Representação
da Câmara Municipal de Belém ao Governo
Senhor:
A câmara do concelho de Belém, eleita para o biênio de
1854 e 1855, no momento de entrar no exercício das suas funções, entendeu que o
seu primeiro dever é fazer subir à presença de Vossa Majestade, uma exposição
fiel da situação econômica e administrativa do novo município, e pedir justiça
para os habitantes dele, sem o que a câmara não se poderá habilitar para
estabelecer os seus meios de administração e satisfazer aos encargos que pesam
sobre ela. Os vereadores sentem ter de distrair a atenção de Vossa Majestade e
a dos seus ministros, dos negócios gerais do Estado para uma questão puramente
local; mas constrange-os a assim procederem a obrigação que têm de não trair a
confiança que neles depositaram os seus concidadãos.
Os decretos de 11 de setembro de 1852, que constituíram
os dois concelhos de Belém e dos Olivais com o antigo termo de Lisboa, foram
uma providência benéfica; mas foram ainda mais do que isso: foram uma providência
justa no seu pensamento. O Governo reconheceu no respectivo relatório a urgência
e a justiça daquela medida reclamada pelos povos. Posto que aí não se particularizassem
os fundamentos dessa justiça, os ministros que propuseram e referendaram
aqueles decretos tinham-nos por certo presentes. À câmara de Belém cumpre,
todavia, apontar os principais para neles estribar as conclusões mais
importantes desta representação.
Talvez em nenhuma questão de direito público, o
legislador deva ser mais cauteloso em não ferir o dogma da igualdade dos
cidadãos perante a lei, do que em matéria de tributos. Era todavia nesta
relação que os habitantes do denominado termo de Lisboa,
pareciam constituir uma classe de ilhotas no meio da população portuguesa. Aos
tributos gerais deste território, que entravam nos cofres do Estado, acresciam
outros que constituíam pela sua índole e origem, e pela sua importância, a
melhor porção dos impostos municipais, sendo necessário ainda contribuir com
uma série de pesadas e variadas contribuições diretas e indiretas, que
conservavam o primitivo destino, para perfazer a sua quota nos encargos gerais
do concelho de Lisboa, a que o mesmo território andava anexo. Por este modo os
numerosos habitantes de algumas léguas quadradas em volta da capital, ficavam
nessa parte fora do direito comum.
Na aparência, esta situação constitucionalmente
impossível, vinha a ser a mesma de Lisboa, onde as contribuições arrecadadas na
repartição das Sete Casas, são verdadeiros impostos municipais que entram no tesouro
público e de que o Governo deduz certa parte para dotação do concelho. Mas em
Lisboa esta exceção tinha e tem um fim justo. Tende a estabelecer a igualdade
parecendo destruí-la: equilibra por excesso de encargos um excesso de
vantagens. Lisboa tem teatros, aquedutos, jardins, monumentos que custaram
milhões tirados dos cofres públicos, escolas superiores, academias, museus,
bibliotecas, tudo mantido à custa do Estado. Grande parte das contribuições
gerais despendem-se no seu seio, e a circunstância de ser o centro da
administração, o foco do luxo e da civilização do país, dá-lhe uma população
flutuante, que vem por mil modos consumir aí boa parte da renda liquida da
propriedade e do trabalho nacional. A aplicação de uma porção das rendas do
município a compensar benefícios tão custosos para o resto do reino como
importantes para a cidade, é justa. Repetimo-lo, desigualdade aparente é neste
caso a igualdade real.
Estas considerações não eram nem são aplicáveis ao
território circum-adjacente de Lisboa, distrito pela maior parte rural, cuja
indústria agrícola definhava, como bem advertiu o Governo, debaixo da pressão
inevitável da fiscalização dos impostos de consumo. Aqui a desigualdade de
situação, relativamente aos outros concelhos rurais, era palpável e
escandalosa, porque não tinha nenhuma das compensações que justificam o gravame
extraordinário que pesa sobre a capital. Bastava comparar dois fatos que
estavam patentes aos olhos de todos, para conhecer a injustiça que se praticava.
