precipitada, descurada de pormenores, como é a arte da natureza, que não se
detém na simetria das partes mínimas, nem alisa as superfícies, mas se funda na
harmonia essencial; essa é a arte ingênita, a grande arte; e essa a possui
Catulo. Revela-se na dramatização dos seus poemas, na narrativa direita e
rápida, no movimento dos quadros, no talento da pintura e quase digo da
escultura animada das pessoas e das coisas. Completo, perfeito em todas as
partes de cada poema? Não, antes incompleto, imperfeito em muitas partes dos
seus poemas. Mas no fim de cada poema e ainda nas suas poesias menores, a
impressão definitiva que ele nos deixa é a de um grande poeta e grande artista,
como a natureza.
---
MÁRIO DE ALENCAR
29 de novembro de 1919.
29 de novembro de 1919.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...