Solilóquio
outonal
(Para
a sensibilidade complicada de Galeão Coutinho, com a minha formidável simpatia)
Nas horas em que medito e reconcentro
minhas forças no crisol imaginário de minha alma, sinto uma nostalgia estuante
apunhalar-me impiedosamente.
Quedo absorto e silencioso. Perpassa
então, leve e fugaz, como uma falena de remota paisagem, a lembrança daqueles
momentos que passei, entregue ao mesto dulçor do jardim melancólico.
Outono, esse oleiro
imperfectibilizador e insolente, tingia tudo de um amarelo esbatido. Ele é um
vampiro que suga toda a clorofila — sangue verde dos vegetais. E as folhas,
essas pequeninas filhas das árvores, que toucam e garridecem a hispidez das
ramadas, despediam-se dos seus engastes aéreos, e, num rodopio rápido, rolavam
por entre os braços da galharia, embaladas pelo sopro leve do vento, enviando
ao tronco que lhes dera vida um doloroso adeus e um último suspiro. E iam
dormir no túmulo fofo do relvado, entre a gama das suas companheiras que já
haviam chegado, antes, à derradeira estância da vida, o somo que precede à
transformação, tendo, como inédito e frisante sarcasmo, a própria mãe a
servir-lhes de cruz!
Vibrava no ar a última nota cansada de
uma cigarra esporádica, como nênia triste à morte das folhas...
Nos dias em que sou acometido de uma
intraduzível vontade de fugir à chanfranafra zumbidora dos homens, sinto bruxulearem
em mim todas as energias. Vou, então, conjugar a minha mórbida lassidão com o
tédio evangélico das árvores do jardim.
Agora, como então, o Outono — D. Juan
caprichoso e senil, — espolia as árvores moças e expõe ao martírio crebro das
intempéries os seus corpos nus. Cada folha que cai é um atavio de menos; o
Outono é o pajem que a natureza manda para despir das árvores a roupagem
caduca, e prepará-las para receberem as cambraias verdes e frescas que lhes
traz a Primavera.
Só, como um lendário eremita, à sombra
das árvores, ouço o suave zanzonar dos galhos que, no alto, se estortegam
nervosamente.
Depois, o silêncio se avoluma e
imprime em tudo um aspecto solene de mística religiosidade. Freme em todo o meu
sistema vital um prurido bisbilhante de saudade, que vem acordar uma volúpia
vaga, espiritual. Pairava no ar o adejo sôfrego de um colibri que se roçagava
indolentemente por sobre a copa das árvores, ébrio de perfumes. Pássaro divino,
gerado do arco-íris, que leva uma vida irreal, dentro da irialidade coruscante
dessas cores, sumidiças como as miragens imperceptíveis dos painéis dos dias
cintilantes de sol.
A solidão vinha, como uma freira
indiscreta, levantar a tampa do escrínio do passado, onde jaziam, encerrados,
os últimos resquícios da flor de um sonho que o Destino despetalou, aniquilando
no pistilo o gérmen embrionário de um fruto. Alheio a todas as emoções do mundo
exterior, comecei a cismar. A cisma transporta-nos ao passado por uma ponte
invisível. As comoções vinculam-se em nós, como os sulcos que um artista abre
no mármore para exteriorizar a prefulgência impecável de uma linha.
Quanto mais cismava, mais se
amplificava a minha visão...
Ecoava em minha alma o ritmo sonoro
daquelas palavras dolentes, que condensavam toda a ânsia de um infinito que se
não diz com o verbo. Sim, porque a nossa palavra é bastante material e nem
sempre traduz o desejo exaltado dos nervos.
As confissões eloquentes, os
entusiasmos exacerbados, nascidos das afinidades eletivas, são manifestações
sutis a que a alegria põe uma mordaça, fazendo-as exalar somente em suspiros.
