A crítica social no romance de Eça de Queirós ainda está por fazer. E no entanto que admirável estudo tentar todos os escritores que possuem uma orientação inteiramente moderna e que empregam na análise literária os processos de anotação filosófica e de definitiva conclusão científica!
Geralmente o público letrado não vê no Primo Basílio ou no Crime do Padre Amaro, na Relíquia ou nos Maias senão a evolução literária do romance, as altas e poderosas qualidades de um sugestivo artista que tem sabido compulsar como ninguém entre nós o documento humano, um raro experimentador e um observador original. Mas na obra de Eça de Queirós há mais do que pura literatura e preciosidade de estilo, há teses que o romancista desenvolve com um espírito de independência crítica e uma intuição de analista sociólogo, que raras vezes encontramos cá fora em geniais escritores da Europa contemporânea. Com a visão clara de um pensador que é ao mesmo tempo um dos primeiros artistas da língua portuguesa neste século, — senão o primeiro, — Eça de Queirós tem ferido na sua obra todos os preconceitos da sociedade burguesa, desde o absurdo e antinatural celibato dos padres católicos, no Crime do Padre Amaro e da crendice grotesca, na Relíquia, até à imoralidade do adultério "chique", no Primo Basílio, ao convencionalismo da agonizante e dessorada sociedade portuguesa, nos Maias. Sem ir até ao fim do seu pensamento como Emílio Zola, em alguns dos seis romances, o Germinal por exemplo, o grande romancista português deixa entretanto transparecer na sua obra, bastante complexa, a aspiração vasta de integral liberdade que lhe anima o espírito de pensador inteiramente do seu tempo. E como hoje todos sabem, não são a jogralidade caduca de um anticlericalismo de melodrama nem a fraseologia vaga e vazia do jacobinismo que reclama a cabeça do rei com feijão branco, as armas de combate que podem e devem manejar todos aqueles que lutam pela renovação das almas, num futuro de liberdade e de justiça social. E, pelo contrário, a análise científica que a obra de arte reanima e aquece pelo influxo espiritual do requinte da forma, o grande instrumento demolidor por excelência.
De uma cerebração superior, Eça de Queirós como não podia deixar de ser, compreendeu também essa alta missão do escritor que tem o respeito de si mesmo e que pretende ter um lugar à parte na vanguarda dos que preparam uma sociedade igualitária e livre. Por isso nós aplaudimos o seu consciente e duplo esforço de artista e de pensador, saudando, nesse nome tão querido e tão glorioso, mais um irmão de armas na obra três vezes santa da demolição de todos os preconceitos de casta e um precursor da humanidade feliz e libertária de amanhã!
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XAVIER DE CARVALHO
Revista "Ilustração Brasileira", 20 de novembro de 1897.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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