7/02/2019

Teresa (Conto), de Bulhão Pato



Teresa

No verão de 18... ao declinar de um dia ardentíssimo, passeava eu no espaçoso largo do Rocio, quando vi parar a curta distância uma caleche e a pessoa que vinha dentro fazer-me aceno para que me aproximasse.

Era o meu particular amigo O... (que tratarei pelo nome de Carlos), conhecido nesta cidade pela elegância da sua figura e pela gentileza, não menos notável, do seu caráter.

— Vem dar um passeio até Benfica, disse ele, abrindo a portinhola e convidando-me a tomar um lugar à sua direita.

Aceitei de boa mente o oferecimento e partimos.

— Que tens feito? Desde que chegaste da província é a segunda vez que te vejo. Estiveste em Sintra? 

— Não, tenho estado sempre em Lisboa.

— Vens do campo para te encerrares em casa na cidade?

— Pelo contrário saio todos os dias e vou a todos os sítios.

— Mas que sítios são esses? Eu apareço em todos onde se reúne gente e não te vejo em nenhum.

Sorriu-se como quem fosse apanhado numa ingênua fraude e depois continuou:

— É verdade, não tenho frequentado o Marrare, o teatro, o passeio, nem a casa da neve.

— O que equivale a dizer que não vais a parte nenhuma onde se encontre alguém conhecido. Estarás tu apaixonado!

— E se assim fosse, o que dizias?

— Que era uma desgraça como outra qualquer.

— E a pior de todas as desgraças.

— Desconheço-te, dizes isso em tom excessivamente sério.

— É porque o caso é grave; oxalá que o não fosse.

— Se necessitas de um confidente, conta comigo; a dor gasta-se com o uso, como a matéria bruta.

— Quando não é bastante forte, ou bastante longa para devorar o coração da criatura.

— Pois estás deveras reduzido a esse estado? Qual é a mão donde partiu a frecha?

Olhei para ele, vi-o triste e preocupado. Arrependi-me dos meus gracejos e disse-lhe:

— Sabes que sou teu amigo e acreditas decerto que desejaria servir-te fosse no que fosse.

— Sei-o, e foi por isso que te pedi que me acompanhasses. Tu vais comigo a casa de... onde está Teresa, conheces?

— Perfeitamente.

— Onde ela -está no último período de uma doença mortal.

A voz tremia-lhe e via-se que continha as lágrimas com grande esforço.

— Mas, meu amigo, há quatro meses ainda que a vi, não há dois talvez que lhe falei e estava perfeitamente boa.

Foi uma desgraça, uma tremenda fatalidade; enfim saberás logo tudo; agora acompanha-me, vem comigo, não me sinto com ânimo de ir vê-la só.

Calei-me, pasmado do que ouvia. Carlos firmou a cabeça nas mãos e continuamos no mais profundo silêncio.

Chegamos a Benfica, paramos à boca de uma daquelas azinhagas, apeamo-nos, e seguimos para o lugar destinado.

Agora o leitor vai saber a história, contada com escrupulosa verdade.

***

Carlos vive ordinariamente na província, fruindo os bens de uma considerável riqueza. Tem vinte e oito anos, é alto e admiravelmente bem feito; pálido, olhos rasgados, boca graciosa e fina, fisionomia inteligente e aberta, cabelos e bigode negros. O seu único defeito é a indolência; essa domina-o a ponto de não ter feito conhecido o seu nome na imprensa, por preguiça de escrever. Entre a morte iminente e uma grande fadiga, talvez se resolvesse pela primeira. Fora disto não há ninguém nem mais afável, nem mais honesto, nem mais generoso, nem mais valente.

No princípio desta primavera, Carlos chegou a Lisboa. Um dia o horizonte apareceu desassombrado e risonho; no ar respirava aquele perfume salutar e agradável da estação das flores. Os dias antecedentes haviam sido chuvosos e carregados: o inverno terrível. Carlos conseguiu vencer a sua querida indolência e resolveu-se a fazer um dia de campo. Meteu-se no carro e disse ao cocheiro que se dirigisse ao sítio de... isto é, para uma vivenda de recreio das mais belas dos arrabaldes de Lisboa.

O seu espírito estava numa singular disposição. O campo, as flores, o perfume das veigas, o canto alegre e variado dos pássaros, despertavam-lhe no espírito sensações agradáveis e dolorosas ao mesmo tempo, acordavam-lhe na alma os puros sentimentos da primeira quadra da juventude.

