Sobre a
questão dos forais
Meu amigo. — Sinto que as primeiras linhas que escrevo
para o seu jornal, e que escrevo e escreverei para satisfazer ao desejo que me
manifestou, de que o ajudasse na sua útil empresa conforme as minhas escassas
possibilidades, seja para retificar ideias aí contidas e que me parecem pouco
exatas. São as de uma correspondência inserta a páginas 94 do 1º volume do Arquivo.
Pondera-se naquela correspondência a necessidade de uma nova lei de Forais. Não
sei até que ponto essa nova lei é possível, depois de tantos fatos consumados
em harmonia com a carta de lei de 22 de junho de 1846. Quando medito nas
dificuldades, nas injustiças relativas, nas incertezas que resultariam de novas
providências contrarias às daquela lei, eu, que não recuo facilmente diante das
consequências de cometimentos de tal ordem, quando se trata de grandes
reformas, de grandes atos de justiça social, titubeio perante as hipóteses que
prevejo se dariam quando se tratasse de legislar com mais liberal espírito
sobre tão grave assunto, e faço votos para que os legisladores que tentarem tal
empresa, achem a solução racional de um problema, que a meus olhos não a tem
das mais fáceis.
A lei de 1846 é uma lei reacionária, profundamente reacionária.
É a explosão da guerra oculta feita por interesses ilegítimos ao grande ato de
justiça nacional, chamado o decreto de 13 de agosto de 1832, pensamento talvez
o mais grandioso da ditadura do Duque de Bragança, a que só faltaram
desenvolvimento e provisões, que facilitassem a sua execução, falta que subministrou
pretextos ao espírito de reação para o falsificar e anular em grande parte. A
lei de 1846 não me inspira só hostilidade; inspira-me indignação. Mas quando
uma lei tem atuado durante doze anos sobre o modo de ser de uma grande parte da
propriedade territorial do país, quando tem regulado milhares de contratos,
servido de norma a milhares de sentenças, influído em milhares de sucessões,
determinado para mais ou para menos milhares de fortunas, pretender alterá-la
pode não ser uma grande temeridade, mas requer por certo uma alta força de
inteligência, e uma circunspeção pouco vulgar.
Mas o que há mais grave na correspondência que o meu
amigo publicou é uma outra circunstância. Adota-se aí um erro análogo ao que
produziu as piores disposições da lei de 22 de junho, se abstrairmos do seu
pensamento fundamental, o salvar tudo o que, sem extremo escândalo, fosse
possível salvar das velhas extorsões dominicais. O pensamento, infelizmente mal
desenvolvido, do decreto de 13 de agosto era libertar o país do nosso primitivo
sistema de renda pública, derivada por abusos de séculos para a algibeira de
particulares, e substituído em relação ao estado por outro sistema de renda, o
que trouxera uma situação intolerável para a maior parte da propriedade
territorial, a solução de duas séries de impostos uma só das quais chegava aos
cofres do erário. O decreto de 13 de agosto suprimia a série primitiva, a série
delapidada. Era uma ideia simples, clara, justa em tese. O mal veio da
insuficiência dos meios na sua aplicação à hipótese. O decreto de 13 de agosto
não tivera, não podia ter em mira ofender contratos particulares sobre
propriedade patrimonial: o que cumpria em qualquer lei posterior tendente a
esclarecê-lo e a retificá-lo, era reformar as suas provisões que de qualquer
modo dessem azo a ser ofendido o direito privado, e por outra parte completar
aquelas que não bastassem a extirpar o grande abuso, a imensa extorsão publica
a que se pusera o machado. Para isso tornava-se necessário designar quais
caracteres, quais condições, na falta de provas diretas e incontestáveis,
serviriam para demonstrar ou para se presumir que tal foro, tal censo, tal
direito dominical procedia de um contrato expresso ou tácito com o estado. Onde
e quando as condições e os caracteres fossem demonstrativos, a prova em
contrário deveria ser suprimida; onde e quando produzissem só presunções,
admitir-se-ia essa prova em contrário. Tudo o mais reputar-se-ia resultado de
contratos particulares, salvo também o direito do colono, enfiteuta, ou censuário
a provar a origem pública do ônus ligado ao prédio que possuía. O princípio da
abolição, dada essa origem pública, não podia ter nem exceção nem limites. A
lei devia reconhecer a indenização pelo estado na única hipótese em que ela era
justa, a da venda de direitos dominicais feita pela coroa. A verba total não
havia de ser demasiado avultada; e que o fosse era uma dívida que se pagava. As
gerações são solidárias.
