7/22/2019

Um gênio chamado Eça de Queirós (Ensaio)


Um gênio chamado Eça de Queirós
Eça de Queirós — rebento novo e mais lídimo dessa progênie monstruosa em que culminam divinamente, com raízes eternas no vasto solo dos gregos e latinos, Shakespeare, Cervantes, Voltaire, Rabelais, Goethe, Balzac — foi o primeiro e único escritor português que, simplesmente com os seus livros, conseguiu internacionalizar Portugal. Mais do que certos feitos históricos, que através de tão longa e enevoada distância já nos parecem ficções históricas (porque, historicamente, de há muito, desde a implantação do constitucionalismo, Portugal deixou de nos interessar); mais do que isso, encontrou, afinal, a pátria dos navegadores um homem de gênio para nele reviver, universalizando-se. Eça de Queirós é o autor deste milagre internacional. O país se aniquilava: Eça de Queirós é uma compensação da Natureza à decadência de Portugal. Oito séculos de história, de cultura, produziam, finalmente, na hora dolorosa do seu eclipse, um homem de gênio e de bom gosto.
Antes dele, a literatura portuguesa, em conjunto, era, apesar de pura e rica, principalmente regional. E o era não só pela essência como pela forma. De Camões a Herculano, com escala pelos maiores cultores da língua opulenta e bárbara, as letras portuguesas mantêm um caráter de austero regionalismo, que por vezes chega a ser ingenuamente pretensioso. Aliás, sempre foi notada a incapacidade do português para as ideias gerais. Em vão se procurará através das letras portuguesas uma dessas criações universais, um desses tipos de integração social ou sentimental, que se acomodam em todas as literaturas do mundo — Rei Lear ou D. Quixote, Hamlet ou Candide, lago ou Mefistófeles, o doce Hermann "sorrindo à imagem espiritual da formosura", ou o truculento Vautrin "violando as açucenas mortas à beira das estradas". Porque a tragédia comovente de Inês de Castro é mais o produto de uma intriga política de aldeia, sem a larga irradiação de uma tese profundamente humana, e as sombrias façanhas de Eurico representam apenas, sem o estudo fixo de um caráter, um episódio vago da cavalaria. Ainda no grande, no formidável Camilo, quando o seu gênio atormentado, combatido por toda a sorte de adversidades, se não dispersava em novelas desiguais, mal acabadas, escravizava-se, espremia-se furiosamente nas moendas das polêmicas desfibradoras, no exaspero trágico de campanhas pessoalíssimas — isto numa língua que, de tão barbaramente clássica e contundente, jamais foi excedida no representar a velha, a genuína, a grossa chalaça portuguesa.
A língua em que se escrevia em Portugal era um instrumento áspero, solene e duro: não se lhe conheciam nuanças delicadas para esboçar os sentimentos mais sutis, nem ondulação ampla e sonora para abranger o vasto e complexo surto das ideias: numa palavra — ignorava-se-lhe o verdadeiro espírito. Era a língua seca, espartilhada, tabelioa, dos clássicos primeiros, muito preciosa e justa para o seu tempo e seu meio, mas arcaica, insubsistente, provinciana, nestas idades práticas da maior expansão intelectual e econômica — quando não era a língua donairosa, flácida, rotunda, dos últimos românticos, resumindo a Vida e o Universo em apologias de criaturas celestiais e em descrições de mundos encantados.
Certo, os Sermões de Vieira são esculturais e a Nova Floresta de Bernardes é lapidar; mas, apesar de toda a sua divina eloquência e de toda a sua pureza clássica, não constituem uma literatura. E — sem que isto pareça um prurido infantil de irreverência inócua — o próprio Lusíadas, tão grande, tão belicoso, tão sugestivo, se conserva a sua glória através dos séculos, não é tanto pelo padrão de vernaculidade que o soleniza e lhe dá a glória incontestável de código da língua, nem pelas descrições geográficas e evocações mitológicas que o perturbam, mas, principalmente, pelo largo e sadio sopro lírico que o atravessa e anima. Se eu ousasse abrir uma despretensiosa exceção no meio desse monumental atravancamento clássico e romântico, esta seria, entre os modernos escritores portugueses, para Garrett, que, pela universalidade e clareza do pensamento, pela flexibilidade da linguagem, a sobriedade dos tons, a distinção das maneiras, e, sobretudo, pela sabia ironia gaulesa que lhe corria nas veias, é o precursor da nova arte de escrever em nossa língua.
Eça de Queirós, o criador supremo, veio revelar à literatura portuguesa o segredo das coisas eternas. Ele é o artista por excelência. E' o criador do romance português, o romance de caracteres, como Balzac é o grande renovador de processos no romance francês. Com os tipos que criou em meia dúzia de romances, representando integralmente a vida portuguesa contemporânea, realizou este milagre inédito: universalizar Portugal.
