7/16/2019

Un recuerdo gallego (Conto), de Cláudio Basto


Un recuerdo gallego

O quanta species!... cerebrum non habet.
(Fedro — Vulpes ad personam tragicam).

Que linda cabeça! mas não tem miolo.
(Tradução livre)


Anda cá, Manola! vem cá! Senta-te ao meu lado... Assim! Deixa-me observar, à beira, a tua cabeça; quero fazer um inventário do que nela trazes.

Mau! Está quieta! deixa-te ficar!

Ora a ver aqui... — Tu não hás de falar! Está quieta e calada, ouviste? — Prometes? Bonita!

Ora a ver aqui, à direita: uma soberba voluta de cabelo, castanho-negro com reflexos de oiro, passando por uma travessa enorme, escura como os teus olhos e crivada de estrelas faiscantes. E do outro lado, a ver: ah, não gostas da inestética simetria! que espesso leque de cabelo a sair do nó de uma artística laçada! Vá, que parece que uma gigântea borboleta, de asas de seda muito abertas, se prendeu enamorada nos fios do teu cabelo!

E logo aqui atrás... que é isto? — Ah! já vejo:  um anel de esmalte azul debruado a prata! Creio que era com anéis destes que as rainhas formosas da antiguidade seguravam também as madeixas.

E aqui atrás de todo? — Oh, que monumental pente! afigura-se-me que do castanho do teu cabelo nasce uma palma de âmbar aljofarada de cintilações estranhas!

E que chuva de ganchos, negros uns, doirados outros, alguns de prata, muitos da cor das rosas, — todos reluzentes, a salpicar o teu cabelo, castanho-negro com reflexos de oiro!

E faltava-me ver esta fita de veludo cor de mel, que soergue, em um novelo, grande parte dos teus cabelos... — Como não reparava eu nesta fita de cor tão doce a estrangular a tua cabeladura, se ela é a chave do teu engenhoso penteado?!... e termina aqui à direita, por trás da travessa escura como os teus olhos, presas as pontas franjadas em uma fivela de curvas elegantíssimas.

Bem! creio agora que do teu cabelo nada fica por inventariar...

E estes botões de rosa? Ora abaixa mais a cabeça, Manola! deixa lá ver com que arte dispuseste essas flores no alto do teu cabelo... — Muito bem! nada menos de cinco botões de rosa a espreitar por entre uma folhagem miudinha... Que paciência a tua em andares o jardim todo, Deus sabe quantas vezes! para conseguir essas folhazinhas tão iguais no esverdeado da sua cor e na sua melindrosa pequenez!

Ora agora, vamos observar o rosto... — Quê?! pensavas que o rosto não era da cabeça? — Anda cá, Manola, senta-te, senta-te, deixa terminar este inventário galante. Vá, caladinha como até aqui! Percebo os teus escrúpulos, os teus receios... Deixa lá! isto fica entre nós, eu falo mais baixinho...

O teu rosto... Vá lá! deve ter... deve ter uns dez gramas de pó-de-arroz.

Ai, sim? essa não sabia eu! com que então por baixo dos pós uma camada de cold-cream?! Bem imaginado, sim senhora! Por isso o teu rosto, de linhas tão corretas, é persistentemente branco e todo por igual empoado; agora sei por que prodígio a fronte, as faces, o nariz, o queixo... Perdão! se julgas feio o vocábulo, retiro-o: agora sei por que prodígio a fronte, as faces, o nariz, o mento (gostas?) conservam essa impenetrável camada de pó-de-arroz.

E estas sobrancelhas... Chiu, Manola! Estas sobrancelhas, sonhadoramente arqueadas, — que bem pintadas que estão!

E estes lábios, escarlates, sem uma prega, — que bem envernizados que estão!

E estes olhos, olha para mim! estes olhos feiticeiramente escuros, a reluzir entre uma pálpebra empoeirada, alva como a neve pura, e uma pálpebra sombreada como a do sujo vício?!...

E o mais tudo branco: a fronte, as faces, o nariz, o mento, — tudo numa inexpressão de máscara. Está caladinha, está caladinha! — Não que ele, Manola, se tosses, se ris, se choras, se suas, se mexes enfim com os músculos ou com as glândulas do teu rosto de linhas tão corretas, lá se vai o pó e a pomada, lá se vão as tintas, lá se vai a casca rubra dos lábios...

Deixa ver agora as orelhas... Que lindo tom moreno que têm! Tão breves e tão delicadas, como se não rasgam elas ao peso destes brincos, em que há oiro e pérolas e brilhantes e rubis e esmeraldas!...

Agora o pescoço...

Claro que o pescoço pertence à cabeça! Pois não vês que o pescoço não é “tronco”, o pescoço não é “membros”... — o pescoço é “cabeça”, porque sempre ouvi dizer que o corpo nosso se dividia em cabeça, tronco e membros...

Ora deixa-te disso, Manola! não vês que o mais natural é o pescoço pertencer à cabeça? Nunca se separa a flor do pé.

Dá-me licença... — Então? Está sossegada! Agora já pouco falta. Vamos! quietinha até final! Que tem que eu veja o teu pescoço? Não o trazes tu à mostra (e mais do que ele!) tantas vezes?

Dá-me licença! Consente que vá puxando estas rendas, e os tufos de seda, e os tules impalpáveis... — Agora já vejo o teu pescoço, e que lindo tom moreno que tem! E como fica bem no moreno do teu pescoço esta fita de veludo tão apertada, e este colar de pérolas, e esta corrente de oiro aonde se vai prender o teu lornhão, e este outro fiozinho de oiro... ah! vai para dentro muito colado à tua garganta redonda; — deixa ver o que tem...

Ai, não? É por certo o retrato do teu namorado, mas deixá-lo! — também seria demais querer que o teu colo não fosse do tronco...

Agora, para acabar, Manola, afasta-te um pouco de mim, mais um bocado, assim mesmo: quero ver no conjunto, a distância, a tua cabeça, como a brotar, cheia de graça natural e de artifício desgraçado, do torvelinho vaporoso da tua gola branca...

Assim ao longe, batida pelo sol, fazes lembrar uma ondina que tivesse erguido a cabeça entre o espumejar de uma onda, com o rosto ainda coberto da brancura da espuma e agarradas aos cabelos não sei que fantásticas algas!

...Não fiquei a dormir, não, Manola: estava a pensar numa fábula de Fedro, que ainda te hei de contar.


Tui, maio de 1910.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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