Pelos bons dias de sol, anilados,
claros, gloriosos e transparentes, ele deixava sempre o quarto, confortável
aposento que sua mãe enchia de cuidados e de amor, e, trôpego, esgazeado e
verde, lento como um caramujo lesmando a relva de um parque, encolhido e vegado
em bodoque, com olhos cheios de fulgor e de saudade, uma menta azul ao pescoço,
queimado a iodo, a barba crescida e um cigarro de palha à boca, ia para o
jardim, acompanhando o criado que lhe levava o livro e a cadeira.
De grande sombra larga de uma
folhuda mangueira da chácara fidalga em Santa Teresa via o mar, facetado e
espelhento, rendendo-se em alvas espumas filigranadas sobre arrecifes à tona,
amargo absinto de suicida, pátria adorada do marujo virulento da Albion, que o
recorta, alta noite, silencioso e cauto, manchando-o com a vela nevoenta de uma
galera veloz que tem por noite a estrela polar, brumoso diamante das regiões do
urso branco; os navios do porto, a contravento, ensombrando a água, que os
refletia de casco para o ar, arfavam as velas, carunchosas e remendadas, em
estendais de mastaréus; ele sorria, serenamente pelos seus gastos pulmões
ulcerados, pouco afeitos a uma temperatura de ar livre, asfixiados nas nossas
construções doentias, as puríssimas lufadas salitrosas do vento da barra, que
agitava no alto os coqueiros, arvorando-lhes plumas de esmeralda em apoteose;
viu, ali bem em frente, suspender ferro para ir por mar em fora, a seguir
correntes rápidas do gulf-stream, uma
linda escuna soltar panos, extraordinária manobra de agilidade e ginástica, de
vigor e de força que nos honra a espécie; percebeu o ruído fino das cordas
assando pelas corrediças na grande faina de içar velas, acompanhou, vendo-os
muito de perto, quase distinguindo feições, os marinheiros pelas vagas, o
piloto ao leme, gritando, forçando tudo para encher o velame que batia, e o
capitão, um mexicano sardento, de cachimbo aos dentes, a observar a perícia da
tripulação, o céu, impostado de pelúcias e algodão de nuvens e a terra que ia
ficar, e, quando uma mais forte rajada bojou todo o pano do barco, ainda
parado, e o impeliu, adernando-o bizarramente, um ligeiro frisson agitou-o – o sopro de vida elétrico a empurrá-lo a
despertá-lo ainda e a dar-lhe uns desejos de ir também, bronzeado à luz do
Equador e cheirando a pesca, fazer a festa de Netuno, entre aclamações de uma
maruja ruiva e forte que nos embebeda a baforadas de aguardente e a exalações
alcatroadas de peixe; levantou então os seus encovados olhos cheios de febre e
delírio e olhou a terra, embandeirada de tons, com linhas gigantescas de
montanhas azuis no horizonte, cheia de rumor, cortada em casarios formando a
cidade, com as suas casas de todas as cores, tão colorida, com as suas ruas
estreitas e somente banhadas de um lado pelo sol, com as suas verduras tenras,
com as amplas e rasas planícies, gramados, grandes campos de indústria
pastoril, de boiadas, de rebanhos e cabras cinzentas a nivelarem a relva
pastando-a, com as catedrais de zimbórios ovais porcelana, confusamente
sombreando o firmamento e com as elevadas chaminés de tijolos vermelhos, a
lembrarem vulcões, que baforassem gases negros de fumo torvelinhante e
espiralado.
Tudo isso que ele via era a vida e
ele sabia que ela estava para acabar, que não mais a cor, o aroma, a luz e o
som o fariam vibrar, sentir, gritar intimamente, como um apunhalado.
Ele teve então uma grande saudade da
natureza; ali mesmo, em derredor, nas polpas das dálias e das rosas, zumbia
voluptuosamente todo um enxame de pássaros e de insetos a cantar
triunfantemente a ária do amor, a canção do ninho, o ouro frio e fecundo do
pólen e a grandeza da célula que guarda o óvulo, a poetizar enfim a reprodução
da espécie.
As cigarras entonteciam-no; tal era
a estridente cantaria que rebentava dos troncos e dos ramos; as encantadas
flores dos flamboiants, que vinham,
ladeira acima, em fila, desde baixo até sua casa, flores de carne palpitante,
que enchem colmeias de mel e de perfume esquisito, lembravam-lhe, graciosa
silhueta, o seu amor, uma dançarina trêfega e fresca que incendiava as plateias,
levantando irritantemente a sua linda perna, que um saiote escarlate mais
exaltava. Essa entontecedora papoula envenenou-o; a princípio todo um amor
platônico ponteado de buquês de cravos e camélias enredou-os depois veio o
beijo, o primeiro beijo dos amantes, fatal e inolvidável, que lhe levou a
saúde, a força, o sangue e a vitalidade para aquela loba, que o estrangulava
por noites consecutivas, nodoando-lhe a boca com chupões de tigre e afogando-o
em louras goladas de champagne frapé,
tomado com alarido pelas alcovas dos hotéis de crápula de bebedeira. Como ele
achava a vida tão bonita! Levantou-se, e, a tossir, chegou até a grade,
agarrando-a com as suas mãos magras, cheias de tecidos salientes e cor de cera
de igreja.
Parecia-lhe que do azul, como uma
fina sonoridade de cristal, raios do sol através caíam-lhe – harmoniosa chuva
de sons de harpas celestes – as melodias do bailado, que ela, a dançarina,
executava outrora no Lírico e reproduzia no ménage
para encantá-lo para recriar o seu lindo amor.