Ao ponto que em Lisboa os edifícios arruinados se reedificavam e se
multiplicavam as novas construções; enquanto aí o comércio em grosso e de
retalho e as indústrias fabris cresciam a olhos vistos, na parte urbana mais
populosa do termo e que se considerava até como um bairro da cidade, nas freguesias
de Belém e Ajuda, viam-se cair ou serem derribadas as casas, fecharem-se lojas,
acabarem pequenas indústrias, enfim todos os sinais de uma rápida decadência. A
opressão e o excesso do imposto faziam seu ofício; o que faltava eram os
elementos de vida que anulam em Lisboa os efeitos da desigualdade das
contribuições.
Tais deviam ser os fundamentos principais da
desanexação. A consequência forçosa desta, era equiparar os novos concelhos aos
outros concelhos do reino. Foi o que só se fez até certo ponto, deixando-se
continuar a subsistir a injustiça na aplicação para o tesouro público, de uma
parte dos impostos de sua natureza municipais, que até então se cobravam pela
alfandega das Sete Casas.
Os decretos de 11 de setembro de 1852, tiveram por
objeto beneficiar os habitantes do antigo termo. Negá-lo seria negar a verdade.
O que não lhes fizeram foi justiça inteira. Talvez se possa sustentar a legitimidade
do imposto excepcional e gradativo, que a lei estabeleceu nas licenças para a
venda de líquidos, até certa distância da linha de circunvalação de Lisboa. É
matéria essa que esta câmara ainda não examinou devidamente e sobre que,
portanto, não se julga habilitada para reclamar, podendo acaso considerar-se
tal tributo como uma transformação de parte dos impostos de consumo da capital,
que de nenhum modo se poderiam cobrar nas barreiras. Mas além desse,
estabeleceram-se outros dois para os quais a câmara não acha razão plausível.
São os de dez reis em canada de vinho, vendido a miúdo e de quinze reis em arrátel de carne verde. A disposição que os estabeleceu, reduzindo os direitos
que o termo pagava às Sete Casas, importava um benefício, uma concessão
parcial; mas importava também um encargo que nada pode justificar.
No relatório que precede um dos decretos de 11 de
setembro relativos a este assunto, assevera-se que a solução dos impostos
especiais que os novos concelhos continuam a pagar, é justa pelos
benefícios e cômodos que lhes resultam do contato com a capital.
Quais são os fundamentos desta afirmativa? Ocultou-os
o Governo. A câmara procurou rastreá-los. Examinando a série de fatos em que
ela se poderia estribar, não achou senão três que não sejam insignificantes: 1º
a segurança pública mantida numa pequena porção do seu território pela guarda
municipal: 2º desnecessidade de um estabelecimento especial de expostos: 3º a
proximidade do grande mercado de Lisboa para os produtos da indústria agrícola
dos dois concelhos. Fora disto a câmara não atina com as vantagens que possa
trazer aos seus administrados a vizinhança da capital.
Pelo que respeita ao serviço de segurança pública,
feito numa pequena parte do concelho, a câmara de Belém, uma vez que se faça
inteira justiça, pagará cora a melhor vontade pelo seu cofre, a quota que se arbitrar
proporcional ao serviço da guarda municipal de Lisboa neste concelho.
Relativamente aos expostos o concelho de Belém está
igualmente pronto a contribuir para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, do
mesmo modo que contribui a câmara da cidade, guardada a relação das respectivas
populações, além de estar certo que a Junta Geral do Distrito não deixará de
prover nesse caso, conforme as atribuições que lhe confere o § 7 do art. 216º
do código Administrativo.