Entrou sozinho por uma das alamedas onde as olaias se cobriam de rubor como envergonhadas de terem visto florir mais cedo a amendoeira, e onde os rouxinóis improvisavam inspiradas e melancólicas estrofes. Apenas havia dado alguns passos, quando sentiu sobre a direita o ranger de sedas, e o murmúrio de vozes feminis.

O coração bateu-lhe alvoroçado como o de um rapaz de quinze anos quando se encontra diante da mulher cujos olhos lhe acenderam na alma a chama do primeiro afeto. Riu-se do seu estado de pieguice sentimental e continuou na digressão bucólica. Ao voltar da alameda deu de frente com a família do comendador L... sua antiga e intima conhecida. Saudaram com frases aquele imprevisto aparecimento e instaram-o para que os não abandonasse na sua partida campestre.

Neste momento as mesmas vozes, que tinha escutado através das árvores que orlavam a rua onde passara, sentiu-as junto de si. Era uma das filhas da família com quem se juntara e Teresa.

Carlos ouvira falar muitas vezes dela, mas não a conhecia pessoalmente. É tempo de fazermos o seu retrato.

Teresa tinha dezesseis anos apenas. Era baixa talvez, porém de tal modo proporcionada, que à primeira vista parecia alta. Olhos suaves, escuros e longos. As rosas da plena juventude afrontavam-lhe as faces, onde respirava a felicidade e a inocência. A boca breve, graciosamente recortada e vermelha, os dentes admiráveis, cabelos loiros cendrados, finos e um pouco anelados.

Teresa viera passar o dia com a família com quem Carlos tinha relações. Foi-lhe apresentada. A ingênua menina corou excessivamente, na ocasião em que lhe dirigiu algumas palavras de mero cumprimento. Depois fez-se pálida como um lírio e firmou-se no braço da sua amiga, que lhe disse o que quer que fosse em voz baixa e com sorriso malicioso.

Carlos pareceu-lhe o sol mais brilhante, o perfume das flores mais vivo, o canto das aves mais alegre, e principiou a falar em tudo com certa volubilidade que lhe não era ordinária.

O comendador pediu-lhe que desse o braço a Teresa. Carlos dirigiu-se a ela.

Um tremor rápido, mas forte, agitou a encantadora menina. Carlos ficou perplexo; a torrente da sua eloquência estancou-se de súbito e ambos caminharam alguns momentos calados.

Por mais que procurasse não achava uma frase, ele, cuja conversação fácil e elegante todos admiram.

Por fim rompeu o diálogo por uma banalidade própria de um rapaz que sai do colégio.

— Está o dia tão bonito!

— É verdade.

— Gosta do campo?

— Imenso.

— Não sei como há quem possa ficar na cidade num dia destes.

— Mas segundo me consta, desde que veio da província ainda não tem saído de Lisboa.

— Os dias tem estado tão maus!

— O inverno foi terrível.

— Por isso mesmo a primavera deve ser mais agradável.

— Não tem ido aos bailes?

— A nenhum.

— E conta ir ao desta noite?

— Faço tenção.
— Também eu.

Parece-me que não há diálogo mais ingênuo, nem mais cortado do que este.

— Diga-me, tenciona demorar-se muito tempo em Lisboa? disse Teresa com voz um pouco mais trêmula.

— Até ao princípio do verão, o mais tardar.

— Em chegando essa época abandona sempre a cidade; também tem razão, faltam todos os divertimentos...

Carlos sentia-se de uma estupidez inqualificável; apelava para o céu, para a terra e para as flores; mas debalde, porque não encontrava uma imagem nem uma expressão feliz. Trasbordavam-lhe no coração os sentimentos, mas não sabia exprimi-los em palavras; resolveu-se por um supremo esforço a dizer isto mesmo a Teresa.

Chegavam neste momento a uma pequena eminência de onde se descobria um variado e lindíssimo panorama.

— Que bonita vista, disse Teresa cravando os olhos fascinados no mancebo.

— É verdade; admirável. Há dias, não sei se lhe sucede o mesmo, minha senhora, em que o aspecto da natureza, risonho e belo como é hoje, nos produz uma tal impressão, que não podemos bem definir. Parece que a alma, avara do que sente, quer guardar o segredo da sua felicidade. O céu, o campo, as flores, falam-nos, por assim dizer, uma linguagem desconhecida, que só o coração entende, mas que não pode exprimir-se em palavras. Vendo-me frio e indiferente na aparência, talvez julgasse que era um desses homens destituídos de todo o sentimento, que passam a vida olhando com desdém para tudo que pertence ao mundo da imaginação, e classificando como loucura e ridículo o que é exclusivamente o bem e a existência dos espíritos delicados.