Um coleiro, cantando perto,
despertou-o e ele sorriu, a espetar, num sorriso ósseo de caveira, as maxilas
na face. Foi sentar-se. A tosse, impiedosa e seca, despejava-lhe, aos poucos,
os pulmões, que a tuberculose fazia cuspir em escarros de sangue.
A mãe chamou-o – que o sol ia
descendo e que não apanhasse muito vento, disse-lhe que se recolhesse e que
mesmo na hora do remédio. Ele obedeceu, e, lento, grave, ruas floridas do
jardim através, entrou em casa, levando no sangue, que latejava, uma alta
tempestade de febre que lhe carbunculava os olhos.
***
Ao entardecer ele queimava,
delirando estertoricamente, como que vendo dançar, ouvindo música, batendo
palmas, aplaudindo alguém.
Espalhou-se logo em casa que
amanhecia, o médico e dissera ao ver-lhe equimoses nas unhas e outros vários
sintomas da morte.
Tinham chegado os parentes e amigos
da família e dentro daquela casa a morte provocava um alarma sincero de prantos
e lamentos.
Junto ao leito do tísico, sua velha
mãe, afetando uma serenidade heroína de ânimo, acariciando-lhe a testa,
confiando-lhe os cabelos, revoltamente emaranhados. Ele, inteiriçado no leito,
coberto por um lençol, jazia em estado de coma e a sua magreza esquelética
dava-lhe grandes semelhanças com um Cristo arrebatado à cruz.
De vez em quando tossia e expelia
esverdeados catarros nauseabundos com os íntimos fragmentos dos seus pulmões,
que a lesão espedaçava.
Davam-lhe, cordiais morfina para
acalmar a grande canseira que a tosse lhe deixava e para que ele repousasse;
entretanto, o desgraçado enfermo, com as descarnadas mãos segurando o peito,
gemia, acusando uma dor crônica no tórax e nas costas, como se tivesse uma
espada varando-o mortalmente de lado a lado.
A morfina não conseguia adormecê-lo
e o seu delírio aumentava, rasgando-lhe, muitas vezes, na cova esburacada da
boca, uns sorrisos dúbios, dirigidos a alguém que não estava ali, mas que ele
via rodopiando e bicos agudos de sapatinhos de cancã.
Entrou a querer levantar-se,
sentando-se continuamente no leito, para logo cair, abatido pela fraqueza e,
gesticulando, em altas vozes, pletórico, ele descrevia danças, ritonelos de
valsas e bailados.
Na vizinhança havia festa numa casa
rica e uma orquestra tocava. A cada clarinada, a cada silvo de pistom, a cada
nota de ofcleid ou de trompa, que lhe
chegava através da distância, o doente parecia arrepiar-se alucinadamente, e
arregalava os olhos para fitar alguma coisa, que, num fantástico canário de
época lírica, em deslumbramentos de cenografia, pasmava uma multidão, que só
era atingível à sua ótica. Vestindo gases e filós
prateados, dourados de lantejoulas, polvilhado à poeirada de ouro, que caía de
cima, um fulvo bando alegre de aéreas mulheres cor de rosa, mas nos braços e no
colo, nas pernas e nas coxas, ao ritmo estrelejado de compassos de música
harmoniosa e doce, surgia-lhe, descrevendo pela cena, toda iluminada, passos
difíceis de uma tarantela divina. Terníssimos arrastados violinos, de uma
orquestra colossal, alemã, vibravam, enfeixando o ar de sonoridade e harmonia
e, à proporção que os arcos roçavam nas cordas, que as fazia sibilar, rugir,
gemer histericamente, as dançarinas, como bandos festivais de andorinhas, iam e
vinham, para a frente e para trás, cancaneando diabolicamente. Os trombones e
os rebecões enchiam a sala de tempestades melodiosas, e ele, então distinguia bem,
no que lhe boiava continuamente na pupila e que mudava de cor, ou matizava-se
em muitas, quando lá de dentro, por maquinismos de palco, lhe ativaram golpes
de luz elétrica, verde, branca, amarela, azul, roxa e encarnada.
Continuava um solo de violinos na
orquestra, habilmente domesticada à batuta de um saxônico de quem mal o tísico
via as feições; agora extasiavam-no aquelas originalidades musicais, trêmulas,
nervosas, quase com afetações, como a voz de uma menina, e, de repente, ele
também pôs-se a cantar a música que ouvia – canto trôpego pela gangrena que lhe
estrangulava a voz, tristíssima canção do tísico, ave-maria, ouvida silenciosamente,
através de estepes, pelo campônio eslavo e católico – e que nada tinha de musical,
porque era a ronqueira da morte que chegava, atropelando-lhe os sons na
garganta e dando à agonia um uivo sinistro.
Parou de cantar, e, de mão ao
ouvido, a abrir ansiadamente a boca dilatada pela protopineia, escutava ainda
esse bailado original e estrangulante, que se diluía no seu ouvido à proporção
que o sangue lhe gelava, música que se vaporizava nele como uma serenata em
barco que se afasta, alta noite, com luar e estrelas, silencioso, por um longo
rio sonolento e um zigue-zague; abriu, porém, mais os braços, que se agitavam
como caudas de serpentes, mais atento buscou ouvir as clarinadas e caiu,
enrijado e podre, sobre as almofadas do leito muito alvo, quando um padre,
pálio aberto e olhos semicerrados, como um gato voluptuoso, chegava, fazendo
tilintar, cristalina e metálica, pelo corredor, uma campainha do Santíssimo
Sacramento.
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