7/09/2019

Recenseamento (Crônica), de Olavo Bilac


Recenseamento

Enfim, vai o Rio de Janeiro conhecer-se a si mesmo… Uma cidade sem recenseamento é uma cidade que a si mesma se ignora, porque não tem a consciência da sua força, do seu valor, da sua importância.

É mais que um serviço — e não é dos menores — que o Rio vai dever ao seu prefeito, a esse homem providencial, de quem já se pode impunemente dizer o maior bem, sem o risco de passar por adulador, pois que já não há, em toda a cidade, quem o não admire e o não louve.

Infelizmente, já se descobriu o meio de opor embaraços à realização da bela ideia. No mesmo dia em que o prefeito decretava a organização do recenseamento da população, era publicado um ofício do ministro da Guerra, solicitando a organização do alistamento militar… E o povo, cotejando essas duas medidas, juntando-as, pesando-as na mesma balança, começou logo a atribuir-lhes uma aliança oculta um conúbio escondido, uma identidade de intuitos e de fins. A gente culta (que infelizmente não é legião) sabe — que esses dois serviços nada têm de comum, e que o propósito da prefeitura é, única e exclusivamente, o de saber quando habitantes tem a capital da República — coisa que, por vergonha de todos nós, ainda não se havia tentado averiguar. Mas, para a gente ignorante e desconfiada (a desconfiança e a ignorância são irmãs gêmeas), o recenseamento é o pretexto para o alistamento militar — e já o medo da farda e do serviço de caserna começa a sugerir às almas inquietas a ideia de se recusar a encher as listas censitárias.

Esse terror é natural. Antigamente, o recenseamento apenas era feito para auxiliar dois serviços profundamente antipáticos aos povos de todos os tempos: o do recrutamento militar e o da cobrança de impostos. O imposto e a farda — dois espectros, dois espantalhos! Já na velha Roma, no remotíssimo tempo de Servius Tulius, quando os curatores tribuum saíam, com as suas tabuinhas enceradas e os seus estiletes de marfim, a percorrer a urbe, e a recensear os habitantes, separando-os em assidui e proletarii — um medo pânico se alastrava pelas vielas e pelas alfurjas da cidade, e um terço da população, sabendo que aquilo significava guerra ou imposto, cobrança de sangue ou cobrança de dinheiro, transpunha as portas, e ia refugiar-se no campo.

Hoje, o recenseamento tem um fim mais amplo, mais nobre, mais belo — um fim social. E uma parte essencial da estatística, que, sendo "o estudo numérico dos fatos sociais", é uma das ciências tributárias e auxiliares da sociologia. Como explicam os mestres da economia política, a vida social é um movimento perpétuo, uma transformação contínua, e uma constante renovação de fenômenos, que, por ma is diversos que pareçam, sempre se podem classificar em um número relativamente limitado de categorias. Não há um só fato individual que deixe de ser interessante, porque os fatos individuais, reunidos, formam os fatos sociais; e não há meio de governar sem o conhecimento desses fatos. É a estatística que torna possível o governo. Ela é, por assim dizer, a "escrituração social": se uma casa de comércio não pode viver e prosperar sem o registro minucioso das suas compras e vendas, e sem os balanços periódicos que demonstram o bom ou mau estado dos seus negócios — também a sociedade humana não pode dispensar os seus guarda-livros, que são os encarregados da estatística…

Essa "escrituração social" tem sido até hoje criminosa mente relaxada no Brasil. Os "guarda-livros" do país, ou são incompetentes, ou são indiferentes. Aqui a estatística é um mito. Para não ir muito longe, e apenas citar um fato simples e de fácil verificação, basta lembrar que, no Rio ele Janeiro, a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional não têm catálogos! É incrível, mas é verdade… Se nem temos sido capazes de organizar e publicar o catálogo de um museu ou de uma biblioteca, não é de espantar que não tenhamos organizado e publicado até hoje o catálogo geral da nossa população, das nossas riquezas, do nosso trabalho, da nossa vida…

Há pouco tempo,; a Legação Japonesa no Brasil distribuiu, pelas repartições públicas e pelas redações dos jornais, o Anuário financeiro e econômico do Japão relativo a 190$. Lendo esse livro, que é um monumento assombroso e maravilhoso de estatística, é que se pode compreender o estupendo progresso daquela nação.

