A
Estética de Lima Barreto
Com uma atitude de
franco negativismo pela exuberância da vida e de seus liames tentaculares de
gozo e prazer, com estranha filosofia Lima Barreto crivou as figuras e os
acontecimentos de seu tempo. Esta maneira sarcástica de transpor para o livro a
sequência banal e vazia dos homens e fatos do Rio urbano e heterogêneo, no
contato diuturno da rua e sua gente, aproximou Lima Barreto de Machado de
Assis. Não há, porém, traço forte de união que une e prende indissoluvelmente
os dois extraordinários mulatos. Em Machado de Assis a deficiência de
imaginação criadora ficou inferiorizada pela magnificência acadêmica do estilo
soberano e casto. Machado metamorfoseou-se em inúmeros personagens para poder
dar movimentação às cenas e às figuras, num esforço vão e infrutífero, pois os
fatos lhe são muito mais do espírito do que qualquer manifestação objetiva.
Lima Barreto, propositadamente negligente ou então intuitivamente despreocupado
na maneira de escrever, possuía maior imaginação e um dom singular de
movimentar o assunto tratado, impregnando-lhe de ação cinemática mais intensa
do que qualquer obra machadiana. Poder-se-ia alegar que Machado de Assis era
analista meticuloso enquanto Lima Barreto se preocupava mais com os problemas
pessoais ligados ao realismo das coisas e dos fatos. Na verdade é esta predileção
que torna seus tipos mais humanos, mais reais, mais cheios de virtudes e
defeitos e por isso mais naturais e mais vividos.
Lendo Lima o leitor
tem aquela reminiscência saudosa de que já viu seus personagens ou já falou a
muitos deles. Encontra-se o ambiente costumeiro das várias profissões,
intrincadas no seu viver, porém intensamente naturais, em que o contato nos
demonstra o lado íntimo de cada existência, afogada no acervo da mediocridade
habitual e na miséria grotesca dos tipos mesquinhos em mistura com esta figura
singular do filósofo meão das ruas suburbanas, cosmopolitas, com aspecto de
bazar movimentado.
É a vida na gama de
suas modalidades.
Que reação
psicológica poderia despertar tal ambiente no escritor? Reação negativa que o
obrigasse a reclusão voluntária? Não; a atração que a vida das ruas despertava
no romancista era consequência de uma predisposição natural e depois excitada
pela dipsomania. Este vício poucas vezes lhe deixou tempo de completa lucidez.
Procurava escrever nos intervalos de sanidade mental. Seria, pois, delicada
exceção se seus livros fossem modelo de perfeita técnica e estilística. Não
quis e nem desejou respigar erros. Nunca teve pretensão de purista. A arte
era-lhe propensão inata; escrevia para obedecer à sensação de ironia com que a
existência lhe aguçava os dias. Era uma evasão ao tumulto diário. Deixou Lima
Barreto, naturalmente, pelo feitio da vida gasta entre orgias noturnas e as
mesas dos jornais, uma auréola de fantasia e lenda, multiplicada com o correr
dos anos, que é o maior obstáculo à divulgação de suas obras. Contenta-se com a
galhofa porventura vivida do estranho romancista e quase não se dá o real valor
ao que escreveu. Aliás, assim também aconteceu a Emílio de Meneses. Quem há que
não conheça uma de suas inúmeras pilhérias? E quem há que diga de cor um nome
de alguns de seus magníficos sonetos?
A crítica também
corroborou para esta posição difícil de Lima Barreto no conceito das gerações
que o sucederam, quando o identificaram como o mais próximo irmão de Machado de
Assis. O autor de "Brás Cubas" é na literatura brasileira um ponto
perigosíssimo para quem deseja atingir-lhe a altura. Todos os escritores que
intencionaram aproximar-se de Machado de Assis sofreram estranha inibição
mental. Não foram além de uma obra que imita desgraciosamente o mestre famoso.
