Teatro – Moral e Censura
Quando, vencidas
dificuldades que pareciam insuperáveis, o teatro parece renascer entre nós na
sua parte literária; quando, até, se afiguram grandes probabilidades de vermos
alevantar um edifício consagrado à arte dramática, onde este gênero de
literatura possa ficar a salvo daquela espécie de ergástulo hediondo e triste a
que puseram por irrisão a alcunha do Teatro Normal; Gerião, cuja ossada se
esfacela debaixo da sua tríplice face de taberna, de emunctório das ruas, e de prostíbulo; quando todos os homens de letras e todos os que as amam forcejam
para que nesta formosa arte vamos algum dia emparelhar com as outras nações,
nenhuma questão que venha a suscitar-se acerca do assunto será insignificante
ou indiferente, porque nela interessam a vida intelectual do país, a sua
civilização e o seu bom nome literário. Mas se essa questão, além de importar à
arte dramática, envolver o interesse da moral pública, considerá-la e dar
opinião sobre ela é obrigação daqueles a quem Deus deu inteligência para a
compreender e razão para a avaliar. Ora, enquanto se forceja para elevar e
restaurar literária e até materialmente o teatro nacional, vemos o drama decair,
prostituir-se moralmente cada vez mais. Cresce todos os dias a indignação da
gente honrada contra os espetáculos que sobem à cena, orgias da arte, se arte
se pode chamar a quadros onde há, não o sublime de paixões mais ou menos
perversas, o sublime do horrível, mas o torpe, o asqueroso dos vícios mais vis.
Cumpre que a imprensa seja órgão desta indignação; que busque a origem e o
remédio do mal. A sua mais alta missão é contribuir para que a sociedade se
melhore e civilize, e o teatro pode ser um poderoso instrumento de civilização.
Mas como desempenhará a
imprensa este grave dever? Como se oporá a que o teatro seja uma escola de
corrupção, devendo ser um lugar de puro e inocente deleite? Como fará rasgar
por uma vez esses cartazes, que, afixados nos lugares públicos, só trazem à
memória, pelos títulos dos dramas que anunciam, as tabuletas dos alcouces
romanos desenterrados em Pompeia? Fulminará os desgraçados histriões, máquinas
de aleijar as verdadeiras obras de arte, e de piorar sensaborias; títeres de
carne e osso, incapazes de compreenderem a sua nobre arte, e de resistirem ao
estragado gosto de quem os dirige, e não sei se diga, ao mais estragado da
plateia? Não: deixai-os; porque são existências inertes, impalpáveis para a
imprensa, traça do drama, da linguagem, do senso comum; pagos para roer as
concepções da inteligência sobre quatro tábuas velhas, ao passo que o caruncho
os vai imitando na substância destas. Deixai-os, pelo amor de Deus! Punirá com
o açoute do epigrama os empresários e diretores dos teatros? Ainda menos. Um empresário
é um indivíduo inexplicável e inclassificável: é uma abstração de todas as
ideias, de todas as crenças, de todos os afetos: a sua ética é o livro de razão, o seu evangelho o
da caixa; o seu culto o da cruz, mas da cruz dos cruzados novos; o
seu destino, além do sepulcro, o limbo.
Não acrediteis na possibilidade de os constranger a despregarem os olhos destes
três objetos, que, juntos aos farrapos dos bastidores e ao óleo fétido das
lanternas do proscênio, constituem o seu universo. Deixai-os também; que para
eles, que não querem, nem sabem, nem podem ler, a imprensa é como se não
existisse, e as suas repreensões mais amargas, as suas ironias mais pungentes
não os distrairão um momento da contemplação beatifica das moedas que rende em cada
noite um estabelecimento industrial de prostituição para famílias honestas.
Seja quem for o empresário de qualquer teatro, não se abalance a imprensa ao
louco empenho de convertê-lo. Que pessoa tentou jamais educar e instruir um
surdo-mudo-cego de nascimento?
Contra quem pois alevantará
a imprensa a sua voz solene? Contra as autoridades propostas aos espetáculos
dramáticos? Não; porque posto que revestidas de um poder arbitrário, acima
delas há também o arbítrio, que lhes inutiliza a energia moral, quando tentam
usar dela a bem da decência publica; e porque, impossibilitadas de julgar por
si essa aluvião de asquerosidades que diariamente sobem à cena, e além disso
obrigadas por lei a ouvir sobre cada uma delas o parecer de três censores, que
podem julgar bem ou mal, não se lhes há de lançar em conta uma culpa que não é
sua. Nenhum homem de alguma gravidade se quisera submeter a passar dias, meses
e anos inteiros quase asfixiado numa atmosfera de sandices, pelos mais
avultados proveitos do mundo, e muito menos gratuitamente, como servem os inspetores
do teatro.
Quem resta por tanto para
acusar? Os censores? — Parece-me ouvir a muitos daqueles que acham mais cômodo
invectivar indivíduos do que avaliar instituições, dizerem que sim. Eu todavia
respondo: — Não; mil vezes não! Brevemente se verão os fundamentos da minha
negativa.