Depois desta tirada digna de-qualquer Werther em formato trinta e dois, Carlos olhou para Teresa, e viu os seus olhos cravados nele com uma expressão indefinita de íntimo contentamento.

Animado por ela, o mancebo prosseguiu:

— Vamos, não foi esta a ideia que fez de mim? não me supôs destituído de toda a sensibilidade!

— Não, posto que fosse essa a opinião das pessoas com quem tenho falado a seu respeito.

— Pelo que vejo não lhe era completamente desconhecido.

Teresa abaixando os olhos respondeu:

— Conhecia-o havia muito tempo.

Nesse instante, a filha do comendador, e vários personagens que se aproximavam, vieram pôr termo ao diálogo.

***

Eu sou o homem mais desastrado que se conhece, em contar; digo as coisas sempre fora de lugar e de tempo.

Quando falei de Teresa, devia ter acrescentado algumas circunstâncias que são necessárias para cabal e clara inteligência desta autentica narração.

Teresa era filha de uma das nossas mais distintas famílias. Seu pai homem de alta educação e fino talento.

Em 18... partira para França deixando a filha com cinco anos, entregue aos desvelos de sua mãe. Esta educou-a até aos doze e morreu depois legando-lhe uma boa herança e entregando os cuidados do resto da sua educação a uma irmã, senhora de excessiva bondade.

O pai de Teresa morreu pouco depois.

A tia fora o único parente chegado que ficara à bela e até certo ponto desgraçada menina. É verdade que nesta encontrou ela inteira a rica herança do afeto maternal. Teresa era dotada de sensibilidade estrema. Imaginação peninsular impressionável e ardente. A sua educação, desenvolvida no seio daqueles dois entes que a idolatravam, tinha toda a finura, todo o esmero que é dado a certas e privilegiadas criaturas. Chegou aos quinze anos, foi um dia ao teatro, viu Carlos e o seu coração infantil bateu precipitado. Sincera, violenta, pura, e instantânea fora a impressão. Viu o mancebo, e no seu porte elegante, na sua distinta fisionomia, nos- seus olhos negros e melancólicos decifrou os primeiros mistérios do amor. Ele com a sua habitual indolência correu os olhos pelos camarotes e não atentou na sedutora figura da sua ingênua admiradora. Teresa, que se tinha visto contemplada com entusiasmo por todos os espectadores, tão indiferentes para ela, sentiu cerrar-se-lhe tristemente o coração quando reconheceu que o moço provinciano desviava os olhos dela sem lhe prestar a mínima atenção.

No dia seguinte, a filha do comendador, sua amiga intima, foi visitá-la. Teresa deitou-se-lhe nos braços chorando como uma criança e contou-lhe tudo. História simples, mas sentida e verdadeira, como os afetos daquele coração apenas entrado na adolescência.

Decorreram não sei quantos dias, no fim dos quais foi uma tarde ao passeio. A sua presença era sempre saudada com entusiasmo pelos leões da capital. Perfilaram-se em linha de batalha, assestaram as lunetas, adocicaram as cortesias, e ela atravessou por meio deles elegante, vaporosa, inocente e bela como essas visões que nos aparecem em sonhos, sem lhes dar a mais pequena importância.

No fim de um quarto de hora Carlos entrou e parou junto dela; Teresa estremeceu, apertou o braço da sua companheira e disse-lhe ao ouvido com voz balbuciante:

— É ele.

O acaso tinha feito com que o nosso herói fosse incumbido por um amigo de tratar duma questão de honra e vinha ali procurar as testemunhas contrarias, na resolução de sair em continente com elas e dirigir-se ao sítio aprazado, para regular as condições do combate que devia dar-se no dia seguinte.

Como é de supor, estando preocupado por um negócio sério, não prestou grande atenção aos circunstantes. Desta vez ainda passou indiferente por diante de Teresa.

— Vês, nem ao menos faz reparo em mim, disse ela à sua amiga.

— Dizem que é um homem sem coração; não consta ainda que mostrasse simpatia por ninguém; deves esquecer-te dele...

— É impossível, e quando pudesse não o queria; continuou a pobre menina, reprimindo a custo duas lágrimas que lhe inundaram as brilhantes pupilas. É pelo ver sempre triste e indiferente com todos que eu o amo e cada vez mais. Olha, desde aquela noite que se me não tira a sua imagem do espírito. É a segunda vez que o vejo e acreditas? se me dissessem agora que deixasse tudo por ele fá-lo-ia sem hesitar.

