Ser ou
parecer...
Quando
chegou à porta, alta e espadaúda como um cuirassier en jupons, viu na
sua frente quatro homens de aspecto ameaçador, armados de pistola, que lhe
embargaram o passo. Um deles, com ar de chefe, metendo-lhe a arma à cara,
sentenciou com firmeza, num tom de voz em que havia acentos de cólera:
—
O cavalheiro, ou se entrega sem resistência, ou eu lhe meto uma baia na cabeça.
Ficou
atônita, sem perceber o que aquilo significava, a chamarem-lhe cavalheiro, não
obstante os seus trajos femininos, sem consideração pelo seu aspecto senhoril,
o peito montanhoso arfando dentro do espartilho, e o cabelo farto, de longas
tranças, com muito jeito acomodado num pequenino canottier.
—
O senhor disse?...
—
Disse que o cavalheiro, ou se entrega sem resistência, ou eu lhe meto uma baia
na cabeça.
—
Mas... os senhores bem veem que eu sou uma senhora, e ainda estamos longe do
carnaval para cenas destas...
Recuou
dois passos, mas não pôde fechar a porta, porque os quatro homens entraram, num
salto, sempre com as armas em punho, e o que tinha ar de chefe, robusto como um
Hércules de feira, rugiu uma ameaça de morte, que a fez perder a cor.
—
Nada de brincadeiras; o cavalheiro está preso, e assim mesmo como está,
acompanha-nos à esquadra.
Deixou-se
cair em cima de uma cadeira de verga, atônita como quem se encontra de repente
em face de um espetáculo inverossímil. Chorou, implorou, caiu de joelhos aos
pés do homem que tinha ares de chefe, mas as suas lágrimas não o comoveram, os
seus rogos deixaram-no insensível como se fosse um bonzo de pedra.
À
Polícia de Segurança tinha chegado a denúncia de que um temível
conspirador, disfarçado em mulher, se instalara em Lisboa, provido de muito
dinheiro, pois gastava à larga, não recebendo pessoa alguma em sua casa, mas realizando
conferências diárias com os mais cotados realistas, hoje aqui, amanhã além, variando
amiudadamente os pontos de reunião para não dar nas vistas. Na posse desta denúncia,
feita em termos de produzir uma grande impressão de verdade, a Polícia pôs-se
em campo, e não tardou muito em farejar a pista que a levou à descoberta apetecida, realizando
uma façanha que não ficaria sem recompensa.
— O
cavalheiro está preso e assim mesmo como está, acompanha-nos à esquadra.
As
suas lágrimas não comoviam o homem que tinha ares de chefe: os seus rogos era
como se fossem dirigidos a um bonzo de pedra.
Mas
então...
Subitamente
iluminada, como se um raio de graça divina, atravessando-lhe a cabeça, pusesse
em ordem as suas ideias confusas, barulhadas como num delírio desconexo ou como
num sonho macabro, ergueu-se com muita serenidade, pousou a malita sobre a
cadeira de verga, limpou os olhos enevoados das lágrimas, e encarando o homem
que tinha ares de chefe, resoluta como quem joga uma cartada decisiva:
—
Está bem; o cavalheiro acompanha-me ali, àquele quarto, e os seus companheiros
esperam aqui um instante. Suponho que não terá medo!...
Entraram,
ela adiante, ele seguindo-a de pistola em punho, tendo recomendado aos outros,
num olhar, que estivessem vigilantes, e ao mais pequeno sinal entrassem sem
pedir licença.
Não
foi preciso.
Quando
já tinha passado uma longa meia hora, um deles, batendo na porta com as juntas
dos dedos, lembrou ao chefe que ainda aí estavam.
Fez
à pressa a sua toalete, acomodando o peito montanhoso no espartilho sem barbas,
e o cabelo farto, de longas franças, no pequenino canottier que parecia
ter sido comprado para uma cabeça de menor volume.
Já
com a mão na chave, que correra, à cautela, quando entrara acompanhada do homem
que tinha ares de chefe, estendendo-lhe os beiços, numa momice:
—
Então?...
—
Ó filha! com um bigode desses, alta, forte, desembaraçada como um homem... Quem
te denunciou à Polícia não fez uma parte carregada; limitou- se a dar os sinais
que te identificam, com rigoroso escrúpulo de exatidão. Não me tenho na conta
de pessoa feroz; no desempenho das minhas obrigações propendo mais para a
brandura que para a violência. Pois bem. Quando eu te disse que te meteria uma
bala na cabeça se não te entregasses sem resistência, senti tremer me o dedo no
gatilho do revolver, sendo milagre que não desfechasse, tão convencido estava
de me encontrar na presença de um terrível conspirador, tão valente como
atrevido, disposto a vender cara a liberdade, dando por ela sem rega- tear, a própria
vida.
—
É preciso não confiar demasiado nas aparências, porque elas muitas vezes
enganam. E visto que já sabe onde mora este terrível conspirador, faça o seu
dever, exercendo sobre ele a maior vigilância. Mas sem pistola, que as armas de
fogo metem-me medo...
---
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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