7/01/2019

Representação da Câmara Municipal de Belém ao Governo (Ensaio), por Alexandre Herculano



Representação da Câmara Municipal de Belém ao Governo
Senhor:
A câmara do concelho de Belém, eleita para o biênio de 1854 e 1855, no momento de entrar no exercício das suas funções, entendeu que o seu primeiro dever é fazer subir à presença de Vossa Majestade, uma exposição fiel da situação econômica e administrativa do novo município, e pedir justiça para os habitantes dele, sem o que a câmara não se poderá habilitar para estabelecer os seus meios de administração e satisfazer aos encargos que pesam sobre ela. Os vereadores sentem ter de distrair a atenção de Vossa Majestade e a dos seus ministros, dos negócios gerais do Estado para uma questão puramente local; mas constrange-os a assim procederem a obrigação que têm de não trair a confiança que neles depositaram os seus concidadãos.
Os decretos de 11 de setembro de 1852, que constituíram os dois concelhos de Belém e dos Olivais com o antigo termo de Lisboa, foram uma providência benéfica; mas foram ainda mais do que isso: foram uma providência justa no seu pensamento. O Governo reconheceu no respectivo relatório a urgência e a justiça daquela medida reclamada pelos povos. Posto que aí não se particularizassem os fundamentos dessa justiça, os ministros que propuseram e referendaram aqueles decretos tinham-nos por certo presentes. À câmara de Belém cumpre, todavia, apontar os principais para neles estribar as conclusões mais importantes desta representação.
Talvez em nenhuma questão de direito público, o legislador deva ser mais cauteloso em não ferir o dogma da igualdade dos cidadãos perante a lei, do que em matéria de tributos. Era todavia nesta relação que os habitantes do denominado termo de Lisboa, pareciam constituir uma classe de ilhotas no meio da população portuguesa. Aos tributos gerais deste território, que entravam nos cofres do Estado, acresciam outros que constituíam pela sua índole e origem, e pela sua importância, a melhor porção dos impostos municipais, sendo necessário ainda contribuir com uma série de pesadas e variadas contribuições diretas e indiretas, que conservavam o primitivo destino, para perfazer a sua quota nos encargos gerais do concelho de Lisboa, a que o mesmo território andava anexo. Por este modo os numerosos habitantes de algumas léguas quadradas em volta da capital, ficavam nessa parte fora do direito comum.
Na aparência, esta situação constitucionalmente impossível, vinha a ser a mesma de Lisboa, onde as contribuições arrecadadas na repartição das Sete Casas, são verdadeiros impostos municipais que entram no tesouro público e de que o Governo deduz certa parte para dotação do concelho. Mas em Lisboa esta exceção tinha e tem um fim justo. Tende a estabelecer a igualdade parecendo destruí-la: equilibra por excesso de encargos um excesso de vantagens. Lisboa tem teatros, aquedutos, jardins, monumentos que custaram milhões tirados dos cofres públicos, escolas superiores, academias, museus, bibliotecas, tudo mantido à custa do Estado. Grande parte das contribuições gerais despendem-se no seu seio, e a circunstância de ser o centro da administração, o foco do luxo e da civilização do país, dá-lhe uma população flutuante, que vem por mil modos consumir aí boa parte da renda liquida da propriedade e do trabalho nacional. A aplicação de uma porção das rendas do município a compensar benefícios tão custosos para o resto do reino como importantes para a cidade, é justa. Repetimo-lo, desigualdade aparente é neste caso a igualdade real.
Estas considerações não eram nem são aplicáveis ao território circum-adjacente de Lisboa, distrito pela maior parte rural, cuja indústria agrícola definhava, como bem advertiu o Governo, debaixo da pressão inevitável da fiscalização dos impostos de consumo. Aqui a desigualdade de situação, relativamente aos outros concelhos rurais, era palpável e escandalosa, porque não tinha nenhuma das compensações que justificam o gravame extraordinário que pesa sobre a capital. Bastava comparar dois fatos que estavam patentes aos olhos de todos, para conhecer a injustiça que se praticava. Ao ponto que em Lisboa os edifícios arruinados se reedificavam e se multiplicavam as novas construções; enquanto aí o comércio em grosso e de retalho e as indústrias fabris cresciam a olhos vistos, na parte urbana mais populosa do termo e que se considerava até como um bairro da cidade, nas freguesias de Belém e Ajuda, viam-se cair ou serem derribadas as casas, fecharem-se lojas, acabarem pequenas indústrias, enfim todos os sinais de uma rápida decadência. A opressão e o excesso do imposto faziam seu ofício; o que faltava eram os elementos de vida que anulam em Lisboa os efeitos da desigualdade das contribuições.
