EÇA DE QUEIRÓS, O ESCRITOR POR EXCELÊNCIA
Há meses apenas num jornal de lá-bas, dessa clara e dormente Lisboa dos pregões, dos mármores,
das varinas e do sol, eu escrevia, a fechar um artigo, estas linhas:
“A cerrada ignorância do nosso meio, a inveja que como os
ventos da peste açoita desapiedadamente as grandes estaturas, preguiças e indiferenças
moles do nosso temperamento de meridionais neo-árabes, fazem com que, a nenhum
dos grandes homens de Portugal, exceto não sei por que bendito acaso João de
Deus, que, nesta década de agonia cerraram os olhos para a vida fosse dada a
consoladora ventura de assistirem a um espontâneo movimento da opinião em seu
favor, de apoteose festiva e grandiosa da sua obra, do seu gênio e do seu caráter.
Morto para a jucunda luz que as pesadas cortinas das suas pálpebras não
deixaram entrar a banhar o íris dos seus olhos magoados e taciturnos, espectro
de si mesmo, gênio que a desgraça maior ainda tornou, não sei quantos anos Camilo
errou trágico e desvairado pela vida sem que a clamorosa voz de todos nós dizendo-lhe
quanto amávamos a sua obra levasse um relâmpago de alegria à noite sem astros
daquela alma; para uma ilha dos Açores deixamos partir, a caminho do suicídio,
esse Imenso e Santo Antero, um dos mais altos gênios e dos mais puros caracteres
que a humanidade tem produzido, sem que lhe saíssem a embargar os passos as
nossas rosas, as nossas palmas e os nossos beijos; e por último deixamos agonizar
e morrer sem um murmúrio doce de ovação esse dramaturgo extraordinário, espécie
de Shakespeare da nossa história, Oliveira Martins, o imortal autor da Vida de Nun’Álvares. Sirva-nos esta
lição para o futuro de contrita emenda para o nosso erro. Que nós, os moços,
não esqueçamos a primeira oportunidade para promover a consagração a que têm
direito quatro ou cinco grandes espíritos que, pelo seu gênio e pelo seu caráter,
honram a terra portuguesa. Eça, o nosso grande e poderoso romancista, em
primeiro lugar, dois ou três poetas e um crítico que pelo seu trabalho
constante é um nobre exemplo à confiada e risonha indolência de todos nós, em
seguida.”
Pouco tempo volvido sobre a publicação deste artigo, à notícia
que por um comum amigo eu recebera da ida de Eça de Queirós a Portugal corri à casa
do Antônio Nobre e Justino de Montalvão para combinar a apoteose a fazer-lhe. O
genial romancista não saiu porém de Paris e agora, mal chego à tumultuosa
capital do mundo, tonto ainda e meio deslumbrado, recebo a boa nova de que
altos e nobres espíritos vão dedicar na bela Revista Moderna um número de consagração a Eça de Queirós. Bênçãos
caiam sobre os que tiveram tão formosa ideia — e a realizaram.
Eça é a mais culminante eminência das letras portuguesas no
nosso tempo e, como artista, o mais supremo, o maior dos cinco séculos de literatura
nacional. Garrett, que foi um admirável artista também, é diminuto ao seu lado
e não sei na verdade que haja a esta hora na Europa nenhum outro cinzelador da
forma, tão inquieto e tão perfeito, tão requintado e tão ateniense, como poucos
são também os escritores que o igualem e raros os que o excedam. Ele é um
Antônio Vieira que à sonoridade e à força juntasse a sensibilidade e a
delicadeza de Garrett e a ironia de Tacheray e de João Paulo Richter.
Comparados com os seus livros o que vale o diletantismo cerebral
de Barrès, interessante e agudo de resto, o preciosismo fino e nervoso dos
Goncourt, a analise infinitesimal de Bourget, examinando os corações das parisienses
com uma lente de relojoeiro? A obra de Eça é como uma cidade de mármore, cheia
de sol, perfumada de rosas e sob um céu eternamente calado e azul. Nas suas
ruas agita-se, com movimento próprio e vida ordenada e calma, uma colmeia
d'almas. E o bom Jorge do Primo Basílio,
o Padre Amaro, a Amélia e a São Joaneiro do Crime,
a doce Maria Eduarda dos Maias, o
Carlos, o portuguesíssimo Raposão da Relíquia,
o frascário Teodoro, o mefistofélico João da Ega e a galeria suprema dos
grotescos — o Conselheiro Acácio, o Visconde Reinaldo, Steinbroken, os Gouvarinhos,
o Tomás de Alencar.
A ironia do autor desse maravilhoso Mandarim é, quanto a mim, a qualidade dominante do seu gênio e dela
resulta aquele seu doce ceticismo, que longe de ser metálico e amargo como o do
autor da Thais, trai ainda a
ancestralidade portuguesa de Eça, a bondade da admirável raça de amorosos e de
poetas donde brotamos.
Por ele Eça muitas vezes recorda-me o fino e agudo Renan.
Ao admirável criador d'almas, ao Fídias da prosa portuguesa
que primeiro a desarticulou, lhe tirou a rigidez clássica e a tornou dúctil e
sonora, capaz de se adaptar a todos os assuntos, vestir todas as ideias, exprimir
todos os estados de consciência, grafar todas as sensações, fixar todas as cismas,
falta porém e apenas uma coisa — crer.
Ah! acreditasse ele com devoção e a impossibilidade, tão filosófica
e tão alta embora, de Flaubert não o tocaria, nem o amargo pessimismo do genial
espírito, que sonhava gravar nos símbolos eternos da Tentação e de Pécuchet
toda a vida moderna o todos os mundos desaparecidos e idos o invadiria florindo
dos venenos do tédio as páginas luminosas o, serenas da sua obra de latino,
nascido nas baías doces do Atlântico, pertencendo ao claro país das uvas loiras
e provindo da magnificente raça dos domadores das tempestades e dos ventos que
outrora haviam defrontado o Adamastor e conquistado as Índias. Tivesse ele fé; pusesse
ele hipnotizado como um bardo seus grandes olhos escuros na Estrela da Manhã,
que ascendendo das grutas da noite vem já anunciando Aleluias e Redenções, os paraísos
d’Amanhã; acendesse a Esperança, à sua volta iluminações e relâmpagos proféticos
e a sua obra teria uma amplidão e ressonância sem igual, banhar-nos-ia duma
emoção mais fecundadora e larga e a alma verdadeiramente poética e boa que nela
bate, sentir-se-ia voluptuariamente cantar o hino augusto e supremo da Vida
Integral e Livre.
Então Eça seria igual a Ibsen e a Zola, superior a Tolstoi,
maior ainda que esse epilético e grande e dispersivo gênio de Dostoiévski e a
sua bela obra revolucionária do Crime,
do Basílio, da Relíquia e dos Maias irradiando
dum foco de concepção sintética, teria uma ação mais ampla e demolidora. O gênio
de Eça, labareda sagrada, em vez de criar Almas, criaria Mundos.
Mas se o romancista não é um Profeta e um Precursor, o
austero solitário de uma ideia, é para mim o maior artista da Europa e dos
quatro primeiros escritores do seu tempo aquele que, no conflito eterno da Beleza,
soube bater-se com maior galhardia e depois de ter percorrido as cinco partes
do mundo da visão à olímpica Atenas regressou vencedor, como um Alexandre coroado
de rosas brancas e de mirtos.
---
DOMINGOS GUIMARÃES
Revista
Moderna, 20 de novembro de 1897.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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