Reconhecendo essas vantagens, a câmara de Belém dá um
documento de boa-fé, oferecendo-se voluntariamente a retribui-las. A mesma boa-fé
a obriga, porém, a ponderar que o 3º fundamento que pode ocorrer para a
conservação de impostos excepcionais, ou não existe ou é compensado de sobra
por desvantagens reais.
A população dos novos concelhos de Belém e dos Olivais
é uma população principalmente rural, fato que não deveria ter esquecido na
confecção das leis de setembro. Todos sabem que hoje o maior embaraço da
agricultura portuguesa é a escassez de braços. Tendo-se desenvolvido muito em extensão
e pouco em intensidade, o aumento progressivo do seu produto bruto, resultado
da maior área cultivada, não está em harmonia com o desenvolvimento da
população agrícola. Assim, enquanto os produtos da primeira
indústria nacional caminham regularmente para a baixa pela superabundância, o
salário tende de contínuo a elevar-se. No reino em geral a situação do proletário
melhorou e muito, porém o cultivador por essas tendências opostas de alta e
baixa, mas que convergem ambas em seu dano, cada vez se vê em maiores apuros e
dificuldades. Este fenômeno comum agrava-se nas cercanias de Lisboa por
diversas circunstâncias, que justamente procedem da vizinhança de uma populosa
capital. A indústria fabril desenvolvida em Lisboa desproporcionadamente com o
resto do país, excetuando, talvez o Porto, traz uma procura maior de braços,
que é causa poderosa do acréscimo do salário rural nos concelhos limítrofes.
Depois o excesso de produção geral mantendo um excesso de concorrência por toda
a parte, exagera esta no principal mercado do reino, e a depressão dos preços
torna-se correlativa dessa exageração; por isso acontece, não só equipararem-se
às vezes, mas até acharem-se mais baratos os gêneros (cativos de direitos) na
capital do que nos distritos remotos onde foram produzidos. Acrescente-se a
isto a decadência no mercado dos trigos durázios, principal produção do antigo
termo, e a preferência dada aos trigos ribeiros impróprios destes terrenos;
acrescente-se também a contínua destruição dos pomares por uma enfermidade que
não tem sido, que não será provavelmente atalhada, e poder-se-á calcular se os
novos concelhos, debaixo destas condições desfavoráveis, independentes da sua
proximidade ou não proximidade da capital, mas pioradas pelas circunstâncias
que nascem dessa vizinhança, devem ser onerados com impostos extraordinários.
Na situação econômica em que se acha a agricultura, de
produzir caro e vender barato, a tenuidade do lucro sente-se com dobrada força
na vizinhança da capital, e essa vizinhança para as populações agrícolas, longe
de ser um bem é um mal. A máxima concorrência do numerário é em Lisboa, e o numerário
como outra qualquer mercadoria deprime-se pela concorrência; ou por outra, a
vida torna-se mais cara por esse motivo não só na cidade mas também nas suas
imediações. Ao passo porém, que se dá este fato, ocorre outro que com ele se
combina. A população rural vizinha de Lisboa, cuja civilização material é muito
maior que a das províncias, participa mais ou menos dessa civilização, porque a
influência desta é inevitável e irresistível. Daí resulta para ela um maior
número de necessidades a satisfazer com o numerário deprimido no seu valor de
troca. E este fato vem não só influir diretamente no bem-estar do proprietário,
do agricultor, do seareiro, do pequeno comerciante, dos contribuintes, em suma,
mas também associar-se às causas gerais e locais da elevação do salário, e a
recair por outro modo indiretamente sobre eles.
