Tempos de capa e espada! bons
tempos esses... Havia então a arte suprema de tornar pitoresca a vida,
entrecortando-a de peripécias, de lances arriscados, de aventuras felizes. A
altiva aspiração dos vinte anos era a conquista da glória para a conquista da
amada. O orgulho indomável da mocidade só se rendia ante os encantos da
escolhida do seu coração. O homem que não tinha coragem para antepor aos
perigos, e braço de ferro para remover os obstáculos, não alcançaria cativar as
graças de uma donzela.
A têmpera das almas nobres
fazia-se na guerra ou nos torneios de encruzilhada.
D. Francisco de Quevedo e Villegas,
que era feio como um bode, ceifou na seara amorosa muitos corações de donzelas.
É que as raparigas desse tempo não gastavam afetos com um bigode mais ou menos
retorcido ou com uma bochecha mais ou menos corada e delambida. Os Dâmasos
Salcedes do nosso tempo, se os transplantassem para a idade media, poderiam,
quando muito, se nesse tempo as houvesse, servir de engomadeiras. Hoje são os leões da moda, e as meninas da baixa
disputam-lhes as farripas da cabeleira casposa, com a mesma avidez com que
Alcidonie e Josephine, duas velhotas ósseas do romance de Parrel, disputavam as
graças do boticário da freguesia – um gordo!
A índole dessa época temperava-se
na luta, quer contra os inimigos da pátria, alcançando foros nobiliárquicos e
esporas de ouro, quer em arruaças noturnas, que davam à cidade uma atmosfera de
perigo e de sobressalto. Isto durou principalmente até ao fugidio reinado de D.
Afonso VI, em que os fidalgos partidários deste monarca epiléptico timbravam em
apavorar o povo com acometidas de encruzilhada, raptos, arrombamentos e
estocadas!
Lisboa nesse tempo era uma cidade
recamada de lendas. O povo, compelido pela sua índole maldosa, e mais ou menos
justificado pelo exemplo das camadas superiores, fazia-se rufião e desordeiro,
e raro era o dia em que das pugnas populares não resultavam cadáveres e cenas
de lacerante tragédia; porque, inibido de usar floretes e montantes, como os
nobres, usava facas e navalhas, cujas lâminas brilhavam à luz amarelenta dos
lampiões, nos momentos do conflito. Foi desta forma que apareceu o fadista,
espécie de resíduo ignóbil de todas as camadas sociais, organizando uma classe
à parte, cuja existência nenhum princípio de seriedade explica, e cuja perpetuação
nasce do impulso tradicional desses velhos tempos.
Os bons homens das províncias e
cidades subalternas, quando vinham dantes à capital, revestiam-se de uma coragem tão
grande e tão louca como a dos fidalgos heroicos que foram com D. Sebastião em defesa
de Muley Mahomet.
Eles sabiam que em Lisboa a nota
predominante era a facada, imposta ao ventre incauto dos estranhos pelos
malandrins perversos que fermentavam nos bairros.
Alfama tinha assumido as
proporções fatais daquela torre lendária, de onde a crônica extraíra esta inscrição
desesperada: – Quem lá vai, lá fica! Todas
as vielas, todos os becos tortuosos desse labirinto medonho tinham a sua
historia e o seu crime.
Entrava-se em Alfama por uma
dessas gargantas sinistras como goelas de tigres, e perguntava-se a algum
mendigo que para ali resfriasse os ardores da fome sobre as pedras das ruas, a crônica
arrepiada daqueles sítios.
Ali aparecera um homem
estrangulado numa noite de inverno; acolá um fadista esfaqueara em delírio a amante
ébria; mais adiante, num recôncavo de beco, fora enterrado, vivo ainda, um brasileiro
ricaço, abafado pela mordaça e pelo punhal da malta; mais além, uma desgraçada
postulenta, como laivos de gangrena no corpo arroxeado, emborcara de um trago
uma infusão de fósforos, heroicamente, sobre a última baixeza de um amor
profano e maldito...
É um nunca acabar, uma série
ininterrupta de cenas trágicas, medonhas, escritas nas pedras soltas desse
tortuoso bairro, infamíssimo, de onde a gente saía com o coração apertado e um
acre sabor a sangue!
A Mouraria e o Bairro Alto
começaram depois a fazer concorrência à criminalidade de Alfama, e a reclamar,
com o direito irrecusável, os foros de terror que este bairro monopolizara por
longo tempo. E, durante um período extenso, os jornais da capital iam
espalhando pelo país inteiro toda a serie de crimes noturnos, sucessivos e
delirantes, que constituíam a tragédia fadistal, passada entre malandrins de
navalha e mulheres dissolutas, nos lupanares miseráveis e nos becos de onde mal
bruxuleava, de longe a longe, a chama ensanguentada e tremula de algum lampião
de azeite.
***
Depois, a civilização, o
progresso, todo o cortejo de conveniências, teorias e processos novos que
constituem a maneira de ser da sociedade atual, começaram a destruir os velhos
usos e os velhos crimes, demolindo casas, expropriando becos, policiando tudo, proibindo
tudo, até a própria facada!
