Quem
tem padrinho...
Servira
de madrinha, focando com a coroa de Nossa Senhora, o tio Manoel, havia quinze
dias chegado do Brasil, para onde abalara havia quinze anos.
Recebeu
o nome batismal de Maria, a que a avó acrescentou — da Conceição, pondo assim a
neta sob a guarda da Mãe de Deus, soberana dos anjos, refúgio dos pecadores — refugiam
peccatorum.
A
pequena era linda como os amores, e além de linda era simpática, o que não
acontece com todas as crianças lindas. Há formas de beleza humana que suscitam
a nossa admiração sem provocarem a nossa simpatia, sendo frequente ouvir dizer
a respeito duma criança ainda pequena, de uma rapariga já grande, ou de uma
mulher ainda nova — é bonita, mas embirrenta.
Pois
a Maria da Conceição era simpática e era bonita, reunindo estas duas qualidades
em grau excepcionalmente elevado.
Tomou
a avó encargo da sua educação, para alivio dos pais, já com um bom peso em cima
dos ombros, dois rapazes e três raparigas, nenhum dos rapazes hábil para
ganhar, e nenhuma das raparigas capaz de aprender, duas gêmeas, contando
escassos cinco anos.
A
avó da Maria da Conceição era pessoa muito devota, rigorosamente educada nos princípios
da religião católica, apostólica e romana. Não era beata, não era sequer
igrejeira, chamando assim às pessoas que trocam a casa pelo templo, algumas
preferindo ao templo a sacristia. Ouvia missa todos os domingos, confessava-se
todos os anos, e só por grave incomodo de saúde não jejuava em dias de
preceito. Não dava esmola a todos os pobrezinhos que batiam à sua porta, porque
não lho permitiam as suas posses; mas fazia todo o bem que podia, sem alarde
nem ostentação, nos precisos termos do Evangelho — a sua mão esquerda ignorava
os benefícios que fazia a sua mão direita.
Quando
já era crescidita a neta, levava-a consigo à missa, e encantava-a a compostura
da pequena, atenta a tudo quanto o padre fazia no altar, ajoelhando quando a
avó ajoelhava, as mãozinhas postas, como se rezasse, muito desejosa de ser
grande para ter um livro de missa, bonito como o da vovó, encadernado em
percalina, com fechos de metal.
Aos
cinco anos já sabia muitas orações — o Padre Nosso, a Ave Maria, a Salve
Rainha, o Credo e os Artigos da Fé, a Magnificat e as Obras de Misericórdia.
Não sabia os Mandamentos, porque a avó, tendo alguma dificuldade em
explicar-lhe o sexto e o nono, assentara em só lhos ensinar, e também a
Confissão, quando chegasse à idade de comungar.
Nunca
a pequena, por expressa recomendação da avó, passava em frente do oratório que
havia no quarto de cama, o quarto em que dormiam as duas, em leitos separados,
que não se curvasse em reverência, persignando-se sumariamente, com uma só
cruz, a do peito.
Sem
assumir atitudes de mestra, a avó ia ensinando à neta muitas passagens da história
sagrada, esforçando-se por lhe imprimir no cérebro em formação, brando como a cera
mole, algumas das verdades absolutas da religião católica, e também alguns dos
fatos mais notáveis da história da Igreja.
No
pequenino oratório, de colunas torcidas, semelhante a um baldaquim, estava a sagrada
família, a Virgem no meio, São José à direita e o menino Jesus à esquerda,
rosado como um bambino da renascença italiana.
Toda
a indumentária da Senhora, de uma austera simplicidade, fora D. Sulpícia que a
fizera por suas mãos, no enlevo quase místico de um crente, ajoelhado no altar,
deserto o templo, os olhos pregados no sacrário onde se guardam as partículas
que consubstanciam o Cristo, como homem e como divindade. Dir-se-ia talhado na
pureza celestial dos lírios o seu vestido de seda, caindo em grande roda sobre
os seus sapatinhos brancos, com fivelas de prata, e era preciso tocar no seu
aventalinho, preso à cintura por um cordão, que se não via, coberto pelo manto,
luzente como se fora talhado em neve alpina, era preciso tocar o avental para
se reconhecer que nem era feito do sol mais fulgido nem do ouro mais puro.