Há mais. Quando a ação fiscal das Sete Casas abrangia
também o termo, os cereais que vinham de fora encontravam aqui um tributo que
rigorosamente constituía um dos chamados direitos protetores para os lavradores
destes contornos. Era o de 60 reis por arroba no gênero, ao passo que os
cereais de lavra própria consumidos no termo não sofriam contribuição alguma de
consumo. Separados os novos concelhos, os cereais estranhos vem concorrer
livremente com os de produção local, que aliás tem de ir lutar com eles no
mercado de Lisboa, onerados com os mesmos 60 reis por arroba que os outros
pagam. Acresce a isto outro inconveniente resultante da proximidade de um
grande mercado. Os cereais do Ribatejo e Alentejo afluindo à capital,
deprimidos como se notou já por uma concorrência excessiva, achando aberto o
mercado contíguo dos novos concelhos, com um favor de quase 50 reis por
alqueire que lhes resulta da supressão do direito fiscal nestes pontos, e sem
diferença de custo no transporte, afluem naturalmente aqui ainda mais do que a
Lisboa, e aumentam pelos efeitos de uma concorrência exagerada, no mercado
interno dos ditos concelhos, os embaraços gerais e particulares em que laboram
os agricultores do nosso território.
A câmara, Senhor, tem de advertir de passagem, para
que os seus desejos não sejam caluniados e as suas ideias mal interpretadas,
que não suspira por direitos alguns protetores, por leis de exceção que
favoreçam a agricultura do concelho de Belém com detrimento da alheia. Pelo
contrário está persuadida de que a liberdade da indústria e do comércio, quanto
mais ampla melhor, há de vir a remediar os males que quase sempre resultam da
transição do antigo sistema de tropeços fiscais, para o sistema contrário que é
o verdadeiramente protetor. A câmara crê ser fiel intérprete da opinião dos
seus representados, asseverando que estes preferem a sua independência
municipal, a essa união absurda com a capital, que tinha por base a injustiça e
a iniquidade; preferem-na a essa rede de vexames que fazia pesar sobre este
território a fiscalização das Sete Casas e que eram uma fonte perene de
imoralidade e de crimes; preferem-na aos tributos desiguais e sem razão
d'existência com que estavam onerados. O intuito da câmara é provar que os que
se decretaram são tão injustos como os que foram suprimidos, porque as
vantagens da vizinhança de Lisboa em que a ditadura se fundou para os
estabelecer, não existem ou são anuladas por desvantagens que resultam da mesma
circunstância.
Há, Senhor, um fado assaz significativo, que se prende
a esta questão, e sobre o qual a câmara de Belém chama a atenção dos ministros
de Vossa Majestade. O termo fiscal das Sete Casas não abrangia só o território
dos concelhos novamente criados: estendia-se por freguesias de outros concelhos
limítrofes. Acabando com o termo, e criando os novos impostos só nos dois municípios,
a ditadura libertou indiretamente de todos os ônus extraordinários aquelas freguesias.
Se isso era justo em relação a elas, como o seria também que ficassem ao mesmo
tempo oneradas as que compõem os concelhos de Belém e dos Olivais? Nenhuns
motivos podem existir para tão flagrante desigualdade.
Mas suponhamos, Senhor, que as considerações em que se
estriba a imposição dos novos tributos, cuja supressão a câmara pede, eram
exatas. Não desaparecem essas razões diante de outro fato da própria ditadura,
de que ela se esqueceu ao promulgar os decretos de 11 de setembro? O Governo
contratou a feitura de um caminho de ferro que partindo da capital vai
atravessar alguns territórios mais férteis do reino. Os efeitos de uma tal via
de comunicação serão o aproximar, tornar contíguos, digamos assim, das portas
da capital, um grande número de ricos concelhos da Estremadura e do Alentejo.
Em relação ao contato comercial entre esta e muitos dos concelhos do Ribatejo;
em relação à facilidade de transportes, e comunicações de toda a ordem, esses
concelhos ficarão mais perto do centro de Lisboa do que Odivelas, Carnide,
Porcalhota, o vale de Oliveiras ou a ribeira de Algés, cujos cultivadores têm
de conduzir os produtos da sua indústria ou de ir buscar os objetos de que
carecem, por estradas ordinárias abertas imperitamente em encostas ladeirentas,
estradas que não é possível mudar ou sequer melhorar, sem dispêndio de
avultados impostos municipais.
