Eça de Queirós — rebento novo e mais lídimo
dessa progênie monstruosa em que culminam divinamente, com raízes eternas no
vasto solo dos gregos e latinos, Shakespeare, Cervantes, Voltaire, Rabelais,
Goethe, Balzac — foi o primeiro e único escritor português que, simplesmente
com os seus livros, conseguiu internacionalizar Portugal. Mais do que certos
feitos históricos, que através de tão longa e enevoada distância já nos parecem
ficções históricas (porque, historicamente, de há muito, desde a implantação do
constitucionalismo, Portugal deixou de nos interessar); mais do que isso,
encontrou, afinal, a pátria dos navegadores um homem de gênio para nele
reviver, universalizando-se. Eça de Queirós é o autor deste milagre
internacional. O país se aniquilava: Eça de Queirós é uma compensação da
Natureza à decadência de Portugal. Oito séculos de história, de cultura,
produziam, finalmente, na hora dolorosa do seu eclipse, um homem de gênio e de
bom gosto.
Antes dele, a literatura portuguesa, em
conjunto, era, apesar de pura e rica, principalmente regional. E o era não só
pela essência como pela forma. De Camões a Herculano, com escala pelos maiores
cultores da língua opulenta e bárbara, as letras portuguesas mantêm um caráter
de austero regionalismo, que por vezes chega a ser ingenuamente pretensioso.
Aliás, sempre foi notada a incapacidade do português para as ideias gerais. Em
vão se procurará através das letras portuguesas uma dessas criações universais,
um desses tipos de integração social ou sentimental, que se acomodam em todas
as literaturas do mundo — Rei Lear ou D. Quixote, Hamlet ou Candide, lago ou Mefistófeles,
o doce Hermann "sorrindo à imagem espiritual da formosura", ou o
truculento Vautrin "violando as açucenas mortas à beira das estradas".
Porque a tragédia comovente de Inês de Castro é mais o produto de uma intriga política
de aldeia, sem a larga irradiação de uma tese profundamente humana, e as
sombrias façanhas de Eurico representam apenas, sem o estudo fixo de um caráter,
um episódio vago da cavalaria. Ainda no grande, no formidável Camilo, quando o
seu gênio atormentado, combatido por toda a sorte de adversidades, se não
dispersava em novelas desiguais, mal acabadas, escravizava-se, espremia-se
furiosamente nas moendas das polêmicas desfibradoras, no exaspero trágico de
campanhas pessoalíssimas — isto numa língua que, de tão barbaramente clássica e
contundente, jamais foi excedida no representar a velha, a genuína, a grossa
chalaça portuguesa.
A língua em que se escrevia em Portugal era
um instrumento áspero, solene e duro: não se lhe conheciam nuanças delicadas
para esboçar os sentimentos mais sutis, nem ondulação ampla e sonora para
abranger o vasto e complexo surto das ideias: numa palavra — ignorava-se-lhe o
verdadeiro espírito. Era a língua seca, espartilhada, tabelioa, dos clássicos
primeiros, muito preciosa e justa para o seu tempo e seu meio, mas arcaica,
insubsistente, provinciana, nestas idades práticas da maior expansão intelectual
e econômica — quando não era a língua donairosa, flácida, rotunda, dos últimos
românticos, resumindo a Vida e o Universo em apologias de criaturas celestiais
e em descrições de mundos encantados.
Certo, os Sermões
de Vieira são esculturais e a Nova
Floresta de Bernardes é lapidar; mas, apesar de toda a sua divina
eloquência e de toda a sua pureza clássica, não constituem uma literatura. E —
sem que isto pareça um prurido infantil de irreverência inócua — o próprio Lusíadas, tão grande, tão belicoso, tão
sugestivo, se conserva a sua glória através dos séculos, não é tanto pelo padrão
de vernaculidade que o soleniza e lhe dá a glória incontestável de código da língua,
nem pelas descrições geográficas e evocações mitológicas que o perturbam, mas,
principalmente, pelo largo e sadio sopro lírico que o atravessa e anima. Se eu
ousasse abrir uma despretensiosa exceção no meio desse monumental
atravancamento clássico e romântico, esta seria, entre os modernos escritores portugueses,
para Garrett, que, pela universalidade e clareza do pensamento, pela
flexibilidade da linguagem, a sobriedade dos tons, a distinção das maneiras, e,
sobretudo, pela sabia ironia gaulesa que lhe corria nas veias, é o precursor da
nova arte de escrever em nossa língua.
Eça de Queirós, o criador supremo, veio revelar
à literatura portuguesa o segredo das coisas eternas. Ele é o artista por excelência.
E' o criador do romance português, o romance de caracteres, como Balzac é o
grande renovador de processos no romance francês. Com os tipos que criou em
meia dúzia de romances, representando integralmente a vida portuguesa
contemporânea, realizou este milagre inédito: universalizar Portugal.
