Um
nigromante
Quando
o comboio se pôs em marcha, estavam quatro passageiros na carruagem. Não se
conheciam; talvez nunca se tivessem visto; mas ainda o comboio não tinha saído
das agulhas e já eles estavam de cavaqueira. Um deles, muito alto e muito
louro, tipo de homem do norte, sacou da maleta uma almofadinha de ar, soprou-a
até a encher completamente e pediu licença para se deitar. Os outros foram taramelando
à vontade, falando d isto e daquilo, das mil coisas sem importância que
constituem o tema quase obrigado em viagens de caminho de ferro.
Por
acaso tinham os três assistido, na véspera, a um espetáculo curioso, no teatro
da cidade, e em todos tinha feito muita impressão o nigromante, que mais
parecia um santo a fazer milagres que um politiqueiro a fazer habilidades.
Era
lá possível adivinhar o que um espectador, tomado ao acaso, tinha nas
algibeiras, ou ler, de olhos fechados, uma carta metida no respectivo sobrescrito,
não falhando sequer uma palavra! E então aquela de reduzir a migalhas, num
almofariz, um relógio de prata, e logo de seguida, com um sopro, refazê-lo tal
como era, sem a mais leve beliscadura, e a trabalhar na perfeição!... Nem o
diabo era capaz de fazer passar a carteira de um cavalheiro que estava na
geral, sem lhe bulir, para a algibeira de um outro que estava num camarote,
como não era capaz de cortar a cabeça de um pombo, metido numa caixa,
pegando-lha imediatamente ao corpo, besuntadas as superfícies sangrentas com
uma pomada amarela. O homem a quem ele tinha dito que encolhesse uma perna, e
que depois, por mais que fizesse, não conseguiu estendei-a enquanto ele não lha
esfregou com a palma da mão, esse homem era um criado da casa, que ia ali
ganhar dinheiro, prestando-se a burlar o público. Sim, para fazer aquilo era necessário
ter muita habilidade; mas nem Deus já faz milagres nos tempos que vão correndo,
e muitas das coisas que o nigromante fizera, se não fossem puras mistificações,
seriam atos sobrenaturais, revelando o poder divino. Assentaram, ao cabo de uma
discussão larga, em que o homem era um intrujão, fazendo em todo o caso as suas
intrujices com mais limpeza que os seus confrades.
Foi
nesta altura da conversa que o outro se ergueu, até ali de olhos fechados como
quem dorme, e naquele momento fresco e desempoeirado como quem nem pegou no sono.
—
Peço desculpa de me intrometer na conversa; mas esse tal intrujão de ontem à noite,
a que há pouco se referiram... sou eu.
Calcule-se
o assombro dos três! O mais novo, prontamente refeito da surpresa, disse-lhe:
—
Pois bem; eu não acredito em nada do que o senhor ontem fez.
Sem
lhe replicar, olhando-o serenamente, com muita firmeza, o homem alto e louro
disse-lhe que fechas, se os olhos. O outro obedeceu. Fez-lhe então, na fronte,
uns sinais cabalísticos, uns passes rítmicos, como quem traça no ar
desenhos complicados e simétricos. Por fim ordenou:
—
Abra lá os olhos.
O
outro bem queria abri-los; mas dir-se-ia que lhe tinham cosido as pálpebras a
pontos naturais, como se fossem os bordos duma ferida acabada de fazer. Mas
bastou um sopro do homenzinho, alto e louro, a quem havia segundos classificara
de intrujão, para ele os abrir sem a mínima dificuldade. Voltando-se então para
um dos outros, num tom imperativo que não admitia replicas:
—
Abra a boc...
O
outro abriu a boca, e logo o nigromante se pôs a fazer os mesmos sinais, os
mesmos passes que fizera havia pouco para trancar os olhos do incrédulo
viajor. A seguir, esboçando um riso trocista, em que se afirmava o seu triunfo:
—
Feche a boca...
Pude
fechá-la tanto como o outro pudera abrir os olhos. Mas bastou um sopro do homenzinho,
alto e louro, para que a boca se lhe fechasse sem esforço, com a habitual
naturalidade,
O
outro viajante era um velhote alto e seco, muito curvado, mas com a fisionomia
sempre em movimento, e os olhitos muito vivos, guardando muito da sua malicia
de rapaz.
—Os
senhores estiveram aí mas foi a intrujar-me!
Logo
o nigromante, alto e louro como os homens do norte, sem se mostrar ofendido com
o qualificativo:
—
O senhor quantos anos tem?
—
Fiz setenta na semana passada.
—
De modo que a respeito de...
—
Há quanto tempo isso lá vai!
—
E seja em que condições for em que se encontre, faça o que fizer...
—
Isso sim! Foi chão que deu vinha.
Sem
lhe dizer nada, com muita serenidade, o nigromante pôs se a fazer sinais cabalísticos,
passes misteriosos. Passados alguns segundos:
—
Então?
—
Como nos meus tempos de rapaz!
Brincava-lhe
uma alegria doida em toda a fisionomia enrugada, e parecia que uma chama de
sensualidade febril lhe punha clarões nos olhos.
Afinal
conseguira, sem vender a alma ao Diabo, rejuvenescer como o Dr. Fausto, e esse
milagre de ressurreição, em nada inferior ao que vão relatado na Bíblia,
operado por Jesus na pessoa de Lázaro, esse milagre espantoso, duma
autenticidade irrecusável, quem o fizera sem elixires, sem drogas e sem
orações, sena ao menos pronunciar o fiat da literatura clássica, fora
aquele homem muito alto e muito louro, tipo de escandinavo, que ele vira
trabalhar, na véspera à noite, num teatro, e que lhe dera mais a impressão dum
santo a fazer prodígios, que um politiqueiro a fazer habilidades.
Parecia-lhe
agora que o comboio se não mexia, não andava, a máquina pegando-se às calhas
como um sendeiro, arfando como um jumento a contas com uma tuberculose, das que
nunca se tornam galopantes.
Talvez
o milagre fosse de curta duração e ele, improvisado Fausto, morreria danado por
toda a eternidade, sem possibilidades de salvação, maldito de Deus e do Diabo,
se não pudesse entrar rejuvenescido em sua casa, apresentando-se à sua
Margarida, que por sinal era Engrácia, intrépido, vigoroso como há cinquenta
anos, quando se casaram. E o maldito comboio a arrastar-se como uma jiboia
farta, arfando a máquina em estremeções de impotência, sendo de recear que
rebentassem os tubos e a caldeira.
Curvou-se
um pouco o nigromante, soberbo do seu triunfo, e intumesceu as bochechas como
quem vai soprar. Recuou o velhote, num repelão, como quem vê diante de si uma
fera de goela hiante, e sacando da algibeira um revolver, apontando-lho à cabeça:
—
Se você sopra, faço-lhe saltar os miolos.
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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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