Tais deviam ser os fundamentos principais da desanexação. A consequência forçosa desta, era equiparar os novos concelhos aos outros concelhos do reino. Foi o que só se fez até certo ponto, deixando-se continuar a subsistir a injustiça na aplicação para o tesouro público, de uma parte dos impostos de sua natureza municipais, que até então se cobravam pela alfandega das Sete Casas.
Os decretos de 11 de setembro de 1852, tiveram por objeto beneficiar os habitantes do antigo termo. Negá-lo seria negar a verdade. O que não lhes fizeram foi justiça inteira. Talvez se possa sustentar a legitimidade do imposto excepcional e gradativo, que a lei estabeleceu nas licenças para a venda de líquidos, até certa distância da linha de circunvalação de Lisboa. É matéria essa que esta câmara ainda não examinou devidamente e sobre que, portanto, não se julga habilitada para reclamar, podendo acaso considerar-se tal tributo como uma transformação de parte dos impostos de consumo da capital, que de nenhum modo se poderiam cobrar nas barreiras. Mas além desse, estabeleceram-se outros dois para os quais a câmara não acha razão plausível. São os de dez reis em canada de vinho, vendido a miúdo e de quinze reis em arrátel de carne verde. A disposição que os estabeleceu, reduzindo os direitos que o termo pagava às Sete Casas, importava um benefício, uma concessão parcial; mas importava também um encargo que nada pode justificar.
No relatório que precede um dos decretos de 11 de setembro relativos a este assunto, assevera-se que a solução dos impostos especiais que os novos concelhos continuam a pagar, é justa pelos benefícios e cômodos que lhes resultam do contato com a capital.
Quais são os fundamentos desta afirmativa? Ocultou-os o Governo. A câmara procurou rastreá-los. Examinando a série de fatos em que ela se poderia estribar, não achou senão três que não sejam insignificantes: 1º a segurança pública mantida numa pequena porção do seu território pela guarda municipal: 2º desnecessidade de um estabelecimento especial de expostos: 3º a proximidade do grande mercado de Lisboa para os produtos da indústria agrícola dos dois concelhos. Fora disto a câmara não atina com as vantagens que possa trazer aos seus administrados a vizinhança da capital.
Pelo que respeita ao serviço de segurança pública, feito numa pequena parte do concelho, a câmara de Belém, uma vez que se faça inteira justiça, pagará cora a melhor vontade pelo seu cofre, a quota que se arbitrar proporcional ao serviço da guarda municipal de Lisboa neste concelho.
Relativamente aos expostos o concelho de Belém está igualmente pronto a contribuir para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, do mesmo modo que contribui a câmara da cidade, guardada a relação das respectivas populações, além de estar certo que a Junta Geral do Distrito não deixará de prover nesse caso, conforme as atribuições que lhe confere o § 7 do art. 216º do código Administrativo.
Reconhecendo essas vantagens, a câmara de Belém dá um documento de boa-fé, oferecendo-se voluntariamente a retribui-las. A mesma boa-fé a obriga, porém, a ponderar que o 3º fundamento que pode ocorrer para a conservação de impostos excepcionais, ou não existe ou é compensado de sobra por desvantagens reais.