Esses tipos são, na verdade, maravilhosos de
expressão, de realidade, de vida. Não há para eles fronteiras de ideias, de
sentimentos, de costumes, de aspirações: todas as civilizações ilustres os
disputam, porque eles participam de todas elas, integrando-se na comunhão
humana, sem perderem, entretanto, a particularidade regional que lhes é
própria. Ressaltam dessa prodigiosa galeria a mais rigorosa preocupação do
detalhe e a mais perfeita visão do conjunto: o apuro da expressão e o patético
da ideia. Acácio, o padre Amaro, o cônego Dias, Basílio, João da Ega, Gouvarinho,
o Dâmaso e toda a espantosa galeria dos Maias;
Raposo, Jacinto, José Matias, Fradique Mendes, Pacheco, o Gonçalinho, instalaram-se
para sempre na nossa intimidade, vivendo humanamente a nossa vida.
Há escritores que, cercados de conforto
material e prestígio social, escrevem, metodicamente, cinquenta livros, e
ninguém lhes cita uma personagem, nem lhes decora uma frase. E os há, em
compensação, de vida tormentosa e errante, que, na degradação dos cárceres ou
no desalinho das estalagens, como Cervantes, como Shakespeare, compõem três ou
quatro volumes que se tornam a glória de uma raça e de uma época, e em que se
louva, eternamente, a humanidade agradecida. A imutável característica do gênio
é a adaptabilidade universal das suas criações. Todos nós sabemos o que
significam Sancho Pança, Otelo, o mercador de Veneza, Macbeth, Romeu e Julieta,
como já nos familiarizamos com as figuras secundarias, acessórias, e até com as
mais insignificantes da extensa e palpitante nomenclatura eciana — o João
Eduardo, o doutor Topsius, o Grilo, o Vilaça, o Tito, com o seu vozeirão de atleta
preguiçoso de Vila Clara, e o Videirinha, com o seu violão de fadista épico de
Santa Irineia.
Entre uns e outros existe apenas, a
distanciá-los aparentemente, a diferença de idades e de temperamentos; no
fundo, porém, anima-os, arrasta-os, vincula-os, a mesma fatalidade, o mesmo
destino. Depois, a nossa época já não comporta a tragédia, pelo menos como era
concebida e representada antigamente. E atendendo a que (mesmo sem acrescentar
neste caso o argumento básico da predisposição orgânica do escritor), atendendo
a que a ironia é o melhor, o mais seguro, o mais definitivo expoente das
civilizações decadentes, tem-se a razão por que Eça de Queirós, ao invés de
pintar grandes telas trágicas, traçou prodigiosas caricaturas.
Como escritor mais crítico de ação social que
explorador de temas passionais, a mulher desempenha na sua obra um papel
bastante secundário — para não salientarmos a sordidez patológica de Juliana e
a loucura mística de D. Patrocínio das Neves. Com exceção de Maria Eduarda, a
mais enérgica das suas heroínas (tipo de honestidade sofredora e heroica, malgrado
a fúria arrasadora de Fialho de Almeida, quando afirma que nos Maias não há uma só mulher honesta), o
amor nas outras, quando não é a carne que se entrega, fisiologicamente, na hora
precisa, sem arrebatamentos líricos, como em Luiza e Amelinha, é a passividade
dolorida e resignada de Gracinha, ou a estima delicada, ingênua, quase
insexual, de Joaninha.
Mas, para compensar esta ausência de paixão, de
cálida vibração afetiva entre as suas criaturas femininas, ele é o glorificador
comovido da amizade, da solidariedade moral e intelectual entre os homens. Eça
de Queirós tinha o culto dos seus amigos. Vede, por exemplo, a constante
correspondência psíquica, íntima, fraterna, que une Jorge a Sebastião, João da
Ega a Carlos da Maia, Zé Fernandes a Jacinto, fundindo-os na mesma ordem de
sentimentos e de ideias, sem, contudo, anular em cada um a individualidade
própria, que se conserva, ao contrário, inconfundível e flagrante.
Este culto dos amigos, não o celebrou apenas
Eça de Queirós através das suas ficções literárias, porque era um prolongamento
da sua conduta particular na vida. É uma grande simpatia irradiando de todo o
seu ser. Aí estão como provas, entre outros documentos fidelíssimos, esses
magníficos retratos pedológicos de Ramalho Ortigão, Eduardo Prado, Antero de
Quental, considerando-se mais que, na apologia deste último, Eça de Queirós atinge
a perfeição sobre-humana de se diminuir publicamente para louvar o seu amigo,
traçando um perfil que está para a moderna literatura portuguesa como na
religião os evangelhos estão para Cristo.
