Na falta de
ideias claras
Julgar um homem pelas suas obras parece coisa natural e
lógica e tão fácil que correntemente vamos classificando mortos e vivos com uma
segurança e convicção só comparáveis à certeza e rigor crítico dos que sobre o
mesmo assunto têm exatamente a opinião contrária. Tais exercidos de crítica são
inocentes quando se trata de estranhos. Com os que amamos e veneramos o caso é mais
melindroso e requer cuidado.
A gente preclara que escreveu antes de mim tem a fortuna de
possuir sobre Eça de Queirós ideias claras e precisas, a que chegaram por análise
e por síntese, tratando com o escritor, estudando os seus livros. As ideias
claras afirmam muito o estilo, animam o andamento das frases pela estrada
batida da prosa encomiástica. Com elas vai longe um crítico. Vai e volta. E as mesmas
ideias refazem a jornada literária. São disciplinadas e cômodas, dão ao
discurso a graciosa virtude da facilidade, que particularmente se preza nas
democracias intelectuais. Têm, porém, o inconveniente de serem impessoais, de
assentarem a todos com a mesma odiosa justeza das roupas feitas, que os
fabricantes por grosso talharam pela média das estaturas comuns e que têm
sempre o ar de não pertencerem a ninguém, de serem do regimento ou da comuna.
Para as necessidades mnemônicas das histórias de literaturas nacionais esses nivelamentos,
essas compressões e deformações classificativas de um gênio individual podem
ser provisoriamente úteis; para dar-lhe apreço e glorificá-lo é que não. Há
certos adjetivos folgados nas cavas e de ampla roda, há frases mal panejadas,
em pregas mal dispostas, caindo fora do lugar, há discursos domingueiros de muita
vista e grande estilo, que injuriam
pela impropriedade. A injúria não está na insuficiência ou no excesso da
homenagem, está na indiferença da sua objetivação e consequente insinceridade.
Estou certo de que até o grande Hugo recusaria uma apoteose que primitivamente fosse
destinada a Shakespeare, como uma palma triunfal a que apenas se mudasse a inscrição
das fitas.
Certamente não se aplica a presente homenagem ao primeiro
prosador português o que exageradamente digo sobre o papel nefasto das ideias claras no
julgamento dos grandes homens através das suas obras. Neste caso particular a
precária psicologia cede o campo à admiração incondicional e sincera. Mas no
meio do sussurro admirativo várias tentativas de filiações, de explicações estéticas
revelam a eiva irreprimível, a tenção do julgamento e classificação do escritor
celebrado. Temos umas frases prontas e ocasião de as empregar: que importa que
nelas não caibam trinta anos de labor fecundo da vida de um grande artista?
Sempre um canto da sua figura lá se
achará contido e medido, parcela de retrato...
Paralelos, medidas, juízos e classificações — obra ociosa e
vã! Quem as empreende presume que aproveitarão ao objeto da sua consideração;
porém mais frequentemente, como nas marchas triunfais de noite, a claridade do
archote dá primeiro sobre o porta-facho. Às vezes o triunfador se esquiva e
sobe a alguma varanda para contemplar a sua glória que passa em clarões e
vivas. E a procissão continua desapercebida, ébria de entusiasmo, louca, simbolicamente.
Tem essa miséria a glória que a turba vil que nos aplaude a si mesma se aclama,
exaltada na grandeza de um dos seus. Suprimido o escravo insultador dos triunfos
antigos, resta esse odioso memento da nossa filiação democrática. E apesar do
seu sábio descuido da crítica e por mais afetuosa e singela que seja a
manifestação da Revista Moderna, o claro
e sutil Fradique Mendes vai aqui ver-se mal explicado, senão mal entendido, pelos
seus aclamadores, que o vestiram de ideias claras para o demonstrar ao público.
Um ensaio psicológico sobre Eça de Queirós, ideias sintéticas
sobre a obra de um homem que há longos anos vem trabalhando para a sua língua e
para o seu povo com a assiduidade e sinceridade de quem trabalha humildemente
para Deus, que tem formado a sua alma ao contato do mundo e que a não tem posto
nos seus livros, porque almas não cabem em livros, demonstrações do seu gênio
nunca me pareceram necessárias — unidade do público que sou. Sinto-me feliz de
viver num tempo em que o pude conhecer e amar, sem carecer de o buscar disperso
em livros refletindo desigualmente generosos impulsos e agitações dos vinte anos
e contemplações serenas da idade madura. Sobrasse-me ainda mocidade e memória e
eu faria como o que aprendeu a Relíquia
de cor, para ornamento do seu espírito e graça e conceito do seu discurso. Esse
é o verdadeiro culto e devoção. O resto são variações literárias sobre o tema
conhecido da glorificação do Mestre.
---
DOMÍCIA DA GAMA
Revista
Moderna, 20 de novembro de 1897.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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