Nem todos, porém, desejaram fazê-lo e se não fosse o grito uníssono da crítica,
passariam ignorando tão nobre filiação. Lima Barreto, apesar de certas
semelhanças, não procurou seguir o mesmo caminho do criador de "Capitu".
Não vejo razões para
classificá-lo apressadamente como discípulo de Machado. Há, naturalmente, um
aspecto comum a ambos, mas que não justifica a inclusão na galeria laboriosa e difícil
de aluno do gago preeminente. O ponto remoto em que ambos se confundem é mais
de contacto social do que propriamente artístico. Pobres os dois e de
nascimento obscuro, mulatos ambos e de origem suburbana, do meio proletário e
esconso projetando-se para o bulício febril da cidade tentadora; doentes
psíquicos terminando a vida em dolorosa desagregação física, ambos talentosos
criadores do romance psicológico. Machado de Assis é o humorista aristocrático,
que ri interiormente, comedido, prefigurando os indivíduos numa atmosfera
essencialmente cerebral, cujo ridículo assusta o romancista e seus personagens,
enquanto o riso de Lima Barreto é franco, jocoso, democrático, espontâneo, que
nasce na rua e morre na rua. Não tem medo do ridículo e até mesmo o provoca
como desafio aos hábitos e costumes É esta a gaze que ele coloca nos olhos para
o disfarce de uma alma dolorida. Aliás, a imaginação criadora serviu-lhe para
retocar e dar brilho aos indivíduos observados, para caracterizá-los
acentuadamente no lugar comum, na intenção real de caricaturá-los, sem com isso
prejudicar-lhes os contornos. Esta feição jocosa do autor de "Isaías
Caminha" é inata e constitui vezo pessoal e predileto. Lima Barreto
vinga-se dos homens e das coisas exteriorizando-os de modo penetrante e angustioso.
Aumenta-lhes as fraquezas, pintando-as com cores fortes; recalca-lhes as
inferioridades de caráter para diabolicamente explodir-lhas nos complexos e nas
confusões, superpondo as vaidades humanas, eternas e polimorfas, ao
sentimentalismo inócuo e nem sempre aceitável; submete a criatura humana ao
domínio de uma força social injuriosa e mesquinha.
Tinha prazer de
realizá-lo. Fazia-o com talento e divertia-se com isto. Embora em excesso, às
vezes, não teve o Rio de Janeiro, em seu tempo, outro fino artista que melhor o
dissesse. O romancista não pode negar a feição hereditária desta peculiaridade
brasileira dos escritores nacionais: revela-se em certos momentos, um
sentimentalista sincero sobrepairando em ameno e suave lirismo. Tem o escritor
diante dos olhos o deslumbrante poema tropical da cidade amada, erguida, pelo
destino, no altar eterno dos morros e da baía. No alto o mesmo espetáculo de
vida: um céu sempre azul e às noites as estrelas do poeta miraculoso que
convidam à confidência. É um momento de contemplação; é um instante em que o
homem agradece a Deus a onipotência da natureza subjugando-o no aconchego da
terra mãe, amorosa e fértil; é um desejo de vida! A paisagem domina
inteiramente o indivíduo. Cedem-se os nervos ao império dos elementos. O
romancista não nega que ama a alegria de viver. Ele adora a cidade e dela não
se pode afastar. O amor por ela é a fonte que o inspira a romanceá-la. Vive por
ela e por ela deseja morrer. Nos momentos em que o objetivismo da natureza
domina o interior do homem predestinado ao infortúnio, esboça-lhe o sorriso
menos jocoso, porém mais amargo, desaparece o sarcástico para surgir o ironista
que, talvez, se dissolva numa lágrima humaníssima, rolando pelos olhos
edemaciados e indecisos.
Não ri à Voltaire,
mas sorri à Thackeray.