Há estados de alma tão delicados, tão inconsúteis, que não sobem até a boca
para exprimir uma vontade; são como esses aromas misteriosos, engendrados no
pólen de certas flores germinadas no remanso das penumbras, onde a custo penetra
um tassalho de luz, e que fenecem castas, num piedoso mutismo de tristeza,
órfãs dos ósculos lascivos do sol!
As folhas quedavam extáticas,
refletindo em suas nervuras as tremulinas carmesins do crepúsculo. Esmaecia
tudo num delíquio morno de tintas rarefeitas.
Nimbos esquivos de luz esvoaçaram
tenuamente por sobre a frança das árvores, como beijos fugidios. Errava na
atmosfera silente um queixume de sápidas essências emolientes, impregnadas de
nostalgias lascivas, de ânsias ebrissaltantes, desses desejos que vazam, no
labirinto microscópico das fibras, um frêmito suave de êxtase emocional. O sol,
ígneo Pan dos bosques siderais, exausto, estirava-se molemente no tálamo
incomensurável do infinito, e fileteava de filigranas flavas a fimbria das folhas
fanadas.
Vésper, qual odalisca ociosa do harém
das alturas, abria a sua arca encantada, onde guarda perfumes afrodisíacos, e
saturava o ar de uma sápida volúpia harmonial...
O crepúsculo tem a magia da evocação.
Ele atua sobre os nossos sentidos como um falerno esquisito e capitoso, de
sabor inédito. Espicaça a saudade, acorda em tropel emoções adormecidas,
reaviva as sensações moribundas, insufla-nos ardentemente para a ânsia, para o
sonho, para tudo que foge, para tudo que é alífugo...
A imaginação tresvaria entonteada,
como a borboleta que, seduzida pela claridade, revoluteia até sucumbir,
dizimada pela Vida, que é a luz...
Adejava brandamente o bafio cálido de
uma aragem, macio como o colo dos cisnes adolescentes. A haste heráldica dos
lírios se curvava, em flexuosidades; e um sacoleio febril revolucionava os
rosais.
As pétalas caiam, em voluptuosos
coleios, e pintalgavam o chão de uma rósea alcatifa velutínea; outras,
fisgavam-se nos espinhos, dilaceravam-se e com o sangue de seus tecidos aljofravam,
num pungente batismo de dor, o tronco que lhes dera vida. E sorriam... Sorriam
orgulhosas de perecerem em tão carinhoso holocausto. É que elas, cônscias de
suas belezas, vaidosamente julgavam que, morrendo assim, morriam como eleitas
sem profanar o aticismo fidalgo de sua eurritmia na confusão anônima de suas
irmãs, feias e plebeias...
Ainda guardo na memória, nessa urna de
reminiscências, a saudade daqueles momentos amenos. Estavas a meu lado. Exumo
da retentiva todas aquelas palavras belas ditadas pelo teu pensamento de mulher
fina e astuciosa. Tu me falavas de amor, não desse amor trivial, sistemático e
árido como uma página de aritmética. Não. Eu te cingia pela cintura, esguia
como a das hamadríades dos bosques sombrios e misteriosos de Pafos, e te dizia,
no lóbulo coralino, palavras inflamadas, quentes, bramantes.
O amor, quanto é intenso, magnânimo,
sublime, reabilita uma existência inteira. Toda a paixão que não tiver em si
algo ígneo, estuante, como a cólera bravia que ferve nas entranhas colossais
dos vulcões... é insípida , álgida, hiemal. O amor é o cântico dos cânticos, é
vertigem louca, extraordinária, que faz o homem ascender aos páramos siderais e
acordar novamente, para o noivado da luz, os astros desalentados e frios,
embuçados na potencialidade gazearina das nebulosas seculares... E tu quedavas
imóvel, olhando as estrelas, como a querer perguntar se elas também não amam...
E caminhavas para mim como a falena
para a luz...
Revista "A Cigarra", 16 de junho de
1919.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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