Álvares
de Azevedo!
Eis
aí um nome — que deve de ser escrito em caracteres de ouro no mármore da
História da Literatura; eis aí um nome que deve de viver, viver muito,
aquecendo a nós outros — mancebos que demandamos a estrada do progresso,
caminheiros que tomamos por norte a palavra de Byron, o lábaro da civilização —
Away! — que procuramos tornar esta
terra em que vimos a luz ao primeiro descerrar dos olhos — invejada das nações
mais cultas da velha e vaidosa Europa.
Álvares
de Azevedo!
E
no entanto morreu tão moço, tão moço, quando risonha lhe despontava a manhã,
quando sentia à fronte escaldar-lhe o fogo santo do gênio, quando tinha no
vasto crânio em ebulição um milhão de ideias a criar e desenvolver ainda!
Morreu
tão moço! flor da primavera crestou-a o simoun
do destino, que emurcheceu-lhe as pétalas cor de ouro, e sem viço e sem seiva
tombou à beira do regato, que arrastou-a em sua correnteza.
E
quão vasta que era aquela fronte, e quão fecunda que era aquela imaginação!
Fadara-o Deus para destinos bem altos; mas, meteoro brilhante, cortou por um
momento as nuvens e esvaeceu-se no nada da morte, no silêncio da lousa.
E
hoje pranteia-o uma família, que vive de sua glória; e hoje chora-o seu pai,
seu pobre pai, de que era o orgulho bem legítimo; e hoje choram-no as letras de
nossa terra, a que tanto e tão vivo impulso em tão pouco tempo dera.
Fado
é das letras entre nós! Junqueira Freire morreu ao despontar-lhe a primavera da
existência; Álvares de Azevedo, também, como ele, foi arrastado no torvelinho
da morte que lhe cortou os voos.
Resignemo-nos.
Profetas
da civilização, apóstolos da luz, lançaram a semente fecundante em seu
perpassar na terra; pois bem, reguemo-la, nós outros, obreiros do progresso,
com o suor de nosso rosto, e oxalá que árvores frondosas e frutos doces e
viçosos — venham abençoar nossas noites de insônia, nossas decepções e
amarguras.
Estrelas
cintilantes a luzirem no céu — sejam eles nosso norte, e levantemos-lhes
estátuas, e engrinaldemos-lhes as frontes nos traços vivos de nossos arroubos e
inspirações.
***
A
terra de Bueno e dos Andradas, e onde pela primeira vez soara a voz vibrante do
príncipe guerreiro — que nos deu foros de livres — foi o berço de Álvares de
Azevedo.
São
Paulo, a pátria de tantos heróis que a História canta, iluminou com seu reflexo
dourado a fronte infantil do mancebo poeta.
E
a criança, que balbuciava apenas, cresceu e tornou-se o arbusto verdejante, que
se foi cobrindo de folhas que o vento agita, de flores que perfumam a brisa.
Rápidos
foram seus progressos nos primeiros ramos dos conhecimentos humanos, o laurel
de bacharel em letras pelo imperial Colégio de Pedro II lhe ornou a fronte,
infantil ainda e os primeiros lampejos do gênio começaram a sair daquele
cérebro inspirado.
E
voltou-a São Paulo a conquistar a carta de bacharel em direito.
Foi
aí que lhe nasceram a maior parte dessas composições admiráveis, desses rasgos
estrepitosos do gênio; foi aí que ilustrou o espírito e viu incendiada a
imaginação na leitura aturada, constante, refletida e sisuda dos principais
clássicos — poetas e prosadores da literatura francesa, inglesa, alemã e
italiana; foi aí que se inspirou no incessante meditar da Bíblia, de Ossian, de
Lamartine, de Shakespeare, de Tasso, de Goethe, de Uhland, de Chénier e
sobretudo do Byron inimitável, companheiro constante de suas noites de ardente
insônia, de seus dias passados no silêncio do gabinete.
Foi
nesses poetas brilhantes ou sombrios, nessas leituras fantásticas e tristes, no
delirar do Dante e nos gritos de desespero de Gilbert, que adquiriu Álvares de
Azevedo essa eloquência apaixonada, essa linguagem tão do coração, esse estilo
melancólico, impregnado de doce suavidade, de arrebatamentos delirosos, que
tanto impressionam a quem os lê.
Como
tanto escreveu o em tão pouco tempo, para nós é mistério ainda. Três volumes de
belas produções aí vão publicados o material bastante ainda tinha para mais.