Esses tipos são, na verdade, maravilhosos de expressão, de realidade, de vida. Não há para eles fronteiras de ideias, de sentimentos, de costumes, de aspirações: todas as civilizações ilustres os disputam, porque eles participam de todas elas, integrando-se na comunhão humana, sem perderem, entretanto, a particularidade regional que lhes é própria. Ressaltam dessa prodigiosa galeria a mais rigorosa preocupação do detalhe e a mais perfeita visão do conjunto: o apuro da expressão e o patético da ideia. Acácio, o padre Amaro, o cônego Dias, Basílio, João da Ega, Gouvarinho, o Dâmaso e toda a espantosa galeria dos Maias; Raposo, Jacinto, José Matias, Fradique Mendes, Pacheco, o Gonçalinho, instalaram-se para sempre na nossa intimidade, vivendo humanamente a nossa vida.
Há escritores que, cercados de conforto material e prestígio social, escrevem, metodicamente, cinquenta livros, e ninguém lhes cita uma personagem, nem lhes decora uma frase. E os há, em compensação, de vida tormentosa e errante, que, na degradação dos cárceres ou no desalinho das estalagens, como Cervantes, como Shakespeare, compõem três ou quatro volumes que se tornam a glória de uma raça e de uma época, e em que se louva, eternamente, a humanidade agradecida. A imutável característica do gênio é a adaptabilidade universal das suas criações. Todos nós sabemos o que significam Sancho Pança, Otelo, o mercador de Veneza, Macbeth, Romeu e Julieta, como já nos familiarizamos com as figuras secundarias, acessórias, e até com as mais insignificantes da extensa e palpitante nomenclatura eciana — o João Eduardo, o doutor Topsius, o Grilo, o Vilaça, o Tito, com o seu vozeirão de atleta preguiçoso de Vila Clara, e o Videirinha, com o seu violão de fadista épico de Santa Irineia.
Entre uns e outros existe apenas, a distanciá-los aparentemente, a diferença de idades e de temperamentos; no fundo, porém, anima-os, arrasta-os, vincula-os, a mesma fatalidade, o mesmo destino. Depois, a nossa época já não comporta a tragédia, pelo menos como era concebida e representada antigamente. E atendendo a que (mesmo sem acrescentar neste caso o argumento básico da predisposição orgânica do escritor), atendendo a que a ironia é o melhor, o mais seguro, o mais definitivo expoente das civilizações decadentes, tem-se a razão por que Eça de Queirós, ao invés de pintar grandes telas trágicas, traçou prodigiosas caricaturas.
Como escritor mais crítico de ação social que explorador de temas passionais, a mulher desempenha na sua obra um papel bastante secundário — para não salientarmos a sordidez patológica de Juliana e a loucura mística de D. Patrocínio das Neves. Com exceção de Maria Eduarda, a mais enérgica das suas heroínas (tipo de honestidade sofredora e heroica, malgrado a fúria arrasadora de Fialho de Almeida, quando afirma que nos Maias não há uma só mulher honesta), o amor nas outras, quando não é a carne que se entrega, fisiologicamente, na hora precisa, sem arrebatamentos líricos, como em Luiza e Amelinha, é a passividade dolorida e resignada de Gracinha, ou a estima delicada, ingênua, quase insexual, de Joaninha.
Mas, para compensar esta ausência de paixão, de cálida vibração afetiva entre as suas criaturas femininas, ele é o glorificador comovido da amizade, da solidariedade moral e intelectual entre os homens. Eça de Queirós tinha o culto dos seus amigos. Vede, por exemplo, a constante correspondência psíquica, íntima, fraterna, que une Jorge a Sebastião, João da Ega a Carlos da Maia, Zé Fernandes a Jacinto, fundindo-os na mesma ordem de sentimentos e de ideias, sem, contudo, anular em cada um a individualidade própria, que se conserva, ao contrário, inconfundível e flagrante.
Este culto dos amigos, não o celebrou apenas Eça de Queirós através das suas ficções literárias, porque era um prolongamento da sua conduta particular na vida. É uma grande simpatia irradiando de todo o seu ser. Aí estão como provas, entre outros documentos fidelíssimos, esses magníficos retratos pedológicos de Ramalho Ortigão, Eduardo Prado, Antero de Quental, considerando-se mais que, na apologia deste último, Eça de Queirós atinge a perfeição sobre-humana de se diminuir publicamente para louvar o seu amigo, traçando um perfil que está para a moderna literatura portuguesa como na religião os evangelhos estão para Cristo.