Passaram-se as semanas e os meses; Carlos regressou para a província, voltou no ano seguinte enfim, e ela no mesmo estado. Ia a toda a parte porém raras vezes o encontrava; no silêncio e na ausência a paixão tinha lavrado com prodigiosa intensidade. Nas soiréese nos bailes, não o vira tão pouco; o acaso fez enfim com que nesse dia lhe pudesse falar. Agora compreenderá o leitor a agitação, a palidez súbita, o desconcerto e alvoroço em que ficou Teresa quando inesperadamente o viu junto a si, falando-lhe e oferecendo-lhe o braço.

***

As horas desse dia passaram rápidas. Os olhos de ambos tinham revelado o que as palavras não puderam dizer; por vezes o mancebo a surpreendera contemplando-o em êxtases.

O sol começava a declinar no firmamento esmaltando as nuvenzinhas de variadas cores; das plantas e das árvores em flor rescendiam perfumes mais suaves. Chegara o momento de se separarem: o resto dos personagens havia-se casualmente desviado e eles acharam-se completamente sós.

Carlos depois de alguns instantes de hesitação rompeu o silêncio:

— Há apenas algumas horas que falamos pela primeira vez e contudo atrevo-me a revelar-lhe sem hesitar os meus sentimentos. Amo-a, Teresa, e com todo o ardor da minha alma. Amo-a, e nesta hora seria um infame se lhe não dissesse inteira a verdade. Eu já me não pertenço; desde a infância que minha mãe me destinou uma mulher, um anjo de ternura e bondade, que espera descuidada e alegre pelo dia em que possa ser minha à face de Deus e do mundo. — Enganá-la fora uma covardia indigna do meu caráter. Quando era livre aceitei sem hesitar, jurei ampará-la com o meu nome e com os meus haveres a ela, pobre, desvalida órfã. Até hoje passei frio e indiferente por todas as mulheres; não amava a que me tinham destinado mas pertencia-lhe pelos laços da amizade sincera e intima. O calor suave deste afeto bastava para me desviar de inclinações passageiras. A fascinação dos seus olhos acabou num instante tudo. Concentrados no fundo do coração, os sentimentos atearam-se vivos e ardentes num olhar de paixão. Podia adivinhar o futuro, e devo agora fugir como um covarde diante do sacrifício?

Teresa encarava-o com os olhos orvalhados de lágrimas, porém lágrimas que pareciam derivar sem esforço, e sem mágoa. Um sorriso de resignação sublime alegrava os seus lábios desbotados.

Era o anjo das emoções divinas que tinha descido à terra para lhe fazer conhecer o amor, e provar-lhe que este é sempre pequeno e vão quando se não mede pela intensidade do martírio.

— Sabia tudo, conhecia a sua história, disse ela pegando-lhe na mão com infantil intimidade. A confissão que acaba de fazer-me veio confirmar-me na ideia que tinha da nobreza do seu caráter. Sou feliz, mais feliz neste instante do que nunca supus que o poderia ser no mundo. Admira-se? Não julgava que houvesse uma mulher capaz de compreender o amor deste modo? Poucas serão, é verdade, porque há sempre um fundo de egoísmo no seu afeto. Eu desde o primeiro instante em que o vi amei-o como agora, como hei de querer-lhe até o fim da vida. Indaguei, e soube a sua posição. Vi desde logo que para mim não podia haver felicidade na terra, senão quando tivesse a certeza que este afeto, que esta adoração era correspondida; senti-me grande medindo toda a violência do sacrifício que me esperava e achei que o meu amor era digno dele. Pertenço-lhe como uma escrava. Sou feliz adorando-o e tenho plena confiança em Deus que me há de levar do mundo sem que a sombra de um desgosto vá perturbar a felicidade desse anjo que deve acompanhá-lo na vida.

Carlos tinha perdido completamente a consciência do mundo exterior e chegou a julgar-se transportado a outras regiões.

O som daquela voz, a expressão daqueles olhos, o sentido misterioso daquelas palavras enleavam-no a ponto de supor que estava mais sob a influência de um sonho, do que na presença de uma realidade.

A filha do comendador, boa e afetuosa amiga  de Teresa, veio preveni-la de que se aproximavam algumas pessoas.

— Até logo, disse Teresa apertando a mão do mancebo. Depois, em voz mais baixa, prosseguiu: temos ainda diante de nós alguns meses de completa felicidade.

Carlos separou-se dela, meteu-se no carro e chegou a Lisboa sem compreender mais nada de tudo quanto se passara, senão que amava loucamente aquela mulher.

***

O leitor dispensa decerto a descrição minuciosa do baile em que os dois amantes se encontraram.