Os bairros que conservavam, desde
Martim Moniz, o herói do Castelo de São Jorge, a sua fisionomia fantástica,
revelando em cada ângulo um acontecimento histórico, e em cada contorno uma
data celebre, começaram a entrar na uniformidade endossa e grave do nosso
tempo.
***
Mas todos esses episódios dramáticos,
em que a facada se inspirava principalmente nos vapores do vinho, eram apenas o
produto degenerado da faculdade guerreira, parodiando, em acometidas cobardes,
os conflitos de espada, por onde outrora se aferia o valor físico e a grandeza
moral de cada homem.
Dada a degenerescência da
faculdade, impunha-se ao dever dos legisladores a sua incorporação nas
previsões penais, pois que, tendo ela deixado de ser uma elevada manifestação
heroica, passara a ser, por uma aviltante transformação, a inspiradora de
hediondos e repugnantes crimes. O que fazia dessa faculdade uma virtude social
era a altivez e a abnegação que a revestiam, pois que nenhum fidalgo, digno de
tal título, deixaria jamais de arrancar a espada contra o homem ou a legião que
o ofendesse, nem jamais deixaria de por o seu braço e a sua vida ao serviço da
causa nacional, muito embora tivesse a absoluta convicção de morrer despedaçado
no campo inimigo. À semelhança de Bayard, cada cavaleiro podia esculpir no seu
escudo a divisa – sans peur et sans
reproche.
Isto vem mais ou menos a propósito
dos nossos toureiros amadores. À falta de assumpto em que exerçam o seu espírito
aventureiro, continuador da velha índole dos fidalgos portugueses, inventaram
os torneios tauromaquícos, de forma a provarem ali na arena, em face de um
animal feroz, que ainda nas artérias desta nacionalidade combalida pulsa algum
daquele sangue destemido que brilha em toda a nossa epopeia da Idade Média.
As pessoas que assistem ao
torneio do alto de uma galeria, mal podem fazer ideia do que seja um touro na
praça, escarvante e mugidor, com algumas garruchas espetadas no cachaço.
Só quem tem descido à arena, a
contemplar de perto o animal bravio, de olhar em fúria e nervos em convulsão,
poderá compreender quanta coragem, e quanto sangue frio são necessários para
arcar alegremente com todos os riscos que esse feroz animal oferece.
Nesta quadra de cômoda pacatez e
de pautadas conveniências, os toureiros amadores são por certo fenômenos atávicos,
anacronicamente postos, como enigmas, ante o espírito pratico da época. E o
atavismo é definido e claro. Eles são, como já disse, os depositários e os
representantes do antigo espírito português, aventureiro e destemido, capaz de
trocar a vida por um lance violento, de sacrificar tudo por uma empresa
arriscada.
Mas como as épocas se transformam
na sucessão evolutiva, as faculdades são obrigadas a adaptar-se aos elementos
de cada época. Os mouros, por exemplo, desapareceram da península. Se os
houvesse ainda, os rapazes que hoje lidam nas praças de touros formariam
cruzadas e iriam, em nome da religião de Cristo, derramar intrépidos o sangue
dos infiéis. Mas os mouros correram para outras regiões, e na contemplação nostálgica
da sua decadência, embevecidos nas passagens melancólicas do Alcorão, já não
oferecem ao gênio do século polpa que devastar em favor de interesses nossos.
Desapareceram também as guerras
com a nação fronteira. O ditado, que simbolizava a nossa atitude ante os nossos
vizinhos – de Espanha nem bom vento nem
bom casamento – passou a ser uma mentira redonda. Desapareceram as
descobertas; o homem cruzou já todas as paragens do planeta. Era necessário
inventar algum alimento para a faculdade aventureira: foi então que surgiu o touro.
Nada mais completo para
satisfação de coragem indomável e altiva do que um forcado no meio da praça,
batendo o pé ao montanhoso quadrúpede, afrontando-lhe a fúria tremenda,
escarnecendo-o, atirando-lhe com o barrete ao focinho bravio, num repto
imponente e trocista.
E depois, o animal investe numa
vertigem alucinada. Faz-se uma concentração de pavor no anfiteatro repleto, e o
bicho parece que vai num golpe desfazer em pedaços o pequeno vulto que se lhe
colocou na frente. E vê-se então o forcado amparar o animal na carreira,
deter-lhe o ímpeto ferocíssimo, passar-lhe os braços em torno da papeira
calosa, e ficar-lhe na cabeça bicorne, triunfante e forte, como um herói de
ferro!
***
E já que entrei em divagações
pelos meandros da arte tauromáquica, seja-me permitido emitir baixinho uma
opinião, que certamente porá de pé os cabelos artísticos de toureiros e
aficionados, mas que espero me seja relevada em nome da franqueza com que falo.
Há muito tempo que a sisudez da
arte de tourear baniu da arena o velho Pai Paulino e a sua trupe. A não ser em
praças de segunda ordem, onde mesmo raro aparece o elemento negro, os nossos espetáculos
tauromáquicos limitam-se monotonamente a exibir a pericia com que o toureiro
mete um par de bandarilhas, passa o boi de capa, crava um ferro curto à tira, pega
o bicho de cara, de cauda ou de cernelha.