E
para escrever tanto e tão bem, e para ostentar essa profusão imensa de
conhecimentos variados, essa erudição profunda da antiga e moderna literatura,
que a cada passo, a cada momento se depara em suas obras, que de tempo não era
preciso, que gastar de horas, que consumir de dias!
E
não era só nisto que se empregava Álvares de Azevedo. Cultivando a literatura
amena e fácil, inteligência poética, delirante, e inspirada, — culto também
votava às ciências áridas que formam o objeto do curso que seguia. Primeiro
entre os primeiros era ele nos bancos da Academia de São Paulo e os compêndios
de que servia-se acham-se cheios de notas extensas, de reflexões tão bem
cabidas e profundas, que fariam honra aos mais abalizados e distintos
jurisconsultos. Conhecia perfeitamente o Direito Mercantil e a obra que
folheou, como estudante, acha-se tão anotada, que só as reflexões já contidas
forneceriam matéria para um bom volume.
E
apesar desse afegar constante de trabalho, desse estudar contínuo, desse
escrever sem interrupção e sem descanso — ainda restava-lhe tempo para
desenvolver na esperançosa mocidade que o rodeava — o gosto pelas letras, a
aspirações da glória.
Mas
tanto afã, tanto lidar de noite e dia alquebrava-lhe o corpo delicado, e o
jovem arbusto pendia a haste para a terra, ao sopro violento do furacão. Muita
vez ao trabalho fatigante de um dia e dois e três, sem trégua, sem interrupção,
vinha-lhe a prostração e o desalento; — e a palidez das faces e o bater fraco e
sumido do pulso indicavam o abatimento e a diminuição das forças.
E
demais à prostração do corpo vinha juntar-se o desalento d'alma. O coração tem
pressentimentos, cuja origem ignoramos, mas que nem por isto deixam de ser
infalíveis — como as sentenças lavradas no livro misterioso do destino.
Perseguia
incessante ao jovem poeta — a ideia de que cedo, muito cedo seria arrancado da
terra que pisava, indo dormir no silêncio lúgubre da campa o sono de finados.
'
E
tão jovem morrer!... Morrer deixando lágrimas à sua pobre mãe, que amava-o tão
de dentro d'alma; a seu pai, a seus irmãos, que lhe admiravam o gênio e se
orgulhavam dele!
E
perseguia-o essa ideia dia e noite, no silêncio do gabinete, à sós com suas
reflexões, e no ruído das festas, na vertigem da valsa.
E
de sua alma que assim padecia, e desse desalento terrível da vida, que lhe
comprimia o peito, tirava essas notas dolentes e sentidas, ou esses gritos
profundos, estridentes, que não podemos ler, sem que horrível calafrio nos
venha gelar o sangue.
E
morreu: o arbusto virente que se debruçava à beira do regato viu cair uma por
uma as folhas que lhe formavam a coma, as flores que perfumavam a brisa, e
deixando também pender a fronte foi arrebatado pelo impulso da correnteza.
"—
Que fatalidade, meu pai!"
Foi
o último adeus do moribundo, a saudade legada a nós outros, seus companheiros,
soldados de que era o chefe.
E
morreu!... E o sol da literatura pátria anuviou o semblante, e o anjo da glória
desdobrando as asas cândidas lhe cobriu o semblante — que desbotara a morte.
Que
importa! Morrerá por ventura o gênio que ilumina a terra? Álvares de Azevedo
pertence a essa raça de homens, que vivem sempre nas páginas imorredouras da
história.
"A
sua perda, diz o Sr. Lopes de Mendonça, é daquelas que se devem deplorar, como
um funesto acontecimento para a situação e progresso das letras. Era um talento
inovador, que não limitaria a sua ambição a percorrer as veredas conhecidas,
que alcançaria novos horizontes, impelido pelo fogo da sua inspiração e também
pela madureza de seus estudos."
"Há
vocações, que reproduzem os prodígios das sibilas antigas. Profetizam
involuntariamente sobre a trípode, e deixam-se arrastar pelo entusiasmo de suas
próprias palavras. O jovem poeta não cantava, somente para que as turbas se
deixassem comover pela harmonia dos seus cantos; cantava porque lhe ardia no
peito um fogo devorador, porque a sua alma ébria e palpitante, lhe acendia a
imaginação, e como lhe intimava que traduzisse aos outros a magia dos seus
sonhos, o fervor dos seus desejos, o esplêndido irradiar da sua
esperança."
Digamos
algumas palavras a respeito do escritor, e deixando de parte tudo quanto se tem
escrito neste ponto, vamos emitir nossas próprias reflexões.