Eu conto, do melhor modo que sei, uma história simples e profundamente triste. Quando mesmo pudesse enredá-la, criando lances e situações novas que prendessem a atenção e aumentassem o interesse, não o faria. Era tirar-lhe o único merecimento que pode ter, o da verdade, que é a coisa mais singela que se conhece.

O baile era em casa de um alto personagem. Havia música na entrada, vasos de flores nas escadas, lacaios suntuosamente fardados, salões esplêndidos, ceia lauta, vinhos generosos. Homens políticos arreados de comendas e veneras; mulheres suportáveis, interessantes, provocadoras, bonitas em pequeno número; formosas em mais pequeno ainda; espirituosas sem pretensão raríssimas.

Vestida de branco (o branco é a toilette clássica das virgens, o trajo invariável dos anjos), vestida de branco, pois, entrou Teresa na sala, com uma simples grinalda de flores agrestes imitadas pela mão do nosso insigne artista Constantino. Era a simplicidade encantadora das figuras que aparecem nos idílios de Teócrito e de Gesner. Resplandecentes como duas estrelas nas noites plácidas de estio, os olhos brilhavam animados de expressão indefinível. Exprimam o prazer ou o sacrifício? Revelavam dor intensa, ou contentamento íntimo? Era a virgem sorrindo às fascinações do mundo, ou o anjo deplorando as misérias da terra?

Não sei!

Poucos minutos depois apareceu Carlos encostado ao umbral de uma das portas da sala do baile. A bela fisionomia deste revelava a paixão, o sobressalto, o contentamento, a dor porventura, todos os sentimentos enfim, que se fundem a um tempo no coração do homem em certas crises solenes da vida; mas que são naturais, compreensíveis, terrestres.

Os olhos dela cravaram-se nos do mancebo, e um leve aceno indicou-lhe que viesse sentar-se a seu lado.

— Dancemos esta valsa; vamos, não sente a música?

E erguendo-se airosa como a rola que vai levantar o voo, deu o braço a Carlos.

A maior parte das vezes a dança é uma sensaboria como outra qualquer; outras é um prazer do céu. Quando os braços trêmulos de dois amantes se enlaçam, quando o seio da mulher que adoramos palpita anelante sobre o nosso, e as melodias de Strauss ou de Weber ressoam languidamente, digam-me se os minutos que passam rápidos nalgumas voltas vertiginosas, não encerram delicias indizíveis?

A valsa terminou; daí a pouco afluiu um cardume de conquistadores, junto de Teresa, pedindo-lhe a primeira mazurca, a primeira polca, etc. etc.

— Não estou decidida a dançar mais esta noite; foi a concisa resposta que deu a cada um de per si.

— Pois não dança mais, disse Carlos admirado; veja que se compromete e por minha causa.

— Quando assim fosse, que me importa a mim a opinião dos outros?

— Mas dos seus parentes, dos seus conhecidos.

— Parentes... tenho apenas minha tia, e essa já sabe tudo; os conhecidos são-me completamente indiferentes.

Carlos continuava a pasmar com aquele incrível procedimento.

— Teresa, disse ele, numa explosão de sentimento, tu és um anjo de bondade e formosura que eu sou indigno de possuir, que devo adorar de joelhos e a quem vou sacrificar tudo... Que é isto, santo Deus? prosseguiu ele mudando repentinamente de tom.

Teresa estremecia como arbusto novo sacudido por súbita rajada de vento, e tornara-se pálida como se estivesse prestes a perder* os sentidos...

— Que é isto? continuou ele pegando-lhe na mão com ímpeto.

— Nada, é que não quero que me fales nunca em sacrifícios que venham de ti; sacrifícios que vão recair inteiros sobre duas inocentes, ela e tua mãe; fatalidade de que eu sou unicamente a causa, desde o primeiro desvario que tentes fazer. Olha, sinto-me com força para sofrer tudo, menos o peso dos remorsos. O amor perde a sua natureza celeste, torna-se pequeno e vulgar quando se mancha na culpa. Não é verdade que a tua alma compreende isto?

— Compreendo tudo que vem de ti, respondeu Carlos com a sinceridade da paixão.

— Bem, respondeu ela; e as rosas foram-lhe assomando às faces, puras e coradas.

O baile terminava; os dois amantes estavam próximos de uma janela: os alvores do dia vinham rompendo.

Teresa disse para Carlos:

— Hoje em minha casa; sou avara de todas as horas em que possa ver-te a meu lado, porque o tempo passa rápido e sobretudo o da felicidade. És meu, sou tua; e quando o amor é assim, puro e santo como o nosso, abençoa-o Deus, porque é obra sua.