A população dos novos concelhos de Belém e dos Olivais é uma população principalmente rural, fato que não deveria ter esquecido na confecção das leis de setembro. Todos sabem que hoje o maior embaraço da agricultura portuguesa é a escassez de braços. Tendo-se desenvolvido muito em extensão e pouco em intensidade, o aumento progressivo do seu produto bruto, resultado da maior área cultivada, não está em harmonia com o desenvolvimento da população agrícola. Assim, enquanto os produtos da primeira indústria nacional caminham regularmente para a baixa pela superabundância, o salário tende de contínuo a elevar-se. No reino em geral a situação do proletário melhorou e muito, porém o cultivador por essas tendências opostas de alta e baixa, mas que convergem ambas em seu dano, cada vez se vê em maiores apuros e dificuldades. Este fenômeno comum agrava-se nas cercanias de Lisboa por diversas circunstâncias, que justamente procedem da vizinhança de uma populosa capital. A indústria fabril desenvolvida em Lisboa desproporcionadamente com o resto do país, excetuando, talvez o Porto, traz uma procura maior de braços, que é causa poderosa do acréscimo do salário rural nos concelhos limítrofes. Depois o excesso de produção geral mantendo um excesso de concorrência por toda a parte, exagera esta no principal mercado do reino, e a depressão dos preços torna-se correlativa dessa exageração; por isso acontece, não só equipararem-se às vezes, mas até acharem-se mais baratos os gêneros (cativos de direitos) na capital do que nos distritos remotos onde foram produzidos. Acrescente-se a isto a decadência no mercado dos trigos durázios, principal produção do antigo termo, e a preferência dada aos trigos ribeiros impróprios destes terrenos; acrescente-se também a contínua destruição dos pomares por uma enfermidade que não tem sido, que não será provavelmente atalhada, e poder-se-á calcular se os novos concelhos, debaixo destas condições desfavoráveis, independentes da sua proximidade ou não proximidade da capital, mas pioradas pelas circunstâncias que nascem dessa vizinhança, devem ser onerados com impostos extraordinários.
Na situação econômica em que se acha a agricultura, de produzir caro e vender barato, a tenuidade do lucro sente-se com dobrada força na vizinhança da capital, e essa vizinhança para as populações agrícolas, longe de ser um bem é um mal. A máxima concorrência do numerário é em Lisboa, e o numerário como outra qualquer mercadoria deprime-se pela concorrência; ou por outra, a vida torna-se mais cara por esse motivo não só na cidade mas também nas suas imediações. Ao passo porém, que se dá este fato, ocorre outro que com ele se combina. A população rural vizinha de Lisboa, cuja civilização material é muito maior que a das províncias, participa mais ou menos dessa civilização, porque a influência desta é inevitável e irresistível. Daí resulta para ela um maior número de necessidades a satisfazer com o numerário deprimido no seu valor de troca. E este fato vem não só influir diretamente no bem-estar do proprietário, do agricultor, do seareiro, do pequeno comerciante, dos contribuintes, em suma, mas também associar-se às causas gerais e locais da elevação do salário, e a recair por outro modo indiretamente sobre eles.
Há mais. Quando a ação fiscal das Sete Casas abrangia também o termo, os cereais que vinham de fora encontravam aqui um tributo que rigorosamente constituía um dos chamados direitos protetores para os lavradores destes contornos. Era o de 60 reis por arroba no gênero, ao passo que os cereais de lavra própria consumidos no termo não sofriam contribuição alguma de consumo. Separados os novos concelhos, os cereais estranhos vem concorrer livremente com os de produção local, que aliás tem de ir lutar com eles no mercado de Lisboa, onerados com os mesmos 60 reis por arroba que os outros pagam. Acresce a isto outro inconveniente resultante da proximidade de um grande mercado. Os cereais do Ribatejo e Alentejo afluindo à capital, deprimidos como se notou já por uma concorrência excessiva, achando aberto o mercado contíguo dos novos concelhos, com um favor de quase 50 reis por alqueire que lhes resulta da supressão do direito fiscal nestes pontos, e sem diferença de custo no transporte, afluem naturalmente aqui ainda mais do que a Lisboa, e aumentam pelos efeitos de uma concorrência exagerada, no mercado interno dos ditos concelhos, os embaraços gerais e particulares em que laboram os agricultores do nosso território.
A câmara, Senhor, tem de advertir de passagem, para que os seus desejos não sejam caluniados e as suas ideias mal interpretadas, que não suspira por direitos alguns protetores, por leis de exceção que favoreçam a agricultura do concelho de Belém com detrimento da alheia. Pelo contrário está persuadida de que a liberdade da indústria e do comércio, quanto mais ampla melhor, há de vir a remediar os males que quase sempre resultam da transição do antigo sistema de tropeços fiscais, para o sistema contrário que é o verdadeiramente protetor. A câmara crê ser fiel intérprete da opinião dos seus representados, asseverando que estes preferem a sua independência municipal, a essa união absurda com a capital, que tinha por base a injustiça e a iniquidade; preferem-na a essa rede de vexames que fazia pesar sobre este território a fiscalização das Sete Casas e que eram uma fonte perene de imoralidade e de crimes; preferem-na aos tributos desiguais e sem razão d'existência com que estavam onerados. O intuito da câmara é provar que os que se decretaram são tão injustos como os que foram suprimidos, porque as vantagens da vizinhança de Lisboa em que a ditadura se fundou para os estabelecer, não existem ou são anuladas por desvantagens que resultam da mesma circunstância.