Em vez disto, apelou-se para a distinção cerebrina
de título genérico e título especial, que vinha
tanto para o assunto, como uma sura do alcorão, ou um artigo das leis de Manu;
e à sombra desta distinção que não distinguia nada, confundiu-se tudo, e
restaurou-se quase tudo fazendo-se aos colonos originariamente da coroa, o
grande favor de poderem remir o ônus dando por ele (considerado como juro ou
renda) o equivalente em capital. O que os legisladores quiseram bem averiguado
foi se a transmissão do uso da terra, reservado o domínio, fora escrita para
servir de título a muitos colonos ou a um só, se num se em muitos diplomas. Era
uma curiosidade arqueológica sobre a abundância ou a raridade do pergaminho na
Idade Média, que poderia subministrar um capítulo interessante a alguma nova
edição da Economia Política del Médio Evo, do meu amigo Luís Cibrário.
É este erro, esta confusão do direito privado com o
público, mas em sentido oposto ao da lei de 22 de junho, que me parece
conter-se na correspondência de que falo. Rigorosamente, e considerado na sua
verdadeira índole, o decreto de 13 de agosto estatuiu sobre uma questão de
direito público. Considerá-lo de outro modo é desconhecer os seus fins e o seu
alcance. Libertar a terra é isentá-la de ônus injustos, de vexames, de encargos
impostos pela força; não é anular contratos livres particulares acerca da propriedade
patrimonial. Quando se pede uma lei que crie para enfiteutas e subenfiteutas,
sem exceção, o direito de remir todos os foros, pede-se que a lei
desfaça contratos livremente debatidos, espontaneamente celebrados, e conformes
na sua essência aos princípios de justiça absoluta. O cânon enfiteutico, o
censo, qualquer quota no produto da terra que o senhorio direto de um prédio,
de acordo com o colono, reserva para si transmitindo o domínio direto, é em
rigor a renda de um capital, ou aluguer perpétuo de um instrumento de produção.
Pode a lei expropriar o dono desse instrumento para utilidade particular, e por
um preço taxado de antemão por ela? Se tal se houvesse de admitir porque não se
admitiria a regra contrária? Por que não revocaria a si o senhorio direto o
capital, o instrumento, pagando as benfeitorias ao colono? Supondo justa a
primeira prescrição, porque se reputaria injusta a segunda?
Repito: não sei se é possível recuar no caminho que
abriu a lei de 22 de junho. Se o é, se os foros de Alpiarça pertencem à
categoria daqueles que o decreto da primeira ditadura queria abolidos, e se a
lei reacionária e insensata que destruiu, ao menos em parte, aquele grande ato
de justiça nacional, pode ainda ser substituída por outra mais conforme com o
espírito desse ato, não é a remissão de tais foros que dela deve resultar, quer
o senhorio direto pertença hoje ao estado, quer a corporações, quer a
indivíduos; é a supressão, a abolição completa. Quanto a foros em bens de
origem patrimonial, é impossível aceitar a doutrina da correspondência.
Escrevo estas linhas, meu amigo, ao correr da pena e
sem os desenvolvimentos que requeria a gravidade do assunto, porque antevejo os
inconvenientes sociais da propagação de tais doutrinas. Para mim o grande meio
de progresso na cultivação do país, da melhor distribuição da população, do
melhoramento das classes laboriosas, do chamamento do proletário ao gozo da
propriedade, e por ela aos bons costumes e ao amor da família e da Pátria, é a
enfiteuse. A meus olhos, a enfiteuse é o único meio de obstar aos
inconvenientes da divisão indefinita do solo, e ao mesmo tempo de combater os
males que resultam da existência dos latifúndios, sobretudo dos latifúndios amortizados,
esterilizados pela instituição vincular. Mas se a opinião que proclama o
direito de remissão a bel-prazer do enfiteuta, ameaçar de contínuo o domínio
direto, todas as providências que se hajam de tomar, que se devem tomar, para
impelir indiretamente os donos de vastos tratos de terra a retalhá-los por
aforamentos, serão baldadas. Os possuidores de latifúndios mal cultivados
preferirão o atrasamento agrícola, os menores réditos atuais à espoliação
futura, e o país dificilmente sairá de uma situação economicamente mais
embaraçosa do que muitos creem, e que nos horizontes do futuro se me representa
assaz carregada.
Que o direito enfiteutico seja simplificado; que se
dispa de todos os acessórios de que o revestiram os costumes e as ideias de
épocas bárbaras, é necessário e justo: que se vicie na sua essência, naquilo em
que é legítimo, sensato, benéfico e civilizador, é absurdo. A lei que tal
ordenasse seria ao mesmo tempo espoliadora e inepta.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1858, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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