Estes e outros ensaios de crítica literária,
histórica e social, como os sobre Victor Hugo, Guilherme II, o Conde de Paris,
Beaconsfield, a Rainha, Joana d'Arc,
os Ingleses no Egito, os Três Prefácios, o Francesismo, vieram revelar novas faces do seu espírito de
comentador genial e de criador equilibrado: aí, as suas faculdades de análise e
de síntese ganham um vigor rejuvenescido e uma idealização desafogada. Neste
contacto direto com a criatura viva, com o fato objetivado — é o mesmo que se
observa com outros artistas profissionais, como, por exemplo, Anatole France, o
sábio ateniense, muito mais interessante na Vie
Litteraire que em algumas das suas obras de ficção; e até com alguns escritores
medianos, como esse venturoso Paul Bourget, incontestavelmente o mais insigne
dos atuais medianos franceses, e decerto muito menos irritante nos seus estudos
de crítica do que nos romances preciosíssimos que urde como bom parisiense —
"um parisiense com um ligeiro toque de inglesismo, como pede a moda, que
leva para o faubourg Saint Germain,
num fiacre, os seus métodos de psicologia,
de uma psicologia que cheira bem, que cheira a opoponax, e tomando uns ares
infinitamente profundos, remexe os corações e as sedas das senhoras, para nos
revelar segredos que todo o mundo sabe, num estilo que todo o mundo tem."
Se fosse possível destacar das obras primas
do naturalista horaciano da Cidade e as
Serras (livro que é, com a Correspondência
de Fradique Mendes, o mais pitoresco resumo, a sátira mais fina do ceticismo
elegante do fim do século XIX); se fosse possível destacar das obras primas de
Eça de Queirós uma única obra prima, em que todas as outras se resumam e
condensem, esta seria, forçosamente, a Ilustre
Casa de Ramires. Este livro é o mais belo monumento da língua portuguesa,
nos últimos tempos: é um Lusíadas em
prosa, é o poema límpido e sonoro do decaído Portugal contemporâneo em
contraste com o poderoso Portugal medievo. Produto de plena e sadia maturidade
intelectual, dessa tristeza consolada e luminosa do envelhecer, livre de
preconceitos de escolas, repousado e sereno, tudo nele é forte, sugestivo,
emocionante, formoso, harmônico, preciso, igual, porque aí, de princípio ao fim,
um perfeito senso de historiador acompanha e regula a alcandorada fantasia do
artista.
Tenho ouvido, com uma insistência
devastadora, que em Eça de Queirós o minucioso narrador de fatos esmaga o filósofo
semeador de ideias ou diminui o artista evocador de imagens. É que estas,
muitas vezes, só dão na vista quando são impostas a muque, aos saltos e aos
berros: a descrição, a finura, a sutileza, prejudicam-nas na maioria dos casos.
Para embaraçar o asserto que se funda na
suposta ausência de sugestividade, de surto, de força, de que se acusa o autor
da Perfeição (se uma tão fácil tarefa
tem algum valor), basta lembrar aquele inesquecível epílogo dos Maias (um livro que ainda se não tinha
escrito e que se não escreverá mais em língua portuguesa), página que vale por
alguns tratados de filosofia, onde Carlos e Ega, depois de bravamente filosofarem,
ao mesmo tempo que assentam numa teoria fatalista da existência, proclamando a
inutilidade de todo o esforço, correm desesperadamente para apanhar o "americano"
que os deve levar ao Hotel Braganza;
ou evocar aquele maravilhoso final da Ilustre
Casa, superior a muito compendio de história, em que ao lado de Vila Clara
e ao pé da Torre de D. Ramires, na
doçura da tarde agonizante, "por todo o fresco vale até Santa Maria de
Craquede", uma voz inspirada traça genialmente a psicologia de Portugal, enquanto
a silhueta melancólica do padre Soeiro, destacando-se no "silêncio ainda
claro, de imenso repouso, tão doce como se descesse do céu", pede a paz de
Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casais adormecidos...
Não, meus amigos! Eça de Queirós é um artista
completo: aquilo que não encontramos nos outros, um quer que seja, talvez um
quase nada, é justamente nele que vamos encontrar. Por mim, confesso que, em
prosa portuguesa, foi nele que aprendi a ler. Repugna-me, por uma questão de
pudor estético, apontar as pequeninas falhas desse artista, em quem os defeitos
são qualidades: isso é com os críticos, os letrados, os homens de rígido bom
senso e convicções rígidas. Guardadas as devidas distâncias, aceito-o, na minha
admiração apaixonada, mas consciente, como ele aceitava Victor Hugo, e como
Victor Hugo aceitava Shakespeare: comme
une brute.
É que ele, como nenhum outro escritor do seu
tempo, soube visionar integralmente a vida humana em todas as suas ridículas
baixezas e em todos os seus bens consoladores. É que ele fixou maravilhosamente
a Vida. E, para fixá-la, teve ainda este grande mérito: transformou uma língua
bárbara, dura, áspera, fradesca, solene, hostil, num instrumento plástico,
sonoro, dúctil, ondeante, diáfano, sutil: numa palavra — foi o primeiro escritor
português que fez paradoxos com a nossa língua. Ele é o mestre — e depois dele,
ninguém, que se preze, tem mais o direito de escrever mal a língua portuguesa.
---
MATEUS DE ALBUQUERQUE
"Eça de Queiroz: In Memoriam" (1922)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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