Há, Senhor, um fado assaz significativo, que se prende a esta questão, e sobre o qual a câmara de Belém chama a atenção dos ministros de Vossa Majestade. O termo fiscal das Sete Casas não abrangia só o território dos concelhos novamente criados: estendia-se por freguesias de outros concelhos limítrofes. Acabando com o termo, e criando os novos impostos só nos dois municípios, a ditadura libertou indiretamente de todos os ônus extraordinários aquelas freguesias. Se isso era justo em relação a elas, como o seria também que ficassem ao mesmo tempo oneradas as que compõem os concelhos de Belém e dos Olivais? Nenhuns motivos podem existir para tão flagrante desigualdade.
Mas suponhamos, Senhor, que as considerações em que se estriba a imposição dos novos tributos, cuja supressão a câmara pede, eram exatas. Não desaparecem essas razões diante de outro fato da própria ditadura, de que ela se esqueceu ao promulgar os decretos de 11 de setembro? O Governo contratou a feitura de um caminho de ferro que partindo da capital vai atravessar alguns territórios mais férteis do reino. Os efeitos de uma tal via de comunicação serão o aproximar, tornar contíguos, digamos assim, das portas da capital, um grande número de ricos concelhos da Estremadura e do Alentejo. Em relação ao contato comercial entre esta e muitos dos concelhos do Ribatejo; em relação à facilidade de transportes, e comunicações de toda a ordem, esses concelhos ficarão mais perto do centro de Lisboa do que Odivelas, Carnide, Porcalhota, o vale de Oliveiras ou a ribeira de Algés, cujos cultivadores têm de conduzir os produtos da sua indústria ou de ir buscar os objetos de que carecem, por estradas ordinárias abertas imperitamente em encostas ladeirentas, estradas que não é possível mudar ou sequer melhorar, sem dispêndio de avultados impostos municipais.
Se dos novos concelhos se devem tirar algumas dezenas de contos de reis porque estão em próximo contato com Lisboa, ou a igualdade dos cidadãos perante as leis tributarias é uma fábula, ou a esses concelhos coreograficamente mais remotos, mas atravessados pelo caminho de ferro, se há de exigir uma maioria de impostos, tanto ou mais pesados que os criados pelos decretos de 11 de setembro, para o termo desanexado e constituído municipalmente.
Mas abstraindo da existência ou não existência do caminho de ferro, temos um fato atual e não contingente, que mostra com evidência o nenhum fundamento de um imposto especial nos dois municípios do antigo termo. É o dos concelhos da margem esquerda do Tejo em frente de Lisboa. Todos sabem que a facilidade de transporte e comunicação pelas vias aquáticas apenas é inferior à que proporcionam as estradas férreas, e que em relação à barateza esse meio de transito é às vezes superior ao destas. Nos seus efeitos econômicos a distância de algumas freguesias dos novos concelhos ao interior da cidade, empregando os meios ordinários de transporte, pelos caminhos comuns, está talvez numa razão quadrupla da distância de Almada (por exemplo) ao centro da capital. E todavia ninguém se lembra de fazer pagar aos habitantes daqueles territórios um imposto especial, pela rapidez e facilidade das suas comunicações com Lisboa.
A câmara, Senhor, não pede esses impostos, porque não pede absurdos, nem folga com os males e opressões alheias. Reclama simplesmente para os seus administrados o direito comum, a lei da igualdade garantida na Carta constitucional.
