Sorria o luar. O perfume das rosas
subia ao céu, em volatas tênues, sutis, como um ex-voto à magia da noite.
Perpassava por entre escassilhos das
moitas, onde noivavam, em silêncio, libélulas fulgurantes, o sopro tépido da
brisa, leve e macia como se afagasse colos de virgens...
As árvores sussultavam suavemente,
como trêmulos arrepios de volúpia, quando o zéfiro, mensageiro de ânsias
longínquas, por sobre elas adejavam lentamente.
Nada destoava a placidez lírica do
jardim.
Um delíquio morno invadia furtivamente
a alma das coisas, como um suspiro mavioso de violino, que expirasse na
penumbra de uma nave.
A noite era elisíaca, o ar caricioso,
a terra aromal...
Vinha de muito longe o eco flébil de
uma voz dolente, como de alguém que rememorasse uma profunda, uma grande
saudade à luz das estrelas.
Pairava no ambiente o queixume sôfrego
de uma murmurância quebrada, como se perfume ativo das flores, em ascensão aos
céus, fosse cantando a balada dos desejos...
O lago, que, como uma psique oriental,
refletia toda a feminina vaidade da lua, era tão límpido, que em sua superfície
podia pousar um pensamento casto. O silêncio atuava sobre todos os sentidos da
natureza... Sentia-se o fremir das seivas, o cochicheio das flores, o ciciar
dos polens...
Todo um mundo de novos ritmos, de
novas formas, germinava naquele tálamo de silêncio... Amor! Amor! Quanto pode a
tua força, sobre o sensível e o insensível, o belo e o feio, os corpos e as
almas! Tudo inebrias, arrebatas, alucinas fazendo triunfar, sobre a estagnação
da noite, esposa do mistério — gêmea da Morte, a apoteose vivaz das madrugadas
— noivas da Vida...
Nisto, um vulto luminoso surge
levemente perto de mim, aéreo, inconsútil, como um elfo. A sua clâmide de
chamalote, broslada de soprilhos e colgaduras de lhamas fulgurantes, irradiava
na penumbra extática do jardim um estranho relumbramento!
Os seus gestos olímpicos e as sua voz
hidromelina impregnavam o ar de ondas rítmicas e ressonâncias de uma sinfonia
maravilhosa.
A majestade do vulto era tão
extraordinária que nem sequer interroguei quem era. A aura da sua grandeza
vinha até a minha alma como uma mensagem ancestral de beleza.
Era Salomão, o Poeta máximo da volúpia
cerebral do Cântico dos Cânticos.
— Oh divino patriarca do lirismo,
conta-me, como um ourives conta as pérolas raras dos colares que tem tocado com
os dedos, as pérolas femininas do teu colar sentimental, de homem que mais amou
na terra!
— Em verdade te digo: amei tanto que
até me tornei Sábio. O amor é um rio diáfano e encantado que nos leva ao mar
profundo da sabedoria. As minhas amantes foram tantas, que eu compus, ao cabo
de tantos anos, as minhas máximas com uma partícula da alma de cada uma
delas... A mulher! A mulher é a eterna inspiradora, o ponto de partida das
grandes viagens do espírito.
Quando na terra se ama como eu amei, a
vida se desdobra, se intensifica tanto, que ao morrermos deixamos gravado na
memória do mundo o marco eterno da nossa passagem.
Ama sempre, perenemente, até sentires
o coração bramir dentro do peito, desesperadamente: trégua... trégua...
trégua...
Houve entre nós dois uma síncope
cerebral; emudecemos extasiados... Em torno de nós, como que espíritos
invisíveis indiscretamente escutavam o nosso colóquio. O luar, diluído na
atmosfera, bistrava de tons alvos-alabastrinos a cabeça apolínea do patriarca.
— Qual o segredo dos teus triunfos, ó
divino amante?
— A sutileza de espírito, a candura do
coração e o entusiasmo dos nervos!...
Sulamita, amei-a com espírito e
coração; Belkiss, com entusiasmo dos nervos!... A primeira, branca como um
beijo de luz num floco de neve, inspirou-me um poema; a segunda, loira como um
pingo de mel numa gota de leite, doou-me um filho — David.
Uma entrou em minha alma: eternizei-a
perante Deus; a outra se transfundiu em meu ser: eternizei-a perante os homens!
Isso só existe quando o espírito perde
a sua ascendência sobre o corpo. Para que uma paixão pulse ardentemente dentro
de nós, não basta termos-la no coração, é necessário termos-la também no
cérebro. O coração, fiel ao senso da terra, ressoa os gritos da espécie, é um
obscuro receptáculo, ao passo que o espírito, mensageiro do céu, translúcido,
imortal, ressoa os ecos de todas as belezas das esferas, é um luminoso
irradiador!... Fiz, assim, da minha alma, uma selva rútila e perfumada, onde as
almas de todas as mulheres que amei iam cantar o grande hino do amor.
Glorifiquei em mim, com exaltação, Apolo e Eros. Sob a ebriez lustral de novos
amores, eu caminhava sempre para novos horizontes espirituais. Os meus lábios,
em delírio, hauriam o néctar perturbador aurorais das minhas amantes, mas o meu
espírito, na ânsia incontida da beleza, criava as parábolas que espalhei na
terra.
O grande pecado do homem não é o amar
muito, é ele fazer do amor uma escravidão, quando ele é uma liberdade!
Na floresta humana, as mulheres são
árvores sagradas — os pomos, repositórios da luz e do perfume dos astros,
aplacam a volúpia de mistério e irrevelado, misto de suavidade e dor, carícia e
tortura, fecunda sempre o nosso espírito e deslumbra sempre a nossa alma!...
A essas últimas palavras, as árvores
do jardim, como que ufanas de ter comparticipado da imagem feita pelo divino
patriarca do lirismo, atapetaram de folhas os nossos pés, como humilde preito
de homenagem. E uma voz, onde havia toda a plangência dos carmes, repercutiu
mestamente no silêncio: “Salomão... Salomão...! Volta para o teu reino de luz,
de harmonias e belezas!”.
Cerro, como quem aspira ao aroma de
uma flor, os olhos. O vulto, sulcando a treva de um clarão flavo, desapareceu
lentamente. E as suas palavras ficaram vibrando na minha memória: amei tanto,
que até me tornei Sábio.
E sorria o luar...
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