Não
é um artigo de crítica o que fazemos aí; não vamos tão longe, que cansaremos no
caminho; o que escrevemos são puramente nossas impressões e não nos peçam mais
do que isto.
Álvares
de Azevedo pertence a essa escola romântica, em que avultam às figuras
gigantescas de Shakespeare, e Byron e Lamartine.
Estudando-os
a todos esses grandes mestres — seu estilo possuo essa grandeza máscula de
ideias, essa elevação de pensamentos, essa beleza de frase, que causam
arrebatamento e prazer.
Lendo
muito o Byron, demasiado talvez, vemos nele, em seus pensamentos, em suas
imagens, esse delírio febricitante, esse arroubo de ideias, esses rasgos
apaixonados, frenéticos e violentos, que caracterizam o autor de Don Juan.
Como
é belo esse estilo fácil e natural que o caracteriza; e que grandeza nos
pensamentos, que elevação na frase, que de inspirações brilhantes de
sensibilidade e de imaginação! Ora semelha o gemido dolorido, a explosão da dor
nas profundidades do peito, e depois, prorrompe em uma gargalhada estridente,
frenética, que coalha o sangue e eriça os cabelos.
O
estilo de Álvares de Azevedo, na poesia além de original, é fácil, natural,
ameno, deslizando-se suave, sem afetação e sem esforço. Nem sempre escoimado de
galicismos, ele o é porém desse purismo ridículo de muitos que querendo à risca
seguir os conselhos de Filinto Elísio caem no excesso contrário. Não há aí esse
estudo forçado de frase, esse estilo imensamente castigado e tão castigado e
tão limado, que à força de escovadelas perde aquele brilho, aquele colorido,
aquele aveludado brilhante, aquele perfume balsâmico, enfim, — como tantos
exemplos e de bem acreditados escritores poderíamos apresentar.
Defeitos
tem-nos ele por certo, mas inteiramente provenientes da sofreguidão com que
escrevia, do pouco tempo que teve para limar e polir o que lhe saíra da fronte
escaldada — nessas noites de delírio e de vigílias. Há somente a natureza,
somente o lampejo fulgurante do gênio; aquilo que a arte podia fazer, o que
competia à reflexão — não lhe deu tempo a voz do arcanjo do extermínio.
Mas
como bolo é mesmo assim em seus defeitos! Como agrada aquele desleixo, aquele
abandono, que às vezes se lhe nota no estilo! Como cala aquela suprema poesia,
que transpira de suas palavras, quando canta-o a mulher que o inspira, ou as
flores dos campos, o canto das aves, o vento do céu, o ciciar da brisa, o
silêncio da noite e a luz pálida e desmaiada da lua! Como sabia dizer tão bem
as afecções do peito, as emoções sentidas d'alma!
Cultivando
com gosto e felicidade a musa joco-séria, ainda não pôde até agora ter muitos
imitadores.
Muitos
têm tentado semelhante tarefa, mas os resultados pálidos e frios de seus
tentames, tem-nos feito recuar desanimados. Aquele belo espécime, a que
denominou de — spleen e charutos — tem atraído a atenção de
todos e os esforços de muitos, mas até agora ninguém, que o saibamos, tem
chegado à altura à que ele subiu naquelas jocosas produções, em que a
naturalidade ressalta. Falta-lhes a inspiração e a espontaneidade, a ideia e a
linguagem o sentimento e o vigor, que possuía Álvares de Azevedo.
Na
prosa é seu estilo pomposo, colorido, cheio de rasgos e de lampejos, como
traços cintilantes de luz no meio do espaço e algumas de suas produções são
verdadeiros poemas — não metrificados.
Imaginação
de fogo era ás vezes demasiado arrojado em suas ideias e em suas opiniões. Para
prova aí estão algumas de suas poesias.
Cremos
que si o poeta vivesse e tentasse dar-lhes a luz da publicidade, certo que lhes
modificaria, não o estilo, que é belo e grandioso, mas o arrojo do pensamento,
o arrojo das ideias.
Temos
terminado esta desalinhada introdução; mas, como dissemos, não foi nosso fim
fazer um artigo crítico literário; escrevemos o que sentimos e nada mais.
Em
nosso coração de moço, que não descrê do futuro desta terra tão bela, tão bem
fadada, erguemos culto farto à memória de Álvares de Azevedo. Sentíamos
necessidade de alguma coisa dizer e escrevemos.
Que
nos desculpem, pois, os críticos; quanto aos outros — cremos que nos
compreenderão.
Rio de Janeiro, 12 de março de 1861.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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