Afinal, parece que era preciso compreender
que a vida é aquilo mesmo...
Queixam-se todos, mais ou menos, da
sorte; mas, lá um dia, a Providência como que nos surpreende com a sua
misericórdia infinita.
Viviam, há tantos anos, naquela
tristeza: ele, o pobre Luís, paralitico e cego, uma alma simples e fina, atada
àquele castigo de uma existência dolorosa, na imobilidade e na escuridão; ela,
a misera Josefa, ainda mais delicada e sensível, sempre espantada em presença
da desgraça; procurando, resignada e sublime de ternura, talvez inconsciente da
sua grandeza tão humilde, provar ao mundo que, ainda no meio das vicissitudes
mais duras e amargas, pode um peito fiel e amoroso levar alguma coisa que zomba
impassível do tempo e das amarguras.
Viviam há tanto naquela miséria; ele,
ruminando mistérios, como um deus vencido e desolado; ela, a desentranhar-se em
ternuras por aqueles entes tão inditosos que o destino lhe confiara.
Queixavam-se continuamente de Deus e
dos homens... No entanto, só agora é que ela, a boa Josefa, está compreendendo
como não tinham razão para acusar a vida. O Júlio já presta algum serviço; e a
coitadinha da Sarica... já sabe pedir... Decerto que era horrível esmolar! Mas
que direito haverá, mais do que este, sagrado para o mundo, quando se tem fome?
A primeira vez que lhe passou pelo espírito
esta ideia de fazer a filhinha esmolar, a Josefa chorou tanto que o Luís, lá da
sua noite, chegara a perceber e afligir-se. Expor aquela criaturinha tão
hedionda aos olhares curiosos de todos... era horrível!
Mas a miséria vence as naturezas
mais resistentes...
Demais, pior, mil vezes pior, do que
este recurso à caridade do seu semelhante, havia no mundo tanta coisa!
A princípio, Josefa seguia de longe
a aleijadinha acompanhada do Júlio. Levava o coração agitado ao ver a filha
arrastando-se pelas ruas e praças, a estender as mãos aos passantes.
Depois, tudo se foi normalizando;
ficou tudo muito natural: a mãe, desafogada, lidava na casa; a Sarica e o
irmãozinho exerciam fora a sua profissão.
As duas crianças, logo cedo,
arranjavam-se e partiam, para só voltar à tarde, muito fatigadas, com a
colheita do dia. Quando tinham sido felizes e traziam uma boa féria, o Júlio
entrava muito contente; mas a Sarica, morta de cansaço quase sempre, pedia logo
o seu repouso numa enxerga, junto ao catre do pai. Mal tinha ela forças para
afagar o cego, e dar-lhe alguma boa noticia: quando a mãe dava por ela, a
Sarica dormia, atirada ao chão, como um embrulho, sem forma humana...
Uma vez, demorava ela em
preparar-se, e já se fazia tarde. O Júlio, muito aflito, diz-lhe que outros
mendigos já deviam ter-lhe tomado os melhores pontos na praça. Josefa mesmo
entendeu que era tempo de apressar a filha, ao vê-la muito cuidadosa a
compor-se melhor, a esconder bem as pobres pernas atrofiadas e torcidas. Tinha
muita vergonha quando lhe viam as pernas... Da corcunda já não fazia mais caso;
mas deixar aparecer o horror das pernas...
– Ah! Fez-lhe sentir a mãe sem
cuidar – tranquiliza-te... Quem haverá, minha filha, que te queira ver essas
perninhas tão secas e tortas...
E o Júlio disse mais:
– Será melhor até que todos vejam
toda a tua tristeza...
A menina calou-se, mas revelando no
gesto compungido a infinita desconsolação de todo aquele infortúnio.
Saíram os dois. A Sarica tinha a
frontezinha sumida, como imersa naquela mistura de ossos: bela frontezinha, o único
sinal de majestade humana que havia naquele corpo monstruoso. Dir-se-ia uma
cabeça, um semblante de anjo metido na fealdade, na hediondez de uma rã, a
olhar vagamente para cima, lá do chão onde rasteja.
Horas e horas, abrasada às vezes por
um sol de janeiro a um canto da praça, ela passava pedindo. Quando as esmolas
lhe caíam lá de cima, ela sorria e se alvoroçava e tinha vontade de
erguer-se...