Muitas
vezes a neta pedia à avó que a deixasse pegar no menino, e então cobria-o de
beijos, cumulava o de carícias; conversava com ele, como se fora uma criança da
sua idade, fazendo-lhe perguntas e dando ela mesma as respostas, convencida de
que era Jesus que lhe respondia. Sorria a Virgem àquele idílio infantil, e à Maria
da Conceição, duma notável precocidade, não passava despercebida a dupla
significação daquele sorriso — orgulho de mãe e satisfação de madrinha.
Nunca
as flores murchavam no pequenino oratório, renovadas com frequência, e não
havia para a pequena ocupação mais do seu agrado, que entretecer capelas ou
grinaldas para a sua adorada madrinha.
S.
José merecia-lhe respeito, mas não lhe inspirava simpatia. Tinha o ar severo
das pessoas concentradas, quase fixo o olhar, como pessoa que medita e
raciocina. Marido da Virgem, pai de Jesus, isso devia bastar a encher-lhe a
alma de jubilo e felicidade, iluminando se-lhe o rosto como aos bem-aventurados
fruindo as delícias do Paraíso.
—
Ó avozinha, por que é que o meu padrinho tem um escopro na mão direita e uma
serra na mão esquerda?
—
É porque São José era carpinteiro.
—
E lá no céu, ele trabalha pelo ofício?
D.
Sulpícia achou graça à inocente pergunta da neta e pôs-se a explicar-lhe o que
é o céu, esforçando-se por despertar naquela alminha tenra, a desabrochar na
vida, o sentimento de uma existência sem limitação, ao cabo da jornada mais ou
menos longa por este mundo de Cristo.
—
No céu, minha filha, ninguém trabalha...
—
Que bem, avozinha!
—
Ninguém trabalha, porque o trabalho ali não é preciso. Se não fosse a desobediência
dos nossos primeiros pais, como já te expliquei, também na Terra não seria
preciso trabalhar, porque tudo nasceria espontaneamente e em abundância, e cada
qual gozaria de tudo à sua vontade, porque ninguém seria dono de coisa nenhuma.
—
Deve ser muito bonito o céu, avozinha. E lá também há colégios de meninas?
—
Não, minha tontinha. No céu tudo se sabe e nada se aprende; não há mestres nem discípulos.
—
Gostava tanto de lá ir!
Lá
irás um dia, e praza a Deus que seja muito depois de mim.
—
Com a avo é que eu gostava de ir.
—
Tontinha! Eu já pouco viverei, porque além de ter muita idade, tenho pouca saúde.
Pede à tua madrinha que me conserve neste mundo até que sejas mulher, porque
até lá precisarás de mim. Depois, vendo-te amparada, que Nosso Senhor me chame
à sua divina presença, e se amerceie da minha alma pecadora.
—
E a avó não tem pena de ir para o céu sem mim?
—
Ficas sob a proteção de tua madrinha, imperatriz do céu e da terra, virgem
concebida sem mácula, mãe de Jesus Cristo.
—
E a gente não pode ir para o céu sem morrer?
—
Pois não pode. Quando a gente, morre, uma vida acaba, e principia outra vida.
—
E todos os que morrem vão para o céu, avozinha?
—
Não, minha filha. Para o céu vão só os justos, os que praticaram boas obras, os
que cumpriram os preceitos da Santa Madre Igreja, tementes a Deus, nunca
jurando o seu santo nome em vão.
—
E os outros?
—
Os outros vão para o Inferno.
—
E o que fazem lá?
—
Sofrem os maiores tormentos, alguns metidos em água a ferver, ou envolvidos em
labaredas que jamais se apagarão, e que, torturando-os, os não consomem, porque
têm que sofrer pela eternidade sem fim.
—
Coitadinhos!
—
Sim, coitadinhos; mas por eles e por nós todos sofreu Nosso Senhor Jesus Cristo,
pregado numa cruz, entre dois ladrões, maltratado e escarnecido como se fosse
um criminoso da pior espécie, e um impostor da mais impertinente arrogância.
Lembra-te, minha filha, que desde o Horto até à casa de Anás, uma pequena distância,
só pontapés apanhou o Senhor para cima de cento e quarenta, e mais de cem
bofetadas. Deram lhe para cima de cinco mil açoites, setenta e duas vezes
cuspiram no seu divino rosto, vinte e sete vezes o arrastaram pelos cabelos.