Se dos novos concelhos se devem tirar algumas dezenas
de contos de reis porque estão em próximo contato com Lisboa, ou a igualdade
dos cidadãos perante as leis tributarias é uma fábula, ou a esses concelhos coreograficamente
mais remotos, mas atravessados pelo caminho de ferro, se há de exigir uma
maioria de impostos, tanto ou mais pesados que os criados pelos decretos de 11
de setembro, para o termo desanexado e constituído municipalmente.
Mas abstraindo da existência ou não existência do
caminho de ferro, temos um fato atual e não contingente, que mostra com
evidência o nenhum fundamento de um imposto especial nos dois municípios do
antigo termo. É o dos concelhos da margem esquerda do Tejo em frente de Lisboa.
Todos sabem que a facilidade de transporte e comunicação pelas vias aquáticas
apenas é inferior à que proporcionam as estradas férreas, e que em relação à
barateza esse meio de transito é às vezes superior ao destas. Nos seus efeitos
econômicos a distância de algumas freguesias dos novos concelhos ao interior da
cidade, empregando os meios ordinários de transporte, pelos caminhos comuns,
está talvez numa razão quadrupla da distância de Almada (por exemplo) ao centro
da capital. E todavia ninguém se lembra de fazer pagar aos habitantes daqueles
territórios um imposto especial, pela rapidez e facilidade das suas comunicações
com Lisboa.
A câmara, Senhor, não pede esses impostos, porque não
pede absurdos, nem folga com os males e opressões alheias. Reclama simplesmente
para os seus administrados o direito comum, a lei da igualdade garantida na
Carta constitucional.
Demonstrada a insubsistência da razão do relatório que
precede um dos decretos de 11 de setembro, resta outra talvez menos
categoricamente expressa no mesmo relatório, mas que era a mais forte em
relação ao tesouro público. O respectivo ministro pressupunha uma diminuição de
renda pelo fato da desanexação do termo. Obstava-lhe isto à supressão de alguns
direitos de consumo em Lisboa, mas influía também na conservação de parte deles
no antigo termo. Vem prová-lo a discussão que houve na câmara dos Dignos Pares
na sessão de 13 de agosto de 1853, exclusivamente relativa aos impostos
excepcionais conservados nos dois novos concelhos. Nessa sessão o mesmo
ministro declarou que, atento o estado da Fazenda, a mente do Governo não fora
efetuar uma redução no quantitativo dos impostos, mas unicamente aliviar
os vexames. Posto que esta declaração seja altamente inexata, (visto que foi diminuído
o quantitativo na carne e no vinho, e substituída a base do consumo pela da
venda, o que põe a salvo do mesmo imposto, todos os que mandarem vir de fora do
concelho aqueles dois gêneros diretamente para o próprio consumo, e visto que
foram inteiramente abolidos outros impostos das Sete Casas, no termo, como os
do azeite e do combustível) todavia a explicação é terminante quanto às
considerações econômicas que moveram a ditadura a conservar nos novos
concelhos uma parte dos antigos impostos. Além da persuasão de
que era justo pagar mais pela contiguidade de Lisboa, as apreensões do Governo
acerca de um desfalque na renda pública, em frente de um déficit,
obrigaram-no pois, a não estender a esta parte do país o benefício do direito
comum.
Sem discutir se é lícito invocar motivos de tal ordem
quando se trata de um negócio de justiça ou de injustiça, porque se o ato é
justo as considerações de conveniência ou inconveniência são supérfluas, e se é
injusto nunca elas o podem legitimar, a câmara de Belém aceita esse fundamento.
Se, porém, os fatos vierem provar que a desanexação do termo, longe de trazer
um desfalque nas rendas cobradas pelas Sete Casas, deu um resultado contrário,
isto é, um aumento de receita, é evidente que esse mesmo fundamento cai por
terra, e a conservação dos direitos nos novos concelhos fica reduzida à
categoria de uma opressão absolutamente infundada.