Não sendo, porém, culpados
nem os histriões, nem os bufarinheiros de rosalgar moral chamados empresários,
nem os inspetores, nem os censores, onde estará a causa de um mal de que todos
se queixam, e a que ninguém busca o remédio nos tesouros inesgotáveis da
reflexão e do raciocínio?
Essa causa está numa
instituição anacrônica, absurda, insensata, atentatória da liberdade
intelectual do engenho humano, e além disso, perfeitissimamente inútil.
O mal não vem dos homens:
vem das coisas: vem de uma parvoíce legal: vem da censura prévia.
O remédio só lho pode dar
um parlamento que queira pensar cinco minutos nesta matéria.
À luz política, a censura
prévia aplicada ao teatro é um atentado tão flagrante como aplicada à imprensa.
Todas as constituições existentes e possíveis consagram a liberdade do
pensamento e a livre comunicação das ideias. O teatro é, como a imprensa, como
as artes plásticas, um meio de comunicação. Uma representação cenica é um livro
impresso em tantos exemplares quantos são os espectadores, com a única
diferença de que estes exemplares se apagam acabada a sua leitura. O princípio
da liberdade do espírito é tanto ou mais santo que o da liberdade da terra: não
sofre exceções, porque, se as sofresse, desceria da categoria de princípio para
a classe das regras transitórias da vida civil. Onde quer que apareça a
censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da inquisição, há uma quebra
nos foros da independência do homem, há uma insolência do passado contra a
dignidade social da geração presente. Seja para o que for, a censura é um
impossível Político.
Contra o impossível não há
razões de utilidade. As mais evidentes considerações de conveniência deveriam
cair diante da imutabilidade dos princípios; porque não há meio termo entre o
renegar do progresso humano, e o respeitar sempre e em toda a parte os
elementos fundamentais das sociedades modernas.
Mas existem, porventura,
tais conveniências? A censura do teatro — dizem os defensores dessa cópula sacrílega
e bestial de uma instituição cadáver com as instituições vivas e atuais — é uma
necessidade: melhor é prevenir que castigar: o castigo dos que abusarem deste
modo de publicação não impedirá que ele tenha já produzido a corrupção: sem
censura pode, até, atentar-se contra a segurança do Estado: no ano de tal em
Paris, em Bruxelas, na Haia, enfim não sei onde, um drama recheado de máximas
subversivas produziu tal assuada, tal motim, tal revolta. — Eis as excelentes
razões, pouco mais ou menos, com que se defende a existência de um absurdo.
Estes argumentos são a
apologia, não da censura do teatro, mas de toda a censura; da censura do drama,
como do livro ou do jornal; e ainda mais destes; porque o exemplar da
publicação cênica deixa de existir apenas cai o pano; mas do livro ou do jornal
impressos, embora sequestreis os volumes ou os números não vendidos, os
exemplares derramados do primeiro golpe lá ficam no domínio público; milhares
de indivíduos os leram, e com tanto maior avidez quanto mais severa houver sido
contra eles a condenação dos tribunais.
A desculpa da prevenção nos
atentados legais contra os princípios vai mais longe: vai até a inquisição, se
quisermos ser lógicos. Um homem é conhecido por suas opiniões antirreligiosas:
este homem é imprudente, voluntarioso, ousado: nada mais fácil, mais provável
que o vermo-lo cair na culpa de não respeitar a crença do Estado, de a insultar
publicamente. À cautela, criai-me uma inquisiçãozinha ilustrada; uma inquisição
progressiva, arejada, sem polés, nem potros, mas preventiva e paternal, onde o incrédulo,
entre sermões, pão negro arraçoado e água benta, seja inibido de cometer um
crime, previsto na lei política do mesmo modo que o abuso da liberdade de
escrever e de falar. Apóstolos da censura prévia, em nome da lógica, dai-me a
santa inquisição.
Deixemos, todavia, as duas
bagatelas dos princípios e da lógica. Venhamos ao campo da experiência. A
censura aí está. Que tem ela feito, não digo já entre nós, que palpamos todos
os dias os belos efeitos da instituição; mas na França, na Bélgica, na Espanha?
Onde tem impedido a prevaricação do teatro? Respondei-me.
É um dos argumentos mais
triviais e mais lastimosos que se fazem a favor desta monstruosidade
inutilíssima o exemplo da França. Dantes, em Portugal, para fazer uma lei, o
que se indagava era se ela convinha ao país. Há anos a esta parte entendemos
que era mais judicioso ver se convinha aos outros povos. Esta abnegação
completa da inteligência nacional poderá conduzir-nos ao céu pelo caminho da
humildade; mas tem-nos arrastado cá na terra a muita vergonha legal.
A verdade é que em França
os homens independentes e ilustrados clamam também contra a censura prévia do
teatro, porque é atentatória e inútil. Quereis a prova da sua inutilidade no
vosso país modelo? — Aí a tendes à mão. Donde nos vieram as Torres de Nesle, as Proezas de Richelieu, e todas as mais
prostituições literárias da nossa pocilga dramática, chamada teatro normal?