O que nós costumamos chamar "milagres" não é mais do que o resultado simples e natural da combinação destas duas forças: o trabalho e o método… Nesse anuário, tudo quanto constitui a vida do país está incluído, estudado, discriminado, catalogado, classificado: orçamentos, dívida pública, empréstimos, agricultura, indústria, viação, comércio. Há ali coisas que espantam; há, por exemplo, um quadro demonstrativo da produção do fumo, que é um assombro de exatidão e de minúcia: o fumo colhido foi contado de folha em folha… E com esse trabalho e com esse método que as casas de comércio prosperam, que as casas de família têm fartura e conforto, e que as nações enriquecem e se fazem fortes e respeitadas!

Agora reparo que a "Crônica" está perdendo o tom que lhe compete, e enveredando por um estilo que não é o seu.

Estas coisas são tão corriqueiras, que até as crianças das escolas primárias as conhecem…

E parece, realmente, que é pedantaria ridícula, e ridícula ostentação de ciência barata, o estar aqui o cronista a demonstrar as vantagens e a utilidade da estatística em geral, e do recenseamento em particular…

Mas estas ideias, tão simples, tão claras, tão vulgares, não podem, desgraçadamente, ser eficazmente incutidas no ânimo de toda a nossa população. Por quê? porque uma grande parte da nossa população não sabe ler…

Basta lembrar a última bernarda que tivemos no Rio: a de novembro de 1904… Que foi o que causou esses sanguinolentos motins? Foi a intriga perversa de alguns especuladores políticos que excitaram o povo contra a lei da vacinação: e muita gente acreditava que os médicos iam injetar no seu corpo sangue de rato atacado de peste bubônica! Essa balela, que apenas parecia cômica, teve efeitos trágicos. Que utilidade poderiam ter, para destruí-la, os boletins profusamente espalhados pelas autoridades sanitárias, e as explicações dadas pela imprensa? Nenhuma. O papel benéfico da imprensa não pôde deixar de ser quase nulo, numa cidade que conta quase 1 milhão de habitantes, mas na qual todos os jornais diários reunidos não chegam a vender 100 mil exemplares por dia…       

Assim, não há meio de contrariar eficazmente o equívoco, que a publicação simultânea das duas medidas veio criar. Se o Ministério da Guerra houvesse adiado a publicação do seu propósito — o povo, que confia no prefeito, porque dele só tem recebido benefícios e cuidados, veria no recenseamento mais uma prova da sua paterna! administração, e auxiliá-lo-ia. Mas parece que há, neste país, uma doença orgânica, que leva muita gente, irresistivelmente, a perturbar e estragar, com consciente ou inconsciente maldade, tudo quanto se pretende fizer de bom.

Vão agora tirar da cabeça de certa gente que a entrega das listas censitárias há de expô-la ao recrutamento militar!

O que é verdade é que, para, abusivamente, e contrariando expressamente a letra da lei, por em prática o recrutamento forçado, as autoridades militares não carecem do recenseamento. Ainda há pouco, para organizara parada espetaculosa de uma guarda nacional que não existe, alguns coronéis de mentira andaram complicando a vida doméstica dos cidadãos, privando-os violentamente dos serviços dos seus cozinheiros e dos seus copeiros…

O povo, porém, não compreende isso. Se lhe não demonstrarem cabalmente que o recenseamento civil, organizado pela prefeitura, nada tem de comum com o alistamento militar, organizado pelo Ministério da Guerra, ele, apavorado pelo fantasma da Farda, há de mais uma vez furtar-se ao cumprimento de um dever social, que tão facilmente e com tão grande utilidade para todos pode ser cumprido. Como, porém, fizer essa demonstração àqueles que, por culpa e desídia do Estado, continuam aviltados pelo analfabetismo, moralmente cegos, tristemente mantidos na ignorância, privados da compreensão dos seus direitos e dos seus deveres?

É aqui que tudo vem ter: o problema da instrução é como, nas máquinas, o eixo central, em torno do qual os movimentos de todas as peças se combinam e conjugam. Por isso, é que não deixo de tocar este realejo, cuja música pode parecer enfadonha, mas é indispensável:

e si cette histoire vous embête,
nous allons la recommencer!
("se esta história vos aborrece
nós vamos recomeçá-la")
O.B.

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Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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