E é exatamente, Senhor, o que se verifica. Tomado o
rendimento das Sete Casas e Terreiro (repartições unidas pelas reformas de 11
de setembro de 1852) durante os primeiros seis meses da nova organização,
(setembro, outubro, novembro, dezembro, de 1852, janeiro e fevereiro de 1853)
acha-se que o seu valor foi de 532:098$421 réis: examinando porém os
rendimentos das duas repartições separadas, nos meses correspondentes de 1851 a
52, acha-se que o das Sete Casas foi de 416:054$523 réis e o do Terreiro de
70:894$940 réis, o que perfaz um total de 486:949$463 réis. Assim a
concentração da ação fiscal até à linha da circunvalação, onde essa ação é
possível e eficaz, produziu o efeito que devia produzir, um aumento de receita
em seis meses de 45:148$958 réis. Na verdade, os novos direitos criados sobre
legumes e que subiram nesse período a 5:450$561 réis, reduziriam o excesso a
menos de 40 contos: mas deve-se atender também a que desapareceu do rendimento
das Sete Casas a verba dos direitos de exportação de vinhos, e além disso, por
efeito da nova lei da sisa, o produto desta diminuiu nos seis meses de 1852 a
53, tomados por termo de comparação, de 3:500$000 réis, podendo-se deduzir da
falta de uma verba e da diminuição da outra, que o sobredito acréscimo nos
direitos de consumo, excede muito os 45 contos de réis.
Tais são, Senhor, os fatos e as razões que a câmara
municipal de Belém submete à consideração de Vossa Majestade, acerca dos
impostos extraordinários que ficaram pesando sobre os novos municípios. A
abolição deles é moralmente necessária, e decerto o Governo de Vossa Majestade
não deixará, à vista das considerações expostas, de tomar, perante o
Parlamento, a iniciativa de uma modificação indispensável da lei, cujo espírito
e cuja intenção benéfica não é possível desconhecer.
A câmara, Senhor, diz — intenção benéfica — e di-lo
mui de propósito. Repetindo ainda uma vez que os habitantes deste concelho
tiraram vantagens reais dos decretos de 11 de setembro, ela sente que lhe
cumpra representar dentro em breve a Vossa Majestade, sobre as interpretações
forçadas que se tem dado às disposições claras e terminantes da lei, para se
gravarem os povos, e abusos que se tem praticado e praticam, para conservar em
proveito particular os vexames de que, na sessão de 13 de agosto de 1853, o
ministro da fazenda asseverava (provavelmente por falta de exatas informações)
estarem livres os novos municípios. Nesta parte a câmara recorrerá
oportunamente a Vossa Majestade, para que de pronto se ocorra a males, cujo
remédio depende simplesmente do executivo. Na presente súplica restringe-se a
mostrar os inconvenientes que só podem ser removidos pelo legislativo.
A insubsistência dos motivos que se buscaram para
conservar os novos concelhos numa situação excepcional produziu, como era de
esperar, disposições que na lei contrariavam esses motivos. A consciência de
que realmente os novos concelhos não deviam ser onerados com os encargos
especiais que se lhes impuseram, inspirou a prescrição do artigo 12º do decreto
de 11 de setembro de 1852, expedido pelo Ministério do Reino, no qual se
estatui que o Governo dará anualmente uma prestação às câmaras dos municípios
novamente criados, equivalente à despesa média que anteriormente fazia a câmara
de Lisboa, com a iluminação e calçadas no território desanexado. Se na
realidade os impostos então estabelecidos eram uma compensação das vantagens
obtidas pela proximidade da capital, se o Governo queria além disso obstar com
eles a um aumento de déficit, a câmara de Belém não pode atinar com
a razão porque se lhe havia de fazer um dom puramente gratuito, aumentando para
isso o déficit em detrimento comum da nação. Nem se diga que
essa dádiva é deduzida da prestação concedida ao conselho de Lisboa. Não
importam para este caso nem a origem ou legitimidade daquela prestação, nem a
justiça das deduções que nela se fazem. O que importa é que estabelecendo a
dotação que se destina a esta câmara, a ditadura ou não estava bem firme nos
princípios que invocava, ou desbaratava uma soma que aliás deveria entrar nos
cofres públicos, fazendo donativo dela aos habitantes do antigo termo.