Estes e outros ensaios de crítica literária, histórica e social, como os sobre Victor Hugo, Guilherme II, o Conde de Paris, Beaconsfield, a Rainha, Joana d'Arc, os Ingleses no Egito, os Três Prefácios, o Francesismo, vieram revelar novas faces do seu espírito de comentador genial e de criador equilibrado: aí, as suas faculdades de análise e de síntese ganham um vigor rejuvenescido e uma idealização desafogada. Neste contacto direto com a criatura viva, com o fato objetivado — é o mesmo que se observa com outros artistas profissionais, como, por exemplo, Anatole France, o sábio ateniense, muito mais interessante na Vie Litteraire que em algumas das suas obras de ficção; e até com alguns escritores medianos, como esse venturoso Paul Bourget, incontestavelmente o mais insigne dos atuais medianos franceses, e decerto muito menos irritante nos seus estudos de crítica do que nos romances preciosíssimos que urde como bom parisiense — "um parisiense com um ligeiro toque de inglesismo, como pede a moda, que leva para o faubourg Saint Germain, num fiacre, os seus métodos de psicologia, de uma psicologia que cheira bem, que cheira a opoponax, e tomando uns ares infinitamente profundos, remexe os corações e as sedas das senhoras, para nos revelar segredos que todo o mundo sabe, num estilo que todo o mundo tem."
Se fosse possível destacar das obras primas do naturalista horaciano da Cidade e as Serras (livro que é, com a Correspondência de Fradique Mendes, o mais pitoresco resumo, a sátira mais fina do ceticismo elegante do fim do século XIX); se fosse possível destacar das obras primas de Eça de Queirós uma única obra prima, em que todas as outras se resumam e condensem, esta seria, forçosamente, a Ilustre Casa de Ramires. Este livro é o mais belo monumento da língua portuguesa, nos últimos tempos: é um Lusíadas em prosa, é o poema límpido e sonoro do decaído Portugal contemporâneo em contraste com o poderoso Portugal medievo. Produto de plena e sadia maturidade intelectual, dessa tristeza consolada e luminosa do envelhecer, livre de preconceitos de escolas, repousado e sereno, tudo nele é forte, sugestivo, emocionante, formoso, harmônico, preciso, igual, porque aí, de princípio ao fim, um perfeito senso de historiador acompanha e regula a alcandorada fantasia do artista.
Tenho ouvido, com uma insistência devastadora, que em Eça de Queirós o minucioso narrador de fatos esmaga o filósofo semeador de ideias ou diminui o artista evocador de imagens. É que estas, muitas vezes, só dão na vista quando são impostas a muque, aos saltos e aos berros: a descrição, a finura, a sutileza, prejudicam-nas na maioria dos casos.
Para embaraçar o asserto que se funda na suposta ausência de sugestividade, de surto, de força, de que se acusa o autor da Perfeição (se uma tão fácil tarefa tem algum valor), basta lembrar aquele inesquecível epílogo dos Maias (um livro que ainda se não tinha escrito e que se não escreverá mais em língua portuguesa), página que vale por alguns tratados de filosofia, onde Carlos e Ega, depois de bravamente filosofarem, ao mesmo tempo que assentam numa teoria fatalista da existência, proclamando a inutilidade de todo o esforço, correm desesperadamente para apanhar o "americano" que os deve levar ao Hotel Braganza; ou evocar aquele maravilhoso final da Ilustre Casa, superior a muito compendio de história, em que ao lado de Vila Clara e ao pé da Torre de D. Ramires, na doçura da tarde agonizante, "por todo o fresco vale até Santa Maria de Craquede", uma voz inspirada traça genialmente a psicologia de Portugal, enquanto a silhueta melancólica do padre Soeiro, destacando-se no "silêncio ainda claro, de imenso repouso, tão doce como se descesse do céu", pede a paz de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos...
Não, meus amigos! Eça de Queirós é um artista completo: aquilo que não encontramos nos outros, um quer que seja, talvez um quase nada, é justamente nele que vamos encontrar. Por mim, confesso que, em prosa portuguesa, foi nele que aprendi a ler. Repugna-me, por uma questão de pudor estético, apontar as pequeninas falhas desse artista, em quem os defeitos são qualidades: isso é com os críticos, os letrados, os homens de rígido bom senso e convicções rígidas. Guardadas as devidas distâncias, aceito-o, na minha admiração apaixonada, mas consciente, como ele aceitava Victor Hugo, e como Victor Hugo aceitava Shakespeare: comme une brute.
É que ele, como nenhum outro escritor do seu tempo, soube visionar integralmente a vida humana em todas as suas ridículas baixezas e em todos os seus bens consoladores. É que ele fixou maravilhosamente a Vida. E, para fixá-la, teve ainda este grande mérito: transformou uma língua bárbara, dura, áspera, fradesca, solene, hostil, num instrumento plástico, sonoro, dúctil, ondeante, diáfano, sutil: numa palavra — foi o primeiro escritor português que fez paradoxos com a nossa língua. Ele é o mestre — e depois dele, ninguém, que se preze, tem mais o direito de escrever mal a língua portuguesa.

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MATEUS DE ALBUQUERQUE
"Eça de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).

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