Mas, às vezes, as esmolas não
vinham... Ela pedia inutilmente; e o Júlio chegava a dizer-lhe com maus modos,
que ela não tinha jeito para o ofício; que não sabe fazer voz comovente, e que
não revira para o alto os olhos meio nublados... Ela se esforçava na sua função,
falando como os moribundos, e fazia, trêmula e exausta, por imitar os mais hábeis
dos pedintes que enchem a praça...
Muitos daqueles eram mais felizes do
que ela. Chamavam sempre a atenção do publico, e sempre com fruto copioso. E no
entanto, nenhum deles tinha, como ela, o direito de pedir. Ela devia ser ali a
primeira; mas a piedade dos homens não compreendia isso... Os próprios cegos
não estão no seu caso. Os cegos têm ao menos o seu conspeto humano, e não
sabem o que é a dor de ser... monstro. E aquele público passa às vezes por ela
sem vê-la... Era horrível!
E quase sempre ia pensando assim,
até chorar.
Quando, porém, as esmolas caíam,
tudo se acabava; esquecia as queixas; e até o seu semblante readquiria a
serenidade das auroras. Sentia-se boa e meiga, capaz de uma simpatia
incondicional por todos os entes, mesmo os mais ditosos da vida. Já era alguma
coisa aquela justiça, que lhe faziam, de reconhecer quanto ela é digna de
compaixão.
À tarde, um dia, entrou ela, de
volta das ruas, naquele triste lar. A receita fora das boas. A mãe recebeu-a,
como de costume, com todos os carinhos; e o cego, lá no seu escuro, teve um
farto beijo aquele dia.
Ah! a vida era aquilo mesmo...
Estavam então amparados todos pela desgraça daquela criatura...
Coração de mãe, por mais vencido que
ande, às vezes como que se deixa galvanizar pela própria miséria. É por isso
que, ainda familiarizado com a dor, vem de repente lá do seio materno um
protesto que parece espantar o próprio destino. Josefa dissera aquilo, e teve
logo ímpetos de esmagar de carícias a filhinha: aquelas palavras como que
despertaram naquela alma de mãe a consciência de tanta desgraça... de que os pais
se aproveitam. O cego, que tem toda a sua vida concentrada na filhinha, e que,
se não vê com os olhos, tem a luz interior que devassa as profundezas do ser,
estremeceu numa convulsão de pranto ouvindo aquelas palavras.
O Júlio, a um lado, desconfiava de
tudo aquilo. Ele sentiu que todas as demonstrações eram para a Sarica. A ele
não lhe reconheciam coisa alguma. Entretanto, sem os esforços dele, a irmãzinha
nada faria. Muitas vezes a Sarica chegava até a querer cantar e a sorrir, e ele
é que evitava tais imprudências...
– É certo – explicou a menina – eu
às vezes tinha mesmo vontade de cantar. Eu estava triste, vendo que não me
davam coisa alguma... e sem que eu soubesse como... um grupo de moços
passava... e tantos níqueis eu recebia num instante, que meu coração parece que
saltava... Era em tais momentos que sentia umas ânsias de cantar para o céu um
hino com que uma vez sonhei, cantado pelos anjos... E não hei de morrer sem
compor uma oração que exprima tudo que sinto pela bondade da minha santa... Eu
sei que é santa Cecília quem me protege.
Por mim mesmo, que poderia eu merecer de Deus! Se ele me fez nascer assim, não
seria porventura para avisar-me que não devo esperar coisa alguma do céu neste
mundo? Não, Júlio, tem paciência: hei de cantar a minha oração...
– Pois se tu cantares nas ruas –
disse o Júlio gravemente – desde já te asseguro que não traremos um vintém. Tu
bem viste hoje: foi bastante que te alvoroçasses um pouco para que ninguém mais
te desse. Não há quem goste de mendigos alegres, ou de mendigos que cantem...
E suspirando muito intencionalmente:
– Não fosse eu... e havíamos de ver...
Eu é que te ando a ensinar a fazer cara de miséria e ares de fome. Tu estás sempre
a querer ocultar as pernas e os braços... Não fosse eu...
E concluiu amuado:
– Entretanto, nada mereço... Tu é
que fazes tudo. Este mundo é mesmo assim...
Não sei porque também não me fez
Deus aleijado...
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José Francisco da Rocha Pombo (1857—1933)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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