7/05/2019

Traças femininas (Conto), de Brito Camacho



Traças femininas
À manhã ao nascer do sol,
acaba o mundo.
(Dos jornais)
Justamente quando no relógio da torre batia a meia-noite, com as cautelas de quem entra na casa alheia desejando que o não vejam, abria ele a porta do jardim e caminhava, quase nos bicos dos pés, até à janela do seu quarto, que estava entreaberta.
— Meu amor!...
Severa, com muita dignidade, mantendo-o afastado a todo o comprimento do seu braço estendido:
— Tenho a certeza de que vou morrer, de que morreremos todos daqui por algumas horas. Não terei de corar perante ninguém da enormidade da minha falta. Entrego-me à beira da sepultura; será como se violasses, o meu cadáver.
A verdade é que o quarto não estava armado em câmara ardente, antes rescendia a frescura dum boudoir galante, ninho de amores que precisam esconder- se para não ofenderem a Moral.
Um molho de cravos vermelhos, muito vermelhos, ri na boca duma grande jarra de Sèvres, e num solitário faceado, com aplicações douradas em cada face uma linda Pau! Neyron, com tonalidades de veludo, mal disfarça o envaidecimento da sua beleza no orgulho da sua ascendência fidalga.
Debruçados na janela, apagada a luz, parecia que escutavam o silêncio profundo daquela noite calma, cheio o jardim, em que erravam perfumes, dum luar baço e pesado. Coisa alguma prenunciava a catástrofe anunciada, o irremediável fim do mundo transcorridas algumas horas; mas eia bem vira na lua manchas que pareciam sinais cabalísticos, justamente as manchas que um astrônomo americano, de grande reputação, anunciara que se tornariam visíveis a olho nu um pouco antes de se produzir o cataclismo cósmico. A Via-Láctea dava-lhe a impressão duma estrada em miserável estado de conservação, desnivelada, cheia de buracos, e já lhe tinha querido parecer que as estrelas andavam numa contradança, algumas correndo em ziguezagues, desenhando na atmosfera sinusoides caprichosas. Na terra a quietação era absoluta, mas no Firmamento a desordem era manifesta.
— Não penses nisso, minha filha; todos os dias o mundo acaba... para os que morrem, e todos os dias ele principia... para os que nascem. Mas admitamos que desta vez os sábios não erram, como já lhes tem acontecido fazendo a mesma lúgubre profecia, e que, de fato, o mundo acaba lá para o nascer do sol. Tratemos então de aproveitar o pouco tempo que nos resta; não percamos um instante, um breve instante de felicidade.
Tomou-lhe o braço, e cerrando brandamente a janela, conduziu-a para o leito, uma cama antiga, do melhor estilo, coberta com uma linda colcha da China, da melhor seda e mais fantasiosos desenhos.
— Entrego-me à beira da sepultura; será como se violasses o meu cadáver.
Dentro em pouco, no silêncio morno daquele adorável boudoir apenas se ouvia uma orquestração de beijos, que era a transfusão de duas almas incendidas na febre dum amor louco e insaciável.
Pela manhã, quando abriu a janela, duas longas tranças negras manchando, como pinceladas de nanquim, a seda cor de rosa da sua camisa de rendas, o sol entrou-lhe no quarto, sereno e luminoso, como nos melhores dias da primavera.
Tudo no jardim estava como na véspera, e ouviam- se na rua os pregões de todos os dias, sem faltar o aleijado das cautelas — quem me compra o 1.022, — é a sorte. — Não acabara o mundo, afinal.
Sentado no leito, o ar de quem rumina um doloroso pensamento, respondendo à interrogação que ela lhe fizera, num trejeito da sua fisionomia linda mas fatigada.
— Sim, deste-me toda a felicidade que eu ambicionava; mas sofro de pensar que só o fizeste imaginando que o leito em que nos deitássemos juntos seria o caixão em que repousassem os nossos cadáveres.
Ela então, envolvendo-o num olhar de veludo, sorrindo à sua tristeza, terna e desdenhosa:
— Meu pateta!...
E foi colocando sobre uma mesita de pé de galo, que aproximou do leito, todas as coisas delicadas que preparara na véspera, para um almoço em tête-à-tête, no discreto isolamento do seu quarto.

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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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