Quem
escuta...
Se
alguém lhe tivesse dito, noutro tempo, que ele ainda havia ser bafo, não
se teria zangado, antes o próprio excesso da injúria atenuar-lhe-ia a gravidade
a ponto de o fazer encolher os ombros com desdém, ou desatar a rir como um
perdido.
O
bufo, na sua opinião, é um polícia degradado, com um enorme coeficiente
de baixeza, a expressão última do rebaixamento moral ao serviço dos poderes constituídos.
Pois
ali estava armado em bufo, sem o clássico chapéu mole e a bengala
grossa, como os bufos vulgares de Lineu, mas um bufo da melhor sociedade,
vestindo como um gentleman, afetando quase os ares de um adido de embaixada
passado à disponibilidade.
A
gente sabe lá para que vem ao mundo.
Tinham-lhe
corrido mal os negócios, e como perdesse o lugar numa Companhia em que estava
empregado, vira-se quase de um dia para o outro sem recursos, a não ser o magro
recurso de ir empenhar no Montepio alguns objetos de valor, que tinha em casa.
A
mulher, filha de gente pobre, mas educada até ao casamento em casa de gente
rica, tinha hábitos de viver bem, e ele não queria sujeitá-la a privações de
qualquer espécie. Muitas vezes se lamentava de a não terem ensinado a
trabalhar, que mais não fosse tratar dos arranjos da casa, remendar o fato do
marido e confeccionar alguns artigos da sua toilette, os de menor importância.
Era precisamente quando ela fazia tão justificadas lamentações que o marido
sofria mais da sua pobreza a raiar pela indigência, sem reservas que lhe
valessem até conseguir emprego ou ocupação de que tirasse os meios de subsistência.
E então recorria ao prego, empenhando os objetos de valor que tinha em casa,
fingindo a mulher que não dava pela sua falta. Um dia, tendo-lhe pedido
dinheiro para uma sobrinha, cem escudos, ele declarou-lhe que não dispunha de
tão avultada quantia, e lembrou-lhe que na loja do Grandela vira pela manhã,
numa das montras, sombrinhas muito bonitas e muito mais baratas.
—
Se hei de vestir como as sopeiras, então o melhor é concertar-me ou trabalhar a
dias.
O
melhor seria cingir-se às despesas absolutamente necessárias, aos gastos
inevitáveis, aguardando resignadamente tempos menos difíceis. Não lho quis
dizer, mas sentiu que não haveria mais paz no seu lar se continuasse desempregado,
sem dinheiro para as despesas mínimas da sua casa, já quase sem o cômodo
recurso do prego, porque lá tinha ido pendurar, em repetidos momentos de
angústia, os objetos de valor que possuía, alguns de muito apreço artístico. E
passava um dia atrás doutro dia, uma semana atrás doutra semana sem que luzisse
uma esperança na tenebrosa escuridão da sua vida. A mulher deixara de ter exigências,
mais conformada com a sua triste sorte, menos irritante e menos irritável,
multiplicando os seus magros recursos por forma a ele acreditar no milagre do
pão e dos peixes. Mas ele bem via que se aproximava a hora tenebrosa, a hora fatídica
em que um dedo invisível, molhado em tinta, escreveria em todas as paredes da
sua casa desguarnecida — Nada! Nada! Nada! — como no festim bíblico.
Foi
quando um amigo o procurou, conhecedor da sua situação difícil, a convidá-lo
para aquela torpeza, que era em todo o caso uma boia da salvação no oceano
revolto da sua miséria negra.
Aceitou,
está bem de ver.
Tinha
certos quinze tostões por dia, mas arranjava outro tanto com emolumentos. Despesa
com carros, para seguir um fulano, despesa nos cafés, para surpreender
conversas, tudo isto lhe era abonado de fora parte, e com isso arredondava a
sua diária por forma a viver à larga, como nos tempos das vacas gordas.
Ninguém
desconfiava dele, vendo-o trajado com um rigor de gentleman, sem o chapéu
mole e a bengala grossa dos bufos vulgares da Parreirinha. De modo que
se aproximava de toda a gente sem acordar suspeitas, e quem o via à mesa de um
café, rilhando o seu charuto e lendo o seu jornal, nem por sombras desconfiava
de estar ali um bufo. Assim ele era o mais bem informado de todos os
seus colegas, e em tão alto conceito o tinha o bufo supremo, que mais de
uma vez pensou em o chamar para junto de si, tornando-o seu auxiliar e
confidente.
Ora
sucedeu que uma noite, estando sentado a uma mesa do café, rilhando o seu
charuto e lendo o seu jornal, dois gomosos foram sentar-se à mesma mesa, não
encontrando outra mais livre, e prosseguiram! sem fazer caso dele — um
gentleman! — a conversa em que vinham da rua.
—...
É de primeiríssima ordem. Tem recatos pudibundos de Vestal, e ao mesmo tempo
tem a effronterie canalha de uma Vênus de prostíbulo.
—
Bonita?
—
De uma beleza que fala à alma e aos sentidos, que é, por assim dizer, feita de luxúria
a de castidade. No seio esquerdo, junto à aureola mamilar, tem uma nodoazinha
preta, como fosse a pelica de um i, e
na coxa
do lado direito, em tatuagem natural, uma espécie de malmequer, de um vermelho
esmaecido, pondo uma nódoa simpática na alvura da sua pele macia.
—
Solteira.
—
Não, casada; mas vivendo numa grande liberdade. O marido é bufo, de modo
que passa os dias e as noites por fora de casa, a espionar — quem sabe? — os
amantes da mulher.
E
mora?...
—
Mora na rua de... nº tantos, segundo andar, lado esquerdo. Se quiseres...
Muito
pálido, com bagas de suor na testa, o bufo ergueu-se a muito custo, como
se estivesse pregado à cadeira, e saiu a cambalear como se estivesse embriagado.
Levava nos ouvidos, como se fosse chumbo derretido, aquela revelação cruel, e
se muito lhe custara afazer-se à condição de bufo, sentia que muito mais
ia custar-lhe agora afazer-se à condição de veado.
---
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...