Foram setenta e duas as marteladas com que o pregaram na cruz, banhando-lhe a
divina face o sangue que lhe escorria de mil feridas que a coroa de espinhos
lhe abrira na cabeça.
—
E não havia ninguém que lhe acudisse?
—
Ninguém, minha filha. Para fazer ideia do que foi martírio de Nosso Senhor
Jesus Cristo, bastará dizer-te que ao retirarem-no da cruz, já morto, o seu
divino corpo tinha seis mil quatrocentas e setenta e cinco feridas, pelas quais
perdera duzentas e trinta mil gotas de sangue, tendo chorado seiscentas e
dezoito mil lágrimas — tudo para nos redimir e salvar.
—
Credo, avozinha! Isso são coisas que se dizem...
—
São coisas que tu lerás em vários livros, entre eles este, que se chama — Relicário
Angélico de Jesus Cristo e de Maria Santíssima, impresso com licença da Mesa
do Desembargo do Paço.
Os
pais de Maria da Conceição, liquidando o nada que tinham, abalaram para o Brasil,
fugidos à miséria do seu lar, tranquilos a respeito da filha, que ficava bem,
entregue aos cuidados da avó.
D. Sulpícia não era
rica, mas o que tinha chegava-lhe bem para a vida modesta que fazia, e ainda
lhe sobejava alguma coisa, que destinava ao dote da neta, se ela viesse a casar
em seus dias. Educou-a para ser uma boa dona de casa pobre, muito jeitosa para
tudo, religiosa sem fanatismo, como a avó, muito apurada no vestuário, sem
impostura.
Apanhada
pela pneumônica, D. Sulpícia, ao cabo de cinco dias de doença, confortada com
os Sacramentos, deu a alma ao criador,
Abriu-se
o testamento, e viu-se que à neta deixava quanto, por lei, podia deixar-lhe,
tendo-lhe entregado, dois dias antes de morrer, todo o dinheirito que tinha.
Assim
que aliviou o luto, a Maria da Conceição passou a viver mais na rua que em
casa, sempre muito devota, nunca faltando à missa dos domingos, jejuando nos
dias de preceito; em cada dia, e nas horas, per assim dizer, canônicas, rezando
as devoções recomendadas. Continuava, como no tempo da avozinha, a não haver
flores murchas no altar, e as capelas da sua madrinha, como noutro tempo, era
ela que as entretecia, escolhendo as mais lindas e viçosas.
Mas...
Um
dia o Inimigo pôs no seu caminho, formoso como um Adônis, esbelto como um Apolo,
robusto como um Hércules, um moço que lhe fez a corte, e lhe ofereceu a mão de
esposo, hipnotizando-a como um feiticeiro, um mágico de contos indianos.
Entregou-se-lhe
sem reserva, e quando lhe exigiu o cumprimento das suas promessas, que era
apenas o pagamento de uma dívida de honra, o belo Adônis desapareceu, indo
talvez como na mitologia, para ¡unto de Proserpina, nas profundas do Inferno.
O
primeiro passo é que custa, e a neta de D. Sulpícia, afilhada de Nossa Senhora,
converteu-se numa espécie de Madalena antes do arrependimento, menos feliz que
a pecadora da Magdalum junto ao lago de Genesaré, porque não encontrou um Redentor
a quem ungisse e perfumasse, enxugando-lhe os pés com a toalha dos seus
cabelos.
A
sua desenvoltura levou a desordem e a desgraça a muitos lares, parecendo ter
uma predileção doentia pelos homens casados, como se fosse preciso que alguém
sofresse para que ela gozasse.
Um
dia, a viajar em automóvel, o carro estampou-se numa parede, e ela recolheu a
sua casa, quase feita em bocados, declarando o médico que primeiro a viu que só
por milagre viveria uma semana.
Exigiu
que lhe metessem na cama, deitada do lado do coração, a sua madrinha, que
cobriu de beijos e lavou de lágrimas, e tendo recebido os últimos sacramentos,
em confissão perfeita, sem um gemido, sem um estremeção, sem um queixume,
serena como um justo, resinada como um mártir, pôs-se a caminho da viagem de
que se não torna.
Bateu
à porta do céu, e foi São Pedro, o divino porteiro que lhe apareceu, com um
barretinho de lã na cabeça, e um molho de chaves na mão.