Mas esta disposição não é só contraditória com os
fundamentos das provisões tributarias de um dos decretos de 11 de setembro: é
também inexplicável em si mesma. Ordena-se aí que as somas dadas aos novos
concelhos, sejam calculadas pela média da anterior despesa local, de iluminação
e calçadas. Porque, porém, essas duas únicas verbas hão de ser tomadas para
base do cálculo, e não conjuntamente a assaz avultada da limpeza, a dos
vencimentos, etc.?
Se o Governo entende, contra as suas próprias declarações,
que recebendo destes dois concelhos perto de 60 contos anuais de contribuição
extraordinária, tem o dever de prover às suas despesas municipais, não é por
certo com suprimentos calculados arbitrariamente e muito inferiores aos
encargos locais, que reparará a flagrante injustiça daquela contribuição.
Se todavia tais provisões devem cair diante das
considerações que teoricamente as invalidam, que dirá, Senhor, esta câmara
acerca do artigo 6º do decreto de 11 de setembro expedido pelo Ministério do
Reino, que priva o concelho das propriedades municipais, para as atribuir ao de
Lisboa? Acaso os logradouros comuns dos vizinhos e que só pelos vizinhos podem
materialmente ser utilizados, os mercados, cuja localidade aliás pertence à câmara
escolher, com aprovação da Junta Geral de Distrito, os cemitérios enfim, onde
repousam as cinzas dos pais, irmãos e filhos dos habitantes do concelho, podem
ou devem constituir propriedade alheia? Esta prescrição, van quanto a mercados
e logradouros de que os habitantes de Lisboa não podem utilizar-se, oferece,
quanto aos cemitérios, uma nova espécie de servidão, a servidão que passa além
dos túmulos. As cinzas dos mortos do concelho de Belém pertenceram ao município
da capital, e puderam ser mudadas ou dispersas ou vendidas com o chão que as
cobre, sem que seja lícito à própria municipalidade obstar a tais atos? Fortes
deviam ser os motivos que a ditadura teve presentes para tomar tão estranha
providência; mas esta câmara não os alcança, e por isso mal pode combatê-los.
Demonstrado, como parece ficar, que os decretos de 11
de setembro, justos e benéficos no seu pensamento, pelas provisões especiais
que encerram, anulam na maior parte os bons efeitos desse pensamento, segue-se
a necessidade da sua reforma. Tendo sido os mesmos decretos ato do Governo
constituído em ditadura, e sendo para ele honroso o havê-los publicado, embora
imperfeitos no seu desenvolvimento, esta câmara entendeu que devia antes
dirigir-se a Vossa Majestade do que ao Parlamento, para que o Governo pudesse
usar neste negócio de uma iniciativa que justamente lhe pertence.
Não só essa consideração, mas também o sabido e
provado amor de Vossa Majestade à equidade e a tudo quanto possa arredar dos
povos opressões e vexames, asseguram feliz êxito a uma pretensão tão legítima,
e fundada em tão urgentes razões. Se, porém, os ministros de Vossa Majestade
houvessem de desprezá-la, o que de nenhum modo esta câmara espera, então ela se
veria na necessidade de apelar diretamente para os representantes do país, e
não cessaria nas suas súplicas até obter desagravo e inteira justiça.