Vieram-nos dos repertórios dos teatros de Paris: atravessaram pela censura de
Mr. Taylor ou dos seus delegados, como em Portugal passaram sãs e escorreitas
pela censura do Conservatório. Lá, como cá, a censura é um fantasma de que
todos se riem, e que só serve para descarregar os ombros dos empresários,
autores, e tradutores dramáticos da responsabilidade moral e legal dos seus
envenenamentos literários.
É realmente uma das
pequices mais desmarcadas falarem-nos das comoções populares excitadas numa
plateia. Quando a revolução vai assentar-se nos bancos do teatro, não busqueis
a sua origem nas palavras enérgicas do poeta: buscai-a na frouxidão ou na
maldade do poder. Sob um governo forte e justo, uma revolução no teatro não
passaria de comédia representada aquém do proscênio. Mas, além disso, onde
achais os exemplos de semelhantes fatos? Justamente em alguns dos países onde
existe censura prévia. Como o capitão de Luís de Camões, que não cabia em nada,
santa gente, vós não cais em que esse argumento é uma punhalada na vossa
querida censura?
Donde vem a impotência da
censura? De ser uma coisa anacrônica, morta, fétida, ininteligível. Ao censor
que respeita a inviolabilidade dos princípios repugna o impedir a representação
de um drama; porque não crê que o seu arbítrio possa substituir os jurados; que
se possa executar uma lei evidentemente contraria à lei fundamental do estado.
Pelo que, porém, toca ao que não crê nessas coisas, o aborrecimento inevitável
que lhe traz o desempenho de um dever tedioso, de que não tira nem honra nem
proveito, ou o receio de atrair ódios de homens mais ou menos poderosos, para o
que não são triviais entre nós o valor e a consciência, faz com que ou deixe de
ler, ou leia essas misérias e as aprove. Se algum há que não refletisse no
absurdo da instituição, e que tenha energia bastante para lhes pôr o seu veto censório,
lá ficam os empenhos e os respeitos humanos para fazerem escrever no rótulo do
boião imundo de peçonha literária: passe
e venda-se por doses de 480 réis.
É este o fado de todas as
leis, de todas as instituições contraditórias com as ideias e princípios
capitais de qualquer século. São cadáveres, em que a força legal opera os
fenômenos que produz no corpo morto a pilha voltaica; visagens de terror para
os circunstantes, falsos movimentos de vida, mas que todos sabem não passarem
de joguetes de física.
Fazei uma lei para o teatro
em harmonia com a lei política da nação, com os princípios eternos da liberdade
intelectual, e salvareis a moral e a decência pública, que a vossa ridícula
censura deixa todos os dias impunemente afrontar.
Constitui um jurado
especial composto dos membros das corporações literárias, homens que tem uma
inteligência para pensar, uma reputação de probidade, de literatura, e de
gravidade que perder. Aí tendes um avultado número de indivíduos respeitáveis
na Academia das Ciências, na Escola Politécnica, na Escola Médico-cirúrgica, na
Escola do Exército, no Conservatório e em todos os mais estabelecimentos
literários. Confiai-lhes a defensão da moralidade. Os espíritos fracos, mas
honestos, aí julgarão sem temor; porque a sua sentença será coletivamente
sabida, mas individualmente secreta. Aí, quando a ocasião do julgamento legal
chegar, a causa já estará julgada e sentenciada pela opinião pública, e esta
opinião fará tremer os juízes, se porventura entre eles houver algum de mais
larga consciência, ou que seja capaz de esquecer-se, por afeição ou por ódio,
da sua grave e importante missão.
Fazei que o processo seja
rápido. Haja um procurador especial contra os delitos dramáticos em ofensa da
moral pública. Seja o inspetor dos teatros; seja quem vos parecer. Se faltar à
sua obrigação, puni-o.
A penalidade da lei seja
severa. Por mais severa que a imaginemos, será sempre branda em comparação da
que cabe ao ladrão matador; e eu não sei resolver qual besta-fera é mais
daninha, se um assassino do corpo, se um envenenador do espírito, que assassina
as almas inexpertas das mulheres e da mocidade, surripiando-lhes ainda em cima
alguns cruzados novos.
Desenganai-vos de que as
fórmulas constitucionais são mais eficazes que as molas carunchosas do
absolutismo.
Ficai certos de que os
jurados não terão de vibrar o golpe da punição mais do que uma vez. O primeiro empresário
que, sem remédio, tiver de ir dormir por um ano aos paços de São Martinho, e de
praticar a generosidade de mandar algumas dezenas de moedas para o Asilo de
Mendicidade, ou para a Casa dos Expostos, tirará a todos os empresários,
presentes e futuros, o fino gosto de oferecerem no teatro ao público indignado
espetáculos que afrontariam um alcouce.
Que a censura prévia é inútil,
os fatos tem-no sobejamente provado. Sê-lo-á uma lei constitucional? Não o
creio. Se assim acontecesse, a nação portuguesa não fora uma sociedade
corrompida; fora uma nação perdida. Nesse caso cumpriria deixar à Providência
de Deus convertê-la ou aniquilá-la.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1841, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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