A tarde desse dia chegou, e Carlos dirigiu-se a casa dela. Teresa esperava-o na varanda; recebeu-o só na sala e sentou-se no sofá ao pé dele com a mesma liberdade e confiança do que se fosse sua irmã. Que linha de fato a recear aquele anjo, a não ser que fosse um malvado o homem que tivesse junto a si? A tia apareceu no fim de algum tempo, e tratou Carlos como um amigo já íntimo de sua casa. A impaciente alegria da criança não é superior à que Teresa sentia. Quando caiu a noite chegou-se ao piano e soltou a voz admirável; Carlos compreendia a existência do paraíso revelada pelo amor dessa mulher. O mundo não existia para ele fora do ninho onde se abrigava aquela pomba do céu. O passado havia-se-lhe varrido da memória e os desejos do porvir não existiam para ele, absorto como estava nas comoções divinas do presente. Ai! da hora em que o futuro rasgasse o véu que ocultava a realidade! Estaria longe ainda? poderia ou não o acaso, ou o tempo resolver esse tremendo problema da sua vida? Quem sabe? talvez; e um clarão de esperança, uma ilusão lisonjeira vinha afagá-lo nos instantes em que a razão lhe deixava ver claramente as coisas. Há muita gente a quem sucede o mesmo, sobretudo aos infelizes que tiveram a desgraça de nascer com uma pouca mais de sensibilidade na alma, e de viveza na imaginação. Ela é que via tudo com prodigiosa lucidez e apesar disso nem uma nuvem carregava a serena felicidade que transparecia no seu rosto.

A expressão de contentamento era a mesma, sim; a alma isenta de mágoas parecia brilhar nos olhos; mas a vida? O carmim dos lábios, o rubor das faces desvanecia-se gradualmente!

Era a rosa cujo tronco estalou súbita refrega, e que apenas desabrocha, na força do seu perfume, no viço da sua formosura esplêndida, tem de acabar quando os raios brilhantes do sol, o canto alegre das aves, o doce frêmito da aragem, a vida, as ilusões enfim, vem saudá-la.

Os olhos ansiosos de Carlos, anteviam em cada sintoma a catástrofe que devia pôr termo às únicas e tão rápidas alegrias da sua vida.

Algumas palavras que Teresa deixava cair ao acaso acendiam a luz da realidade fatal no seu coração iludido até ali pelos sonhos de enganadoras esperanças.

Então uma vida de contínuos sobressaltos, de constantes amarguras começou para ele. Uma tarde o sol mergulhava-se nas águas, e as nuvens caprichosas do firmamento matizavam-se de cores melancólicas. Teresa estava ao pé dele. O azulado das pálpebras, a palidez das faces, a mórbida expressão dos olhos, denunciavam uma causa oculta de enfermidade grave.

— Teresa, disse ele reprimindo a impressão violenta; tu sofres, minha vida; em tão poucos dias tens feito uma diferença incrível; é preciso que o médico venha ver-te amanhã.

— O médico? e o que pode ele fazer?

— Restabelecer-te em breve, prevenir a tempo uma indisposição, que desprezada talvez seja fatal.

— Temos ainda mais de um mês diante de nós; depois...

— Depois, querida, pode ser já tarde.

— Depois, tu vais-te, e eu continuo a ver-te dali, prosseguiu ela cravando os olhos no céu, onde as estrelas começavam a acender-se.

Carlos estremeceu como se a ponta de um punhal o tivesse ferido no coração.

Ela corou excessivamente, levou ambas as mãos à fronte, e disse como se falasse consigo mesma:

— É preciso, devo fazê-lo, mas não tenho força,  meu Deus! e as lágrimas ou antes o soluçar violento cortaram-lhe completamente a voz.

Era a primeira vez que um acesso de dor insofrida rebentava de seus lábios. O anjo sucumbia nesse instante às amarguras humanas.

Também Cristo no momento do sacrifício pediu a Deus que passasse rápido aquele cálix.

O mancebo caiu fulminado. Em presença da doido amante, Teresa acordou em todo o sublime da sua heroica abnegação.

A luz do crepúsculo começava a confundir-se com os clarões pálidos e melancólicos da lua que despontava no horizonte. Ao reflexo suave do astro das saudades, a donzela, com os olhos orvalhados de lágrimas, as faces desmaiadas, e o sorriso da resignação nos lábios, tinha uma expressão indefinível.

— Por que sofres tu, por que empalideceste desse modo? não sabes que te pertenço inteira, que não há poder que nos separe um do outro?! O que é da terra acaba em breve, mas o sopro que Deus pôs nas nossas almas não se extingue jamais, e o meu amor vem da mesma essência, é imortal como ela, um dia saberás tudo o que me pesa é  que tu não possas compreender o que eu compreendo, ver o que eu vejo; dizia ela continuando a mirar o céu como se uma estrela misteriosa lhe indicasse outros mundos e lhe revelasse os segredos de uma nova existência.