Demonstrada a insubsistência da razão do relatório que precede um dos decretos de 11 de setembro, resta outra talvez menos categoricamente expressa no mesmo relatório, mas que era a mais forte em relação ao tesouro público. O respectivo ministro pressupunha uma diminuição de renda pelo fato da desanexação do termo. Obstava-lhe isto à supressão de alguns direitos de consumo em Lisboa, mas influía também na conservação de parte deles no antigo termo. Vem prová-lo a discussão que houve na câmara dos Dignos Pares na sessão de 13 de agosto de 1853, exclusivamente relativa aos impostos excepcionais conservados nos dois novos concelhos. Nessa sessão o mesmo ministro declarou que, atento o estado da Fazenda, a mente do Governo não fora efetuar uma redução no quantitativo dos impostos, mas unicamente aliviar os vexames. Posto que esta declaração seja altamente inexata, (visto que foi diminuído o quantitativo na carne e no vinho, e substituída a base do consumo pela da venda, o que põe a salvo do mesmo imposto, todos os que mandarem vir de fora do concelho aqueles dois gêneros diretamente para o próprio consumo, e visto que foram inteiramente abolidos outros impostos das Sete Casas, no termo, como os do azeite e do combustível) todavia a explicação é terminante quanto às considerações econômicas que moveram a ditadura a conservar nos novos concelhos uma parte dos antigos impostos. Além da persuasão de que era justo pagar mais pela contiguidade de Lisboa, as apreensões do Governo acerca de um desfalque na renda pública, em frente de um déficit, obrigaram-no pois, a não estender a esta parte do país o benefício do direito comum.
Sem discutir se é lícito invocar motivos de tal ordem quando se trata de um negócio de justiça ou de injustiça, porque se o ato é justo as considerações de conveniência ou inconveniência são supérfluas, e se é injusto nunca elas o podem legitimar, a câmara de Belém aceita esse fundamento. Se, porém, os fatos vierem provar que a desanexação do termo, longe de trazer um desfalque nas rendas cobradas pelas Sete Casas, deu um resultado contrário, isto é, um aumento de receita, é evidente que esse mesmo fundamento cai por terra, e a conservação dos direitos nos novos concelhos fica reduzida à categoria de uma opressão absolutamente infundada.
E é exatamente, Senhor, o que se verifica. Tomado o rendimento das Sete Casas e Terreiro (repartições unidas pelas reformas de 11 de setembro de 1852) durante os primeiros seis meses da nova organização, (setembro, outubro, novembro, dezembro, de 1852, janeiro e fevereiro de 1853) acha-se que o seu valor foi de 532:098$421 réis: examinando porém os rendimentos das duas repartições separadas, nos meses correspondentes de 1851 a 52, acha-se que o das Sete Casas foi de 416:054$523 réis e o do Terreiro de 70:894$940 réis, o que perfaz um total de 486:949$463 réis. Assim a concentração da ação fiscal até à linha da circunvalação, onde essa ação é possível e eficaz, produziu o efeito que devia produzir, um aumento de receita em seis meses de 45:148$958 réis. Na verdade, os novos direitos criados sobre legumes e que subiram nesse período a 5:450$561 réis, reduziriam o excesso a menos de 40 contos: mas deve-se atender também a que desapareceu do rendimento das Sete Casas a verba dos direitos de exportação de vinhos, e além disso, por efeito da nova lei da sisa, o produto desta diminuiu nos seis meses de 1852 a 53, tomados por termo de comparação, de 3:500$000 réis, podendo-se deduzir da falta de uma verba e da diminuição da outra, que o sobredito acréscimo nos direitos de consumo, excede muito os 45 contos de réis.
Tais são, Senhor, os fatos e as razões que a câmara municipal de Belém submete à consideração de Vossa Majestade, acerca dos impostos extraordinários que ficaram pesando sobre os novos municípios. A abolição deles é moralmente necessária, e decerto o Governo de Vossa Majestade não deixará, à vista das considerações expostas, de tomar, perante o Parlamento, a iniciativa de uma modificação indispensável da lei, cujo espírito e cuja intenção benéfica não é possível desconhecer.
A câmara, Senhor, diz — intenção benéfica — e di-lo mui de propósito. Repetindo ainda uma vez que os habitantes deste concelho tiraram vantagens reais dos decretos de 11 de setembro, ela sente que lhe cumpra representar dentro em breve a Vossa Majestade, sobre as interpretações forçadas que se tem dado às disposições claras e terminantes da lei, para se gravarem os povos, e abusos que se tem praticado e praticam, para conservar em proveito particular os vexames de que, na sessão de 13 de agosto de 1853, o ministro da fazenda asseverava (provavelmente por falta de exatas informações) estarem livres os novos municípios. Nesta parte a câmara recorrerá oportunamente a Vossa Majestade, para que de pronto se ocorra a males, cujo remédio depende simplesmente do executivo. Na presente súplica restringe-se a mostrar os inconvenientes que só podem ser removidos pelo legislativo.