—
O que deseja?
—
Desejo entrar, Sr. São Pedro, e grande esmola me faria se mandasse dizer à minha
avó, a D. Sulpícia — há de conhecer?... — que está aqui a neta, para ela me vir
buscar.
—
Pois não!... Tudo quanto quiser — é só pedir por boca. As belas obras que fez
na Terra garantem lhe um lugar no céu.
—
Fui uma grande pecadora, Sr. São Pedro; mas Nossa Senhora, minha madrinha de batismo,
sabe que fui sempre fervorosa no seu culto, e que nas horas mais libertinas da
minha vida, a tive sempre no coração, aí guardada como num relicário.
—
Sim, senhora; honrava bem a sua madrinha. O desregramento da sua vida deve tê-la
enchido de amargura, porque ele significava a mais lamentável falta de
respeito, o mais criminoso desprezo pelas suas virtudes e benemerências. Tarde
se lembrou da sua madrinha, depois de gravemente a ter ofendido.
—
Mas nunca a reneguei, Sr. São Pedro.
—
Isso é piada? — retrucou o divino porteiro, recordando a cena da prisão do
Mestre, naquela noite trágica do Monte das Oliveiras.
Fechou
a porta, deixando-a de fora, e foi atender um freguês que chegava, em trajos de
jesuíta.
Maria
da Conceição, vendo-se tratada assim, julgou-se irremediavelmente perdida. Pôs-se
a gritar, num choro convulsivo, pela avó e pela madrinha, na vaga esperança de
que lhe acudissem, amerceando-se da sua triste sorte, uma pelo seu infinito
amor, a outra pela sua misericórdia infinita.
Era
como se clamasse no deserto — nem os ecos lhe respondiam.
Subitamente,
erguendo os olhos ao alto, vê Nossa Senhora debruçada n uma janela, envolta numa
aureola de luz mais pura que a do sol, o rosto angélico velado de uma suave
tristeza, que era ao mesmo tempo simpatia e piedade.
Redobraram
os seus gritos lamentosos, as suas implorações cruciantes, a dolorosa confissão
das suas faltas, a sincera e dolorida afirmação do seu arrependimento.
Condoeu-se
a Virgem de tanta miséria confessada, honestamente confessada, e arrancando ao
arco-íris uma fita tricolor, atirou a, segurando-a por uma das pontas, à pobre
Maria da Conceição, que a ela se agarrou, e por ela subiu, como se fora uma escada
de seda.
Estava
salva!
No
dia seguinte, à hora em que São Pedro faz a entrega dos Justos que se lhe
apresentaram de véspera, e ele achou em condições de serem admitidos no céu,
Jesus, como um oficial da guarda, apareceu à frente de um piquete de arcanjos,
para a definitiva admissão.
Vendo
a Conceição, timidamente encolhida a um canto, afastada do grupo como uma
pessoa estranha, perguntou a São Pedro:
—
Como é que está aqui aquela rapariga?
São
Pedro que se apercebera da manobra da escada, olhando de soslaio a Virgem, que
se achava presente, respondeu:
—
Olhe, faça favor de perguntar à Senhora Sua Mãe, que ela é que sabe.
Sem
desfazer o que estava feito, filho amantíssimo e obediente, Jesus Cristo
recomendou a São Pedro que fosse rigoroso no desempenho das suas funções, que
não se reduziam a abrir e fechar a porta, cumprindo-lhe exercer vigilância
sobre a parte de Jerusalém Celestial que fica nas imediações do portão.
Nisto
aparece o jesuíta da véspera, que São Pedro mandara para o Inferno, e que Santo
Inácio, com a cumplicidade dum Anjo, em serviço de sentinela, fizera entrar
para a celestial mansão.
Não
se conteve Jesus, que não dissesse ao divino porteiro, mal disfarçando a sua
justa cólera:
—
Não, amigo São Pedro; isto assim não vai bem...
—
Pois não vai, Divino Mestre. O melhor é
escolherem outro para o meu lugar, que eu não posso mais...
Atirando
para cima da sua velha mesa de despacho o molho de chaves que tinha na mão,
resmungando para que o não ouvissem, desabafou:
—
Assim nem o diabo pode ser porteiro no céu.
E
ali mesmo fez um requerimento, pedindo contagem do tempo para a reforma.
---
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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