Na exaltação do afeto a mulher eleva-se às vezes onde o entendimento do homem não chega; afasta-se da terra e deixando o que é frágil e vulgar na obra da criatura, converte-se num ser divino. O homem, o melhor, no instante mesmo em que a paixão mais sincera o engrandece, não pode tanto.

Carlos seria capaz de dar cem vezes a vida por ela, reduzir-se à miséria, cometer um crime até, porém, entregá-la nos braços de outro homem e dizer-lhe: “vai ser sua esposa”, jamais.

É porque ele, como todos, não podia compreender a idealidade sublime do amor que pertence exclusivamente ao mundo do espírito.

Teresa deitou-lhe os braços à roda do pescoço; o mancebo comprimiu-a contra o peito e pela primeira vez os lábios de ambos se uniram n'um beijo ardente,

***

No dia seguinte, Carlos recebeu esta carta, que deve explicar toda a extensão do sacrifício a que se votara a desventurada menina.

“Junho de 18...

O médico esteve aqui, meu Carlos, e ordenou que partíssemos imediatamente para o campo; depois foi falar em segredo com minha tia, não sei o que lhe disse, mas sei, coitada, que a afligiu porque tinha os olhos inchados e vermelhos de chorar.

Pobre amiga!

“Carlos, meu Carlos! de joelhos, por Deus, por tua mãe, por ela e por mim te peço perdão neste instante. Não posso durar senão mais algumas semanas: a morte é inevitável. Sei o dia preciso em que hei de morrer, a hora e o momento.

Pressenti-o no instante em que te vi pela primeira vez. Soube-o com certeza nesse dia (há tão poucos ainda!) e nessa noite, a mais feliz da minha vida, em que o nosso amor se revelou. Ninguém me disse que estavas para casar, fui eu que adivinhei tudo. Sabia que era um anjo de formosura e bondade a mulher que devia pertencer-te e tinha a certeza também de que não a amavas.

Já vês que não podia ter ciúmes de um coração que me não roubava a mínima porção do afeto que eu queria que fosse exclusivamente meu. Já vês que não havia sacrifício da minha parte, visto que o egoísmo estava satisfeito.

Agora ouve: a voz que me disse no íntimo da alma “ este é o único homem que tu hás de amar” foi a mesma que me revelou tudo: a tua história, e a minha. Vi então que podia ter dois meses, o tempo que te demorasses em Lisboa, de completa e indizível felicidade. Depois deles a minha vida o que seria, senão um insuperável obstáculo ao bem do teu futuro, ao cumprimento dos teus deveres, à tranquilidade da tua consciência?!

Enquanto o meu amor não fosse perturbar a existência dos entes que te pertencem pelos laços das afeições mais caras, Deus devia abençoá-lo do céu, porque era uma coisa inofensiva e santa; desde o momento em que ousasse ferir a sensibilidade de duas almas virtuosas e inocentes, tornava-se um crime imperdoável. Lembras-te quando te disse que me achava com força para suportar tudo, menos o remorso? É verdade, Carlos, não a tenho.

Em setembro deste ano (tu não mo disseste, mas eu seio), devia ser o teu casamento. Retardá-lo não seria dar mais alguns dias de lágrimas e ansiedade ao anjo que te acompanhou desde a infância, e que espera anelante pelo momento de ver realizados os seus mais belos sonhos, as suas mais queridas e lisonjeiras esperanças?

Se a Providência, por piedade, por comiseração me não levasse da terra, sei eu se teria ciúmes dela? Se, nos desvarios do meu querer insensato, cegaria a ponto de procurar roubá-la dos teus braços e despenhar-te comigo numa vida de pungentes remorsos e constantes sobressaltos! Não vou continuar a ver-te, a seguir-te em espírito, a ser tua do mesmo modo? Não sinto que o teu coração se há de conservar constante à memória do meu afeto? Não seria bastante esta certeza para satisfazer a ambição mais exagerada? A saudade da minha ausência, porque tu vais deixar de ver-me, dize, não será mitigada quando tiveres a convicção que sou feliz, por que Deus perdoa àqueles que erraram pelos desvarios do coração, mas que souberam purificar a culpa nas amarguras do sacrifício? Responde, meu pobre Carlos, o que seria o meu amor se te houvesse levado a cometer crimes e misérias? Não haveria uma hora na tua vida, quando mesmo me apertasses com estremo nos braços, em que a consciência te dissesse que eu era indigna de ti?

