Eça de Queirós por Abel Botelho
Não há aí quem o não conheça, com o seu agudo perfil inteligente,
o seu andar ao mesmo tempo desmanchado e rítmico, a sua ampla testa arejada de
gênio, o mento contumaz, o supercílio doce e profundo, no olhar zorato e
inquieto uma ânsia febril de apreensão, e no doloroso franzir das pálpebras,
nos vincos da longa face emaciada, no rictus
de sarcasmo dos seus lábios a dolorida expressão do fantasista que o exterior
avassalou, o atormentado esvoaçar da águia que se viu forçada a chatinar na
lama.”
E uma das figuras primaciais da nossa mentalidade, um dos
culminantes e indestrutíveis padrões da literatura e da arte. Assim como Sá de
Miranda e Bernardim assimilaram e abrangeram em si a nossa época trovadoresca; assim como o gênio de
Camões soberbamente encarnou o nosso período cíclico da epopeia; assim como depois
Gil Vicente sintetizou e viveu na exteriorização mais popular, mais caraterística,
mais humana, esse período brilhante e renovador do quinhentismo; e Castilho foi a tradição, Herculano foi um salutar
lampejo medievo, e Garrett foi a galante estadeação do romantismo, — assim
também o Eça apareceu aí no momento em que o liberalismo e o criticismo haviam
entre nós mudado a face às coisas, e em que uma ressicadora sede de renovação
agitava todas as classes, e, num unânime viroteio de vontades e desabrochar de
esperanças, a mais ardida e iluminada fé ao novo ideal norteava e erguia os espíritos
famintos.
Apareceu o Eça e apareceu o Antero. Este no campo abstrato;
aquele sob uma forma ostensiva e concreta. Um esclarecendo os cérebros; o outro
aquecendo as almas. Por isso a influência do primeiro foi mais apreensiva e mais
prática, teve um mais largo âmbito de aplicação, e, para quantos se interessam pelas
manifestações intelectuais, para quantos olham e abraçam com amor os grandes
mestres dominadores do Verbo, a larga figura, afilada e nervosa do autor do Crime do Padre Amaro ficou perenemente
lucilando, como um símbolo sobre os escombros fumegantes do passado.
Assim, a sua aparição e manifestação não foram um mero acidente
morfológico, antes cientificamente representaram uma consequência e vieram
corresponder a uma iniludível e real necessidade. Motivo pelo qual a sua obra
monumental, depois de haver sido num dado momento, como que um estrídulo grito
de clarim, um vitorioso emblema guerreiro, ficou perduravelmente constituindo
para as gerações subsequentes um dogma sagrado e resplendente. O Primo Basílio é uma bíblia. Os Maias, a Relíquia são outros tantos inapagáveis versículos dessa maravilhosa
pandeta, para sempre viva, ardendo no
nosso espírito, e que a rudes golpes de analise abriu sulco no dolorido espanto
da nossa alma.
Por isso todo o bom português ama, admira e adora esse
formosíssimo, portentoso e colossal edifício literário, todo em ricos mármores,
traçado em largas linhas de síntese, baldaquinado de aladas fantasias, da mais imaginosa
e bela eurritmia, rigoroso e fantástico, idealista e pagão, opulento de imagens
que são espelhos, de conceitos que são colunas, de conclusões que são como
formidáveis cúpulas audaciosas, para sempre erguidas na ampla serenidade azul
da nossa gloriosa história!
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ABEL BOTELHO
ABEL BOTELHO
Revista
Moderna, 20 de novembro de 1897.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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