Um
grito no deserto
Ao Nilo Costa, magnífico camarada,
belo talento de panfletário – esta rajada de indignação.
O grau de cultura de um povo aquilata-se
pelo número de jornais independentes que o mesmo possua.
O jornal independente exerce sobre a
consciência popular uma influência extraordinária; orienta, informa, ventila
causas justas, espalha opiniões e normas de benefício geral e vai assim alicerçando
lentamente no seio da coletividade o senso da justa medida para julgar as
coisas da vida e o hábito da lógica para analisar tudo quanto existe.
É verdade que a imprensa
desinteresseira e honesta só acarreta sacrifícios e outras dificuldades.
Na formação do caráter de um povo ela
desempenha o papel predominante, e todo o povo que tiver a desdita de não a
possuir, está fadado a passar pelo vexame de ver a balança da sua justiça
transformada em prato sórdido de balança de algibebe, onde os políticos relapsos,
mancomunados com jornalistas leiloeiros da consciência, pesam o produto
extorquido do povo incauto.
No Brasil esta imprensa prolifera
assombrosamente, não só nos grandes centros, onde afinal já há certo grau de
cultura, mas nas pequenas cidades de todo o interior do país.
No Estado de S. Paulo, por exemplo,
há, em todas as cidades do interior, um jornaleco fundado por esta ou aquela
facção política, por este ou aquele grupelho de indivíduos para explorar,
chantagear, traficar, latrocinar, ludibriar, mistificar, patenteando sempre que
a razão não é de quem a tem nem de quem tem talento para ter, como diz o
brocardo, mas sim de quem souber com astúcia e velhacaria turvar as águas e
lançar a confusão, para no fim, tirando partido de tudo, dizer que está de
posse da verdade e da lógica!
O mal destes pasquins, alcoviteiros e
porta-recados de corrilhos políticos, onde não há nem uma chelpa de verdadeiro
patriotismo e de amor à coletividade, é tão enorme e nefasto, que Euclides da
Cunha chegou a exclamar que se o Brasil tem inimigos, eles é que são os únicos
e verdadeiros!
Cavam assim a sepultura do caráter,
desmoronam esse resquício de bom senso ingênito na consciência popular,
avinagram as ideias, deturpam os bons sentimentos, colocam a mentira no trono
da verdade, a injustiça no altar da justiça, o roubo no lugar da virtude,
encarceram os homens de bem, abrindo ao mesmo tempo as cadeias para pôr em
liberdade os vigaristas e os facínoras da pior espécie.
Ora, resulta de tudo isto que sendo o
nosso país um vasto campo aberto à cobiça de falcatrueiros de toda a estirpe,
vindos das cinco partes do mundo, não é raro ver-se um aventureiro de qualquer
raça, enfronhado em qualquer cidade, vila ou povoado do estado de São Paulo,
guindado de um momento para outro às culminâncias da política e da imprensa.
Os filhos do lugar percebem isto, mas
longe de apurarem e reduzirem ao silêncio tais aves de arribação, se limitam,
muito pachorramente, a sorrir e a bocejar; cientes de que é necessário correr
com o intruso que se enriquece, fazendo imprensa assalariada, jornal amarelo,
dão de ombros e, como Pilatos no Pretório, lavam as mãos, dizendo: — “não vale
a pena!...” E ante essa frase que traduz toda a indolência de um povo que ainda
não aprendeu a amar suficientemente o seu país, os arrivistas respondem num
largo gesto de triunfadores: “vim, vi e venci!”
E a imprensa assalariada, ora
exercitada por aventureiros de duvidosa procedência, ora dirigida por
brasileiros canalhoides, mas corrompidos do que os outros, prossegue a sua
marcha triunfal, alastrando a miséria moral no seio das populações!
Até quando durará esta inominável
desgraça?
Até o dia em que os brasileiros
tomarem vergonha e, possessos de cólera, fizerem justiça, expurgando do
organismo social todos esses ladravazes da imprensa assalariada.
Nos países em formação, e neste caso o
Brasil, a imprensa que não tiver em mira uma grande aspiração e não se bater
por uma ideia concorre para o desfibramento da raça, cavando a ruína moral do
povo.
