Vi-tó-zé-mé
Vi-tó-zé-mé? que quer isso dizer? Perguntará o
leitor, imaginando que escrevi esse título
nalgum idioma bárbaro e desconhecido.
Tenha o
leitor um pouco de paciência; não vá procurar no final do conto a explicação do
título, que será plenamente justificado, por mais estranho que pareça.
Durante os
primeiros dois meses da revolta de 6 de setembro, fui vizinho de uma família,
que eu não conhecia, composta de marido, mulher e um filhinho de pouco mais de
dois anos, encantadora criança que fazia a delícia dos meus olhos quando todas
as tardes, azoado pela artilharia e pelos boatos, voltava à casa para jantar.
Poucos dias
depois de declarada a revolta, comecei a notar que os pais do menino se
retiravam da janela quando eu me aproximava e volviam ao peitoril quando só
pelas costas me podiam ver, evitando, ao que parecia, o cerimonioso cumprimento
que eu lhes fazia dantes.
Atribui o
fato a alguma intriga de vizinhança, e, como não os conhecia nem eles me interessavam,
não me importei absolutamente com isso. Como de nenhuma vergonha me acusa a
consciência, tenho por hábito não ligar a mínima importância ao juízo – bom ou
mau – que os estranhos possam fazer da minha pessoa. É uma questão de
temperamento.
Quem me fez
cismar foi a criança. Essa estava quase todas as tardes à janela, e, quando eu
passava, dizia-me com uma vozinha esganiçada e penetrante:
Vi-tó-zé-mé.
Debalde
tentei apanhar o sentido dessas quatro sílabas misteriosas, que eu ouvia
diariamente, à mesma hora, e acabaram, como já disse, por me dar que pensar,
não obstante partirem dos lábios inconscientes de uma criancinha.
E isto durou
mais de um mês.
Ao cabo
desse tempo vieram as andorinhas da Empresa Geral de Mudanças, e os meus
vizinhos abalaram para outro bairro, deixando-me a curiosidade fortemente
excitada por aquele vi-tó-zé-mé
enigmático e cronométrico.
Há dias
achava-me num bonde, quando de repente o pai da criança, que eu perdera
inteiramente de vista, entrou no veículo, sentou-se ao meu lado e cumprimentou-me
com muita amabilidade, pronunciando o meu nome.
Bem que o
reconheci: entretanto, obedecendo a um ressentimento muito natural, correspondi
com certa frieza ao seu cumprimento, o que o levou a perguntar-me, sorrindo:
— O senhor
não se lembra de mim?
— Confesso
que não.
— Veja bem.
— Tenho uma
ideia vaga...
— Fomos
vizinhos. Morávamos na mesma rua – o senhor no número 55 e eu no 49 – quando
rebentou aquela maldita revolta cujas consequências ainda estamos sofrendo...
— Ah! sim...
agora me lembra...tem razão...
E não pude me conter.
— Por sinal
que tanto o senhor como sua senhora se retiravam bruscamente da janela quando
me viam.
O pai da
criança baixou os olhos, suspirou, e, pôs-se com a ponteira da bengala e
empurrar um fósforo apagado para uma das frestas do soalho do carro. Depois,
levantou a cabeça, suspirou de novo, e disse-me com uma expressão dolorosíssima
na voz e no olhar.
— É
verdade... Praticávamos essa grosseria... Desculpe... eram coisas de minha
mulher... Que quer o senhor? – Eu tinha a fraqueza de me deixar dominar...
E o homem
procurou num sorriso uma atenuante para a seguinte revelação.
— Ela não
podia vê-lo.
— Ah!
— Não podia
vê-lo, não, senhor, e então exigia que saíssemos ambos da janela para evitar o
seu cumprimento. Eu, com medo a um escândalo, fazia-lhe a vontade... Ora aí tem
o senhor!
— Não me
podia ver? Mas...por quê?
— Asneiras.
Não podia vê-lo, porque o senhor era um florianista intransigente e ela uma
custodista exaltada.
— Ainda bem,
disse eu, sorrindo.
— Conhecia
os seus escritos... ouvia-o conversar, e... e não podia vê-lo!
— Com
efeito!
— O senhor
não faz ideia até que ponto a pobrezinha levava o seu fanatismo por aquela
revolta que nos desgraçou. Imagine que havia um homem, um bom homem, um pai da
vida, que há cinco anos nos vendia ovos... ovos frescos, deliciosos, mais
baratos que no mercado...
— Pois bem:
deixamos de ser fregueses desse pobre-diabo; ela despediu-o porque ele se
chamava Floriano... Coitada! – tinha essas coisas mas era uma excelente
criatura. Não há dia em que eu não chore a sua morte!
— Ela
morreu?!
— Morreu,
sim, senhor... ou por outra: mataram-na, porque naquele corpo havia seiva para
cem anos.
E o viúvo
enxugou uma lágrima que lhe rolava na face.
— E quer
saber o que a matou? Uma bala atirada pelos revoltosos! Foi uma das vítimas
dessa guerra estúpida que tanto a entusiasmava! – Um dia estava debruçada
tranquilamente à janela, quando, de repente –, pá! mesmo aqui...
E o pobre
homem levou a mão à testa.
— Não
sobreviveu dois minutos. Quando lhe quis acudir, já era tarde: estava morta!
E com a voz embargada pelos soluços.
— Deixou-me
um filhinho, coitada! – um filhinho a quem faz mais falta que a mim próprio...
Para que o
infeliz marido chorasse à vontade, conservei-me silencioso durante cinco
minutos; passado o acesso, perguntei pelo menino.
— Está bom,
obrigado... Mora no colégio... é pensionista... e vai indo.
— Lembra-me
bem do menino, porque todas as tardes – quando eu passava e ele estava janela –
dizia-me alguma coisa que eu não podia perceber e, por isso mesmo, tal
impressão me causou, que nunca me esqueceu.
— Que era?
— Vi-tó-zé-mé.
— Ah! já sei...
— Sabe?
— Coisas da
falecida... Era para o moer... Ela ensinava o filho a gritar todas as vezes que
o senhor passava: “Viva Custódio José de Melo!”, e ele, coitadinho! na sua meia
língua dizia: “Vi-tó-zé-mé!”
— E aí está
explicado o título.
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Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (1855-1908)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (1855-1908)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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