7/15/2019

Solilóquio outonal (Crônica), de Sylvio Floreal


Solilóquio outonal
(Para a sensibilidade complicada de Galeão Coutinho, com a minha formidável simpatia)

Nas horas em que medito e reconcentro minhas forças no crisol imaginário de minha alma, sinto uma nostalgia estuante apunhalar-me impiedosamente.

Quedo absorto e silencioso. Perpassa então, leve e fugaz, como uma falena de remota paisagem, a lembrança daqueles momentos que passei, entregue ao mesto dulçor do jardim melancólico.

Outono, esse oleiro imperfectibilizador e insolente, tingia tudo de um amarelo esbatido. Ele é um vampiro que suga toda a clorofila — sangue verde dos vegetais. E as folhas, essas pequeninas filhas das árvores, que toucam e garridecem a hispidez das ramadas, despediam-se dos seus engastes aéreos, e, num rodopio rápido, rolavam por entre os braços da galharia, embaladas pelo sopro leve do vento, enviando ao tronco que lhes dera vida um doloroso adeus e um último suspiro. E iam dormir no túmulo fofo do relvado, entre a gama das suas companheiras que já haviam chegado, antes, à derradeira estância da vida, o somo que precede à transformação, tendo, como inédito e frisante sarcasmo, a própria mãe a servir-lhes de cruz!

Vibrava no ar a última nota cansada de uma cigarra esporádica, como nênia triste à morte das folhas...

Nos dias em que sou acometido de uma intraduzível vontade de fugir à chanfranafra zumbidora dos homens, sinto bruxulearem em mim todas as energias. Vou, então, conjugar a minha mórbida lassidão com o tédio evangélico das árvores do jardim.

Agora, como então, o Outono — D. Juan caprichoso e senil, — espolia as árvores moças e expõe ao martírio crebro das intempéries os seus corpos nus. Cada folha que cai é um atavio de menos; o Outono é o pajem que a natureza manda para despir das árvores a roupagem caduca, e prepará-las para receberem as cambraias verdes e frescas que lhes traz a Primavera.

Só, como um lendário eremita, à sombra das árvores, ouço o suave zanzonar dos galhos que, no alto, se estortegam nervosamente.

Depois, o silêncio se avoluma e imprime em tudo um aspecto solene de mística religiosidade. Freme em todo o meu sistema vital um prurido bisbilhante de saudade, que vem acordar uma volúpia vaga, espiritual. Pairava no ar o adejo sôfrego de um colibri que se roçagava indolentemente por sobre a copa das árvores, ébrio de perfumes. Pássaro divino, gerado do arco-íris, que leva uma vida irreal, dentro da irialidade coruscante dessas cores, sumidiças como as miragens imperceptíveis dos painéis dos dias cintilantes de sol.

A solidão vinha, como uma freira indiscreta, levantar a tampa do escrínio do passado, onde jaziam, encerrados, os últimos resquícios da flor de um sonho que o Destino despetalou, aniquilando no pistilo o gérmen embrionário de um fruto. Alheio a todas as emoções do mundo exterior, comecei a cismar. A cisma transporta-nos ao passado por uma ponte invisível. As comoções vinculam-se em nós, como os sulcos que um artista abre no mármore para exteriorizar a prefulgência impecável de uma linha.

Quanto mais cismava, mais se amplificava a minha visão...

Ecoava em minha alma o ritmo sonoro daquelas palavras dolentes, que condensavam toda a ânsia de um infinito que se não diz com o verbo. Sim, porque a nossa palavra é bastante material e nem sempre traduz o desejo exaltado dos nervos.

As confissões eloquentes, os entusiasmos exacerbados, nascidos das afinidades eletivas, são manifestações sutis a que a alegria põe uma mordaça, fazendo-as exalar somente em suspiros. Há estados de alma tão delicados, tão inconsúteis, que não sobem até a boca para exprimir uma vontade; são como esses aromas misteriosos, engendrados no pólen de certas flores germinadas no remanso das penumbras, onde a custo penetra um tassalho de luz, e que fenecem castas, num piedoso mutismo de tristeza, órfãs dos ósculos lascivos do sol!

As folhas quedavam extáticas, refletindo em suas nervuras as tremulinas carmesins do crepúsculo. Esmaecia tudo num delíquio morno de tintas rarefeitas.

Nimbos esquivos de luz esvoaçaram tenuamente por sobre a frança das árvores, como beijos fugidios. Errava na atmosfera silente um queixume de sápidas essências emolientes, impregnadas de nostalgias lascivas, de ânsias ebrissaltantes, desses desejos que vazam, no labirinto microscópico das fibras, um frêmito suave de êxtase emocional. O sol, ígneo Pan dos bosques siderais, exausto, estirava-se molemente no tálamo incomensurável do infinito, e fileteava de filigranas flavas a fimbria das folhas fanadas.

Vésper, qual odalisca ociosa do harém das alturas, abria a sua arca encantada, onde guarda perfumes afrodisíacos, e saturava o ar de uma sápida volúpia harmonial...

O crepúsculo tem a magia da evocação. Ele atua sobre os nossos sentidos como um falerno esquisito e capitoso, de sabor inédito. Espicaça a saudade, acorda em tropel emoções adormecidas, reaviva as sensações moribundas, insufla-nos ardentemente para a ânsia, para o sonho, para tudo que foge, para tudo que é alífugo...

A imaginação tresvaria entonteada, como a borboleta que, seduzida pela claridade, revoluteia até sucumbir, dizimada pela Vida, que é a luz...

Adejava brandamente o bafio cálido de uma aragem, macio como o colo dos cisnes adolescentes. A haste heráldica dos lírios se curvava, em flexuosidades; e um sacoleio febril revolucionava os rosais.

As pétalas caiam, em voluptuosos coleios, e pintalgavam o chão de uma rósea alcatifa velutínea; outras, fisgavam-se nos espinhos, dilaceravam-se e com o sangue de seus tecidos aljofravam, num pungente batismo de dor, o tronco que lhes dera vida. E sorriam... Sorriam orgulhosas de perecerem em tão carinhoso holocausto. É que elas, cônscias de suas belezas, vaidosamente julgavam que, morrendo assim, morriam como eleitas sem profanar o aticismo fidalgo de sua eurritmia na confusão anônima de suas irmãs, feias e plebeias...

Ainda guardo na memória, nessa urna de reminiscências, a saudade daqueles momentos amenos. Estavas a meu lado. Exumo da retentiva todas aquelas palavras belas ditadas pelo teu pensamento de mulher fina e astuciosa. Tu me falavas de amor, não desse amor trivial, sistemático e árido como uma página de aritmética. Não. Eu te cingia pela cintura, esguia como a das hamadríades dos bosques sombrios e misteriosos de Pafos, e te dizia, no lóbulo coralino, palavras inflamadas, quentes, bramantes.

O amor, quanto é intenso, magnânimo, sublime, reabilita uma existência inteira. Toda a paixão que não tiver em si algo ígneo, estuante, como a cólera bravia que ferve nas entranhas colossais dos vulcões... é insípida , álgida, hiemal. O amor é o cântico dos cânticos, é vertigem louca, extraordinária, que faz o homem ascender aos páramos siderais e acordar novamente, para o noivado da luz, os astros desalentados e frios, embuçados na potencialidade gazearina das nebulosas seculares... E tu quedavas imóvel, olhando as estrelas, como a querer perguntar se elas também não amam...

E caminhavas para mim como a falena para a luz...

Revista "A Cigarra", 16 de junho de 1919.
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Fonte:

Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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