A gravidade com que estes atos se
praticam uma nuvem solene que embarga um pouco a expansão da festa. Os
toureiros – a quem não quero desconhecer direitos artísticos – estão excessivamente
compenetrados da seriedade do seu papel. Quando entram na arena, levam a vida
disposta para alcançar a glória, e alguns certamente irão pensando no panteão
que lhes arrecadará os restos mortais, pela eternidade dentro.
Desta compreensão nasce
necessariamente a atitude solene, de retraimento e superioridade, que muitos
espectadores notam, principalmente nos toureiros espanhóis. E se é certo que a
proximidade do perigo pode desculpar essa atitude, certo é também que ela põe
no anfiteatro uma nota enfadonha, um peso de monotonia, que no fim de três ou
quatro touros corridos só pode ser suavizada pelo sobressalto de alguma
colhida, em condições de serio risco.
Ora, pois, para espairecer o espírito
e lavá-lo das manchas de monotonia que uma longa corrida produz, insuflando nos
espectadores a atmosfera da expansão sem limites, cheia de gargalhadas
festivas, nada mais completo do que a colaboração do Pai Paulino e da sua trupe,
no programa das touradas.
***
A última vez que eu tive a
felicidade de ver o Pai Paulino, foi há bons quinze anos, na praça do Campo de
Sant’Ana.
A meio da arena, foi rapidamente construído
um navio de ripes, com mastros e tombadilho, todo enroscado por uma serpente pirotécnica,
cujos anéis eram formados de valverdes, bombas e bichinhas de rabiar. Sobre a
amurada de estibordo – de onde viria o temporal do boi furioso – toda a
tripulação, composta de seis negros espadaúdos, empunhava garruchas, à laia de
punhais, como que preparando-se para resistir a um assalto de piratas.
No público passava um ar de expectativa
alegre, fazendo-se conjecturas sobre a sorte da embarcação.
De repente, como um vendável que
se desencadeasse, encrespando montanhas de vagas estrepitosas, abriu-se a porta
do curro, e um boi mugidor, com chispas nos olhos e o lombo erriçado de raiva,
arremeteu de encontro ao navio frágil, despedaçando tudo à primeira marrada,
tal como um baixel arrasado subitamente por uma avalanche de penedos, no degelo
das regiões polares. E então, toda aquela serpente de lume entrou a esfuziar
sobre o animal deslumbrado, e no meio da fumarada e da cintilação do fogo
viam-se as caras sorridentes dos negros, mostrando uns dentes alvos de marfim,
como os Satanases de mágica que ficam a rir, no meio das grandes derrocadas cênicas.
A gargalhada irrompeu clamorosa
do anfiteatro, em palmas à pretalhada vitoriosa e apupos ao boi assarapantado e
ridículo.
A sorte da barrica era também
deliciosa, eriçada de imprevisto, capaz de escancarar as mandíbulas de um
morto.
Em frente do curro, um preto de
olhos alvos estendia o busto de dentro da barrica, empunhando uma farpa.
O touro arremetia; a barrica
rolava de encontro à trincheira, com o preto dentro. Rompia a gargalhada na
praça. E quando o preto ia a estender a cabeça, para espreitar o touro, este,
que ficara de atalaia, inteligente e vingativo, caía logo sobre a embocadura da
barrica, a qual rolava novamente, arrastando consigo o preto aos trambolhões.
E este espetáculo às vezes
prolongava-se, enchendo de gargalhadas retumbantes o ambiente da praça, e dando
a cada espectador a sensação de forte alegria, que deve caracterizar as festas
populares.
***
Vem a propósito intercalar nestas
considerações tauromáquicas um episódio histórico, sucedido no ano de 1764:
Um índio de Buenos Aires, tendo
sido condenado às galés em Cadiz, propôs ao governador, mediante o premio da
sua liberdade, expor a vida numa festa pública, que constaria do seguinte: Ele sozinho,
sem o menor auxilio, e apenas munido de uma corda, atacaria na arena um touro
dos mais bravos, lançá-lo-ia a terra, prendendo-o depois pela parte que lhe
indicassem, por-lhe-ia uma sela e, montando-o, combateria assim dois outros
touros, até que lhe dessem ordem para matar.
O governador acedeu e o índio
cumpriu à risca o seu programa.
Este feito extraordinaríssimo vem
narrado no 1º tomo das Observations sur
l'Histoire naturelle, de Gautier.
***
Posto isto, resta fazer uma declaração terminante: O autor destas linhas nunca foi toureiro. Houve um dia em que a musculatura irrequieta e um certo desejo inexplicável de provar novas sensações lhe fizeram passar pelo cérebro a ideia de pegar um boi de cara, para ver se realmente a bravura do animal na arena contrastava com a sua mansidão – no prato. Essa ideia, porém, desapareceu fugaz, como um meteoro de mau prenúncio, e de então para cá nunca mais tive o lamentável desejo de tourear boi algum, a não ser – com garfo e faca. O que é, no fim de contas, como bem diz um carnívoro das minhas relações – a única coisa que a gente leva deste mundo.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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