A câmara de Belém está tão convencida de que não
existe motivo nenhum razoável para os seus administrados viverem, em relação
aos impostos, fora do direito comum; conhece tanto a impossibilidade de
sobrecarregar com fintas, derramas ou outros quaisquer tributos, um concelho em
cuja parte urbana as aparências externas bastam para indicar decadência, e que
na parte rural luta com as dificuldades que ficam ponderadas; repugna-lhe tão
profundamente anular pelo estabelecimento de novos encargos, o alívio que
resultou para este território da sua separação da capital, que está na firmíssima
resolução de não exigir dos habitantes dele um único ceitil para as despesas do
município, enquanto não forem libertados do tributo extraordinário lançado
pelas leis de setembro sobre dois dos mais importantes objetos de consumo, as
carnes verdes e o vinho, tributo cuja importância neste concelho excede a 30
contos de réis. Seja qual for o resultado dos seus esforços, que serão
incessantes acerca deste negócio, a resolução que tomou de não legitimar com a
sua aquiescência uma situação constitucionalmente impossível, ficará inabalável
porque assenta em convicções indestrutíveis.
A câmara reconhece que o mal não pode ser remediado
senão num certo prazo, pela indispensável intervenção do Parlamento. Existe
além disso um contrato de arrematação dos novos impostos no concelho de Belém,
que só termina em junho do corrente ano, e um dos primeiros deveres do Governo
é manter ilesa a fé pública. O tempo que resta ainda para os habitantes deste
município sofrerem a arrematação dos direitos de venda sobre o vinho e carnes
verdes, é suficiente para o Governo fazer votar nas duas casas do Parlamento,
as reformas indispensáveis dos decretos ditatoriais de 11 de setembro. No
decurso deste período a câmara procurará conciliar os deveres que lhe impõe a
voz da consciência com a escrupulosa obediência às leis vigentes, porque sabe
que a primeira condição da liberdade é a observância da lei. Na órbita da sua
ação não tolerará abusos da parte dos arrematantes daqueles tributos
excepcionais, mas não tolerará também que lhes sejam defraudados pelos
habitantes do concelho do que legitimamente lhes pertencer.
Aplicando ao cofre municipal de Belém uma quota
deduzida da dotação do de Lisboa, calculada sobre uma base desarrazoada, mas
precisa, as leis de setembro atribuíram ao Governo e à câmara da capital a
avaliação dessa quota, excluindo virtualmente a câmara de Belém do direito de
verificar, à vista dos documentos da mesma avaliação, a exação dela. É mais uma
violência transitória a que este concelho tem de submeter-se. A câmara aceitará
essa soma (qualquer que venha a ser) fixada pelo arbítrio do Governo e da câmara
de Lisboa interessada em que seja a mais modica possível. Com ela, com o
produto das licenças e com outra qualquer pequena fonte de rendimento que possa
existir, ocorrerá às despesas de administração, de limpeza, de calçadas e de
iluminação, até onde esses rendimentos chegarem, certa de que os seus
representados preferirão a falta temporária de uma parte dos cômodos e
vantagens que deve subministrar-lhe a administração municipal, a que esta câmara
pratique o mínimo ato, do qual se possa deduzir que o concelho presta a sanção
do seu assentimento a provisões tributarias que são moralmente impossíveis.
Se porventura, Senhor, o Governo de Vossa Majestade
entendesse dever cerrar os ouvidos às representações desta câmara, o que nem
remotamente os abaixo assinados suspeitam, também ela poderia elevar
respeitosamente à presença de Vossa Majestade, uma súplica para que ordenasse
ao seu Governo que, usando das atribuições que lhe confere o artigo 106º do
Código Administrativo, a dissolvesse, sendo certo que os habitantes do concelho
de Belém facilmente achariam outros cidadãos que melhor soubessem promover os
seus interesses municipais do que os atuais vereadores.
Deus Guarde a Vossa Majestade por muitos e dilatados
anos como todos havemos mister, — Câmara 11 de fevereiro de 1854— O presidente,
Alexandre Herculano —João Ferreira Godinho —João José Teixeira —José Street de
Arriaga e Cunha — Visconde da Junqueira.
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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1854, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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