E que felicidade podia ser a nossa, nascendo das mágoas de uma inocente traída, e tendo origem nas lágrimas do mais santo de todos os afetos, o afeto de mãe?

Saber que sobre a pedra do meu túmulo não pesam as maldições de ninguém, dize, querido da, minha alma, não fará que vás com mão segura, com a bênção nos lábios, depor sobre ele a coroa de saudades?

Durante os breves dias que vivemos juntos, não fui tua como poderia sê-lo de um irmão extremoso? Não te deixo a minha imagem? não podes ser feliz com ela? A morte ou a vida! morre porventura o espírito!... Pertenci-te jamais de outro modo?

Tu vais separar-te para algumas léguas de distância, vais levar a felicidade a uma pomba que te adora, realizar os desejos puros e ardentes de tua mãe; eu separo-me também, levo comigo a tua imagem como única recordação querida da terra. Não me tens durante estes dias para te consolar, e não te ficam no mundo esses dois entes em cujo seio deves encontrar ternura e amor iguais aos meus? Agora perdoa a ilusão em que te mantive algumas horas. Quis ao menos provar a felicidade que podia ser mais duradoira se o destino me houvesse sido mais propício.

Este egoísmo, se assim se lhe pode chamar, é toda a minha culpa, culpa que se vai punir com a morte, e sobretudo com a saudade de me separar de ti.”

Teresa.

Carlos depois da leitura desta carta não teve força de soltar um suspiro, nem de derramar uma lágrima.

Há instantes destes, quando uma dor tremenda nos colhe de súbito, paralisam-se todas as faculdades de sentimento durante algumas horas, até que a explosão rebente.

O mancebo conservou-se pois nesse estado, que é semelhante ao da natureza no espaço de tempo que precede as tempestades terríveis. Pálido como um cadáver, os olhos amortecidos, os lábios entreabertos, a respiração opressa. Mais alguns minutos em que a dor se não expandisse em lágrimas e teria deixado de existir.

Essas chegaram finalmente. Era o momento de exclamar como Eurico:

“Que fora vida se nela não houvesse lágrimas!”

***

Decorreram os dias, e chegou aquela tarde em que encontramos Carlos.

Teresa estava próxima do termo fatal.

Deve lembrar-se o leitor que acompanhamos o nosso particular amigo até Benfica, que nos apeamos à entrada de uma azinhaga na intenção de seguirmos os dois para casa dela.

A minha boa estrela tinha-me reservado esta cena, que é das mais aflitivas a que tenho assistido.

Chegamos à porta. Carlos fora mudando de cor proporcionalmente, e no momento de tocar à campainha o suor frio e conglobado em grossas bagas alagava-lhe a fronte.

Subimos. Um criado apontou para o jardim e Carlos fez-me sinal que o seguisse.

Teresa estava ali, no seu lugar habitual debaixo de uma espécie de caramanchão vestido de arbustos viçosos e floridos. Assim que viu Carlos fez um esforço como para erguer-se, mas tornou a cair desfalecida. O mancebo correu a ela e tomou-lhe ambas as mãos. Teresa reconhecendo-me, pediu-me por um aceno amigável que me aproximasse.

— Fez bem em vir acompanhá-lo; disse ela, pegando-me afetuosamente na mão.

Eu estremeci olhando-a, não porque a morte se manifestasse naquele rosto em toda a sua pompa fúnebre, mas porque havia nele uma expressão indefinível.

Era o lírio sacudido pelo vendaval e caído no chão; era o último, clarão do sol desmaiando nas veigas; era um raio da lua no último período do seu minguante, tudo enfim que está próximo a extinguir-se, porem belo, puro, suave como viveu.

— Esperava por ti; não é verdade que hás de acompanhar-me hoje?

— Como sempre; disse Carlos, com voz completamente transtornada.

— Daqui a três dias faz anos tua mãe.

— É verdade.

— Daqui a três dias deves estar com ela.

— E tu, filha, queres que te abandone?

— Sou cu que vou deixar-te, Carlos. Não posso iludir-te, sinto que vou morrer e dentro de poucas horas.

Isto fora dito com uma convicção tal, que não deixava dúvida possível.

Agora o leitor dispensa-me a narração dolorosa da agonia daquele anjo, que abandonou a terra com o estremo expirar da tarde, bela como certas flores que desabrocham com a aurora, e morrem com o crepúsculo.

Quando se falou da sua morte disseram tudo, menos a verdade, como sempre.

E Carlos? Carlos encontrei-o na província o ano passado. Não voltou mais a Lisboa.

Está solteiro ainda.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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