A insubsistência dos motivos que se buscaram para conservar os novos concelhos numa situação excepcional produziu, como era de esperar, disposições que na lei contrariavam esses motivos. A consciência de que realmente os novos concelhos não deviam ser onerados com os encargos especiais que se lhes impuseram, inspirou a prescrição do artigo 12º do decreto de 11 de setembro de 1852, expedido pelo Ministério do Reino, no qual se estatui que o Governo dará anualmente uma prestação às câmaras dos municípios novamente criados, equivalente à despesa média que anteriormente fazia a câmara de Lisboa, com a iluminação e calçadas no território desanexado. Se na realidade os impostos então estabelecidos eram uma compensação das vantagens obtidas pela proximidade da capital, se o Governo queria além disso obstar com eles a um aumento de déficit, a câmara de Belém não pode atinar com a razão porque se lhe havia de fazer um dom puramente gratuito, aumentando para isso o déficit em detrimento comum da nação. Nem se diga que essa dádiva é deduzida da prestação concedida ao conselho de Lisboa. Não importam para este caso nem a origem ou legitimidade daquela prestação, nem a justiça das deduções que nela se fazem. O que importa é que estabelecendo a dotação que se destina a esta câmara, a ditadura ou não estava bem firme nos princípios que invocava, ou desbaratava uma soma que aliás deveria entrar nos cofres públicos, fazendo donativo dela aos habitantes do antigo termo.
Mas esta disposição não é só contraditória com os fundamentos das provisões tributarias de um dos decretos de 11 de setembro: é também inexplicável em si mesma. Ordena-se aí que as somas dadas aos novos concelhos, sejam calculadas pela média da anterior despesa local, de iluminação e calçadas. Porque, porém, essas duas únicas verbas hão de ser tomadas para base do cálculo, e não conjuntamente a assaz avultada da limpeza, a dos vencimentos, etc.?
Se o Governo entende, contra as suas próprias declarações, que recebendo destes dois concelhos perto de 60 contos anuais de contribuição extraordinária, tem o dever de prover às suas despesas municipais, não é por certo com suprimentos calculados arbitrariamente e muito inferiores aos encargos locais, que reparará a flagrante injustiça daquela contribuição.
Se todavia tais provisões devem cair diante das considerações que teoricamente as invalidam, que dirá, Senhor, esta câmara acerca do artigo 6º do decreto de 11 de setembro expedido pelo Ministério do Reino, que priva o concelho das propriedades municipais, para as atribuir ao de Lisboa? Acaso os logradouros comuns dos vizinhos e que só pelos vizinhos podem materialmente ser utilizados, os mercados, cuja localidade aliás pertence à câmara escolher, com aprovação da Junta Geral de Distrito, os cemitérios enfim, onde repousam as cinzas dos pais, irmãos e filhos dos habitantes do concelho, podem ou devem constituir propriedade alheia? Esta prescrição, van quanto a mercados e logradouros de que os habitantes de Lisboa não podem utilizar-se, oferece, quanto aos cemitérios, uma nova espécie de servidão, a servidão que passa além dos túmulos. As cinzas dos mortos do concelho de Belém pertenceram ao município da capital, e puderam ser mudadas ou dispersas ou vendidas com o chão que as cobre, sem que seja lícito à própria municipalidade obstar a tais atos? Fortes deviam ser os motivos que a ditadura teve presentes para tomar tão estranha providência; mas esta câmara não os alcança, e por isso mal pode combatê-los.
Demonstrado, como parece ficar, que os decretos de 11 de setembro, justos e benéficos no seu pensamento, pelas provisões especiais que encerram, anulam na maior parte os bons efeitos desse pensamento, segue-se a necessidade da sua reforma. Tendo sido os mesmos decretos ato do Governo constituído em ditadura, e sendo para ele honroso o havê-los publicado, embora imperfeitos no seu desenvolvimento, esta câmara entendeu que devia antes dirigir-se a Vossa Majestade do que ao Parlamento, para que o Governo pudesse usar neste negócio de uma iniciativa que justamente lhe pertence.