Renasce da abstração
fugaz o homem das orgias noturnas; volta a predominar o gume da vida falaz,
pois assim tem ele vivido. Não se nega que tenha sido culpado. As razões de um
vício vão muito além de quaisquer indagações pessoais. Remontam ao primitivismo
de uma consciência de onde nem sempre os combates vêm à tona. Por isso se lhe
dão respingos de lenda e fantasia. Há um predeterminismo orgânico que o meio
favorece ou repele; soma-se a isto o caráter e eis uma equação biossocial
desencadeando a tempestade. No caso de Lima tudo corroborou para o naufrágio
físico do escritor; sem posição social definida, pois negava valor a tais
coisas, absorvido pelo álcool, mal visto pela sociedade de falsos burgueses
medíocres, compreendendo que a cor ainda mais o afastava dos homens,
mergulha-se irremediavelmente no país das alucinações, onde os lampejos da
sanidade são milagrosamente aproveitados em páginas que não seriam revistas,
sem com isto, no entanto, desmerecer o valor da obra. Não quis e não pôde fazer
trabalho de ourives; se o fizesse, se escrevesse como Machado de Assis,
"com medo de Castilho", seria um dos mais perfeitos estilistas do
romance nacional.
Vive ainda naquilo
que deixou; a forma estética não desaparece porque o ritmo da vida romanceada
pelo escritor é o mesmo, apenas mais sufocado pela civilização que hoje sobe os
morros lavados e super-povoados da cidade que transpõe os limites da baía
lendária. Voltasse o romancista e as emoções estéticas seriam para ele as
mesmas. Nada modificou daquilo que viu nas almas de seus habitantes. As
dificuldades sopesam os subúrbios e seus moradores já precisam ir além, pois
que o ruído da avenida já lhes bate às portas. "'Isaías Caminha" não
lê os telegramas pachorrentamente, mas ouve-os pelo rádio e "Policarpo
Quaresma" é uma inútil resistência à sociedade que caminha sempre
sufocando os incautos e imprevidentes.
E a história sempre
se repete!
***
O romancista percebe
o drama que se vai desenrolando nas páginas do livro como se o sentisse na vida
real. É neste aspecto filosófico de não se escravizar à tortura da criação
literária, mas apenas senti-la e transpô-la com a mesma intensidade emocional,
que Lima Barreto atinge uma posição interessante na história do romance
brasileiro. O autor não modifica ou cria uma situação; não é capaz de transviar
um personagem para gáudio de uma tendência filosófica ou uma predileção
individual; não falseia o ambiente para que ali possa viver o homem de seus
intuitos. Os acontecimentos existem na feição natural do próprio encadeamento.
Não se desvirtuam na "possibilidade" mas concretizam-se na
"realidade". O clima do livro é a cópia do mesmo clima externo. Há,
pela formação cultural condicionada ao estado pessoal do romancista, uma
exacerbação de caracteres e consequentemente uma leve hipertrofia caricata das
pessoas em suas modalidades diferentes, que não radica à estrutura orgânica da
obra, mas atinge-a somente no seu feitio superficial. A crítica vê nesta
especificidade criadora de Lima Barreto uma falha técnica, ou então um recurso
de incapacidade construtiva. Porque o autor de "Numa e Ninfa", às
vezes, nos dá impressão, em grande parte de suas obras, de um retratista, onde
a magia do espetáculo é soberana em confronto com o romancista-autor. Em sua
aparência literária a concepção estética dos romances de Lima é fraca, pois
embora possuidor de um estilo característico para desenvolver os fatos em sua
entrosagem descritiva, não quis torná-lo instrumento de feição estética,
portanto de elevado valor literário, como dele se utilizaram Machado de Assis,
Latino Coelho e Anatole France. Contrariou, sempre, a teoria do velho Lessing,
que defende a linguagem como o elemento primordial da concepção estética.
Aliás, Lima Barreto
sempre repudiou a construção apolínea da frase. Negava instintivamente ou
talvez por simples atitude. Fazia parte tal gesto do complemento biológico do
escritor. Não se pode estudá-lo sem que se apreenda esta constância na
existência do infeliz mulato: uma vida humana negando-se à felicidade pelo
instrumento da inteligência!