Um povo somente é forte e cônscio de
seus lídimos direitos de pátria, quando sabe pensar para saber querer e lograr
se impor.
A justiça, fator primordial do
alevantamento físico, medra somente quando encontra a seara propícia, quando
encontra consciência formada e espírito equilibrado.
Nada disto encontrando, a justiça
degenera, periclita, claudica, se amesquinha e morre, matando ao mesmo tempo
esse mesmo povo que não a soube acolher e assimilá-la, devido à falência de uma
certa perfectibilidade moral, de que a mesma carece para germinar, vicejar,
frutear e pompear com orgulho entono!
Na justa das competições e dos
valores, o povo que não tiver um ideal de unificação que seja o reflexo da
cultura do seu país e um prolongamento dos desejos e aspirações de sua raça,
corre o risco de ser relegado para um segundo plano e escarnecido pelos fortes
e audaciosos.
Nos nossos dias temos um doloroso
exemplo; na Conferência da Paz, onde as potências, com garras de felinos,
tiveram ensejo de todas reunidas mostrarem o brilho sinistro dos colmilhos e o
lampejo assassino das unhas, ainda que salpicadas de gotas de sangue da grande
sangria que enxurrou o mundo, vimos com quanto cinismo e audácia elas
humilharam, vilipendiaram, desprezaram, chacotearam e menosprezavam os povos pequenos
ou mesmo grandes, mas que não ocupam no mundo um lugar de destaque, tanto pela
força moral como pela força bélica.
E os pequenos países, não o Brasil,
porque territorialmente ele é tido como um dos maiores, mas os outros que
concorreram alguns com seu sangue, outros com seu dinheiro, foram e fomos até
nós esquecidos e empurrados, jeitosamente, dessa augusta conferência.
Não cabe aqui fazer a defesa dos
outros povos; façamos a nossa, porque além de ser nosso dever de patriotas, é a
nossa obrigação de jornalistas.
Na tal conferência, diga-se de
passagem, não nos tomaram muito a sério, e sabem por quê?
Porque além de não sermos um país bem
organizado militarmente, não temos opinião!
É fácil não só de se ver como até
mesmo de se explicar: — A imprensa, que deve ser feita por filhos do país e
homens de cultura e probidade, é exercitada em sua maioria por estrangeiros que
fazem desse veículo de opiniões um carro de exploração, que guiam ao seu bel
prazer, por entre os aplausos da multidão analfabeta.
A outra parte, que é diminuta, perde o
seu precioso tempo em discutir somente questões fósseis e assuntos cediços e
velharoucos. É tão nefasta quanto a outra e cava a nossa derrocada coadjuvada
pela arraia melda duma babilônia de jornalecos insignificantes, mal escritos e
pessimamente orientados, subordinados aos interesses de um partido sem
horizontes e ideais, verdadeira corja sem escrúpulos que, pondo-se a serviço do
seu estômago e da sua vaidade, praticam toda sorte de infâmias e roubalheiras.
Enquanto isso, há sempre um ou outro
homem de brio que levanta a cabeça indignado e clama contra esse estado de
coisas.
Clama, mas o seu clamor, o seu grito e
o seu verbo são parábolas que morrem no deserto pérfido da indiferença!
E a situação permanece a mesma: de um
lado a imprensa assalariada que tem ânsias de vender o país a retalho; do outro
lado o povo cansado de ser ludibriado, explorado, traficado, cruza
faquirianamente os braços e deixa tudo correr à revelia, frio impassível,
inerme, pusilânime, sem o mínimo vislumbre de revolta e indignação.
E essa imprensa prossegue avante,
conduzindo na sua caravana a morte do ideal, o cadáver da justiça, o arcabouço
da verdade e o corpo moribundo da opinião!
E em vez de abrir sulcos para lançar
os alicerces de uma pátria nobre, grande e forte, sepulta nesses mesmos fossos
a pátria!
E a caravana avança triunfalmente,
tendo por claque e admiradores um povo inteiro que, à força de ser enganado, já
não distingue mais o bem do mal!
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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