Não só essa consideração, mas também o sabido e provado amor de Vossa Majestade à equidade e a tudo quanto possa arredar dos povos opressões e vexames, asseguram feliz êxito a uma pretensão tão legítima, e fundada em tão urgentes razões. Se, porém, os ministros de Vossa Majestade houvessem de desprezá-la, o que de nenhum modo esta câmara espera, então ela se veria na necessidade de apelar diretamente para os representantes do país, e não cessaria nas suas súplicas até obter desagravo e inteira justiça.
A câmara de Belém está tão convencida de que não existe motivo nenhum razoável para os seus administrados viverem, em relação aos impostos, fora do direito comum; conhece tanto a impossibilidade de sobrecarregar com fintas, derramas ou outros quaisquer tributos, um concelho em cuja parte urbana as aparências externas bastam para indicar decadência, e que na parte rural luta com as dificuldades que ficam ponderadas; repugna-lhe tão profundamente anular pelo estabelecimento de novos encargos, o alívio que resultou para este território da sua separação da capital, que está na firmíssima resolução de não exigir dos habitantes dele um único ceitil para as despesas do município, enquanto não forem libertados do tributo extraordinário lançado pelas leis de setembro sobre dois dos mais importantes objetos de consumo, as carnes verdes e o vinho, tributo cuja importância neste concelho excede a 30 contos de réis. Seja qual for o resultado dos seus esforços, que serão incessantes acerca deste negócio, a resolução que tomou de não legitimar com a sua aquiescência uma situação constitucionalmente impossível, ficará inabalável porque assenta em convicções indestrutíveis.
A câmara reconhece que o mal não pode ser remediado senão num certo prazo, pela indispensável intervenção do Parlamento. Existe além disso um contrato de arrematação dos novos impostos no concelho de Belém, que só termina em junho do corrente ano, e um dos primeiros deveres do Governo é manter ilesa a fé pública. O tempo que resta ainda para os habitantes deste município sofrerem a arrematação dos direitos de venda sobre o vinho e carnes verdes, é suficiente para o Governo fazer votar nas duas casas do Parlamento, as reformas indispensáveis dos decretos ditatoriais de 11 de setembro. No decurso deste período a câmara procurará conciliar os deveres que lhe impõe a voz da consciência com a escrupulosa obediência às leis vigentes, porque sabe que a primeira condição da liberdade é a observância da lei. Na órbita da sua ação não tolerará abusos da parte dos arrematantes daqueles tributos excepcionais, mas não tolerará também que lhes sejam defraudados pelos habitantes do concelho do que legitimamente lhes pertencer.
Aplicando ao cofre municipal de Belém uma quota deduzida da dotação do de Lisboa, calculada sobre uma base desarrazoada, mas precisa, as leis de setembro atribuíram ao Governo e à câmara da capital a avaliação dessa quota, excluindo virtualmente a câmara de Belém do direito de verificar, à vista dos documentos da mesma avaliação, a exação dela. É mais uma violência transitória a que este concelho tem de submeter-se. A câmara aceitará essa soma (qualquer que venha a ser) fixada pelo arbítrio do Governo e da câmara de Lisboa interessada em que seja a mais modica possível. Com ela, com o produto das licenças e com outra qualquer pequena fonte de rendimento que possa existir, ocorrerá às despesas de administração, de limpeza, de calçadas e de iluminação, até onde esses rendimentos chegarem, certa de que os seus representados preferirão a falta temporária de uma parte dos cômodos e vantagens que deve subministrar-lhe a administração municipal, a que esta câmara pratique o mínimo ato, do qual se possa deduzir que o concelho presta a sanção do seu assentimento a provisões tributarias que são moralmente impossíveis.
Se porventura, Senhor, o Governo de Vossa Majestade entendesse dever cerrar os ouvidos às representações desta câmara, o que nem remotamente os abaixo assinados suspeitam, também ela poderia elevar respeitosamente à presença de Vossa Majestade, uma súplica para que ordenasse ao seu Governo que, usando das atribuições que lhe confere o artigo 106º do Código Administrativo, a dissolvesse, sendo certo que os habitantes do concelho de Belém facilmente achariam outros cidadãos que melhor soubessem promover os seus interesses municipais do que os atuais vereadores.
Deus Guarde a Vossa Majestade por muitos e dilatados anos como todos havemos mister, — Câmara 11 de fevereiro de 1854— O presidente, Alexandre Herculano —João Ferreira Godinho —João José Teixeira —José Street de Arriaga e Cunha — Visconde da Junqueira.



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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1854, e publicado em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019).

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