Nestes escritores a
realidade confunde-se com a fantasia, o incriado iguala-se ao realizado pelo
espírito. Há, por isso, dificuldade da crítica no julgamento destas
individualidades literárias. São raros tais casos de estranha complexidade, mas
existem nas civilizações imprecisas. Lima Barreto é um destes. Nem tanto quanto
Machado de Assis ele se transpõe para o romance, mas quando o faz, não procura
desmembrar os acontecimentos na técnica de "Brás Cubas", mas até
mesmo os salienta como em "Isaías Caminha".
Enquanto Machado de
Assis é o filho vitorioso da cidade e o indivíduo que assistiu ao fastígio da
glória criada pelo esforço próprio, numa demonstração vigorosa do valor do
homem e da realização do intelectual, Lima Barreto é o produto que sucumbiu à
atmosfera que o cercava. Não teve forças para a reação que se podia esperar
dele e deixa um mistério insondável na atitude que sempre tomou nos momentos
mais decisivos de sua existência dolorosa e pungente. Negava sempre e às vezes
sem ser necessário fazê-lo. Os estudiosos de sua produção são concordes em
dizê-lo um revoltado e que só escrevia para vazar o ácido desta vingança contra
a sociedade de seu tempo. Não foi um crítico insensato, apesar dos excessos da
linguagem e do gume frio das observações. Caracterizou a época com acrimônia,
porque não se pode deixar de ver nesta maneira de agir uma suposta
auto-crítica, impulsiva e natural nos indivíduos rebeldes e inteligentes; o
escritor, impotente por uma regeneração, sentia, no entanto. o prazer da recriminação
voluntária, se bem que inoperante. Tinha consciência do que estava realizando,
sabia que poderia ter criado obra imperecível na ideia e na forma, mas isto
seria naturalmente uma negação à liberdade que ele desejava viver
desordenadamente, como evidente protesto ao meio conspurcado de funcionários e
jornalistas medíocres, que não o compreenderam e nem podiam perceber tal gesto
num mestiço dipsômano e erradio.
Nesta caminhada não
se sujeitou às doutrinas da sociedade assim como não se submeteu às normas da
estética literária. O estilo era o reflexo desta vida vadia: solto,
descolorido, simples, natural, humano e vivo. Não tem o ritornelo da frase na eurritmia
dos sons. As cores não se cruzam para o reflexo das cenas. Tudo é água clara;
não há contraponto ou acordes sinfônicos. No entanto, as criações de Lima
Barreto vivem ainda. Deu-lhes o autor um sopro de realidade, porque as pintou
no claro de suas alegrias e também no obscuro de suas caídas. É a vida e ninguém
melhor do que ele para descrevê-la!
A linguagem é um meio
de ênfase, mas não é um princípio criador, escreveu João Ribeiro. Provou-o o
autor de "O triste fim de Policarpo Quaresma".
Lima Barreto
aproveitou no estilo fluente o incrível poder de marcar as criações de seus
livros com traços indeléveis e cicatriciais. Não há quem o leia sem ter sempre
ao lado as figuras romanceadas pelo escritor. Sentimo-las reais, na rua, nas
repartições e nas festas.
Onde porém elas
sempre estão, na eterna filosofia do cotidiano, é no meio da multidão. Vivem aí
democraticamente bem. A sociedade aceita-as compulsoriamente, porque elas
constituem um estágio da mediocridade humana. Não se pode fugir à pressão do
comum que nos embaraça a todo momento, na luta ingrata do espírito contra a
matéria. Desta luta fugia Lima Barreto, quando embriagado, procurava entre a
escória dos degenerados um pouco de ilusão. Era, porém, na composição estupenda
dos romances que encontrava alegria, pois que como bem afirmou Mário Pilo
"l'arte è un poderoso analgésico contro ogni male, contro ogno noia,
contro ogni fasdidio."
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ORSINI CARNEIRO GIFFONI
ORSINI CARNEIRO GIFFONI
Revista
"Letras Brasileiras", novembro de 1943.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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