Primavera
O Gabiru sentiu-se
aquecido, como a terra quando vem a primavera. Ia criar! ia criar!... Aquele
chão que só o arado do sonho lavrara, ei-lo atravessado por este veio turvo,
que tudo remexe e transforma – a vida.
Consumira-o o sonho,
tornando-o cambado e gasto, esguio e de olhos perdidos de cisma... Acordara
enfim para a realidade e ele, que tinha passado a vida a revolver um brasido de
ideias, longe da terra e do seu lodo, amou a Mouca, rasa como o chão. Todos se
riam dela, magra e pálida, de pacho num olho, com um ar de máscara que vai
gritar de aflição.
O seu ideal prendera-lhe os
olhos tal qual no-los prende o lume, de forma que, ao erguê-los, dera de cara
com a vida e perguntara: Que é isto? o mundo, a tempestade, tudo o que do
cubículo vejo, arfando ao sol, penetrado de ruídos e de sombras? Para lá, para
além, árvores acenando-me com os braços, vozes de águas fartando as terras
embebidas? Isto?... Tudo é luz, é um chama? E como tudo é belo!
Ver ao pé árvores e montes,
a esse esguio filósofo habituado a conviver com velhos cartapácios, parecia-lhe
tão irrealizável como subir às estrelas. Nos alfarrábios fala-se de tudo menos
da vida. Por isso, acordando espantado, interrogava as
ondas luminosas, os rios correndo, o extraordinário mar: "Vós que me
quereis?" E no alto da mansarda sorria, pencudo e triste, esguio como um
enterro.
– Por que a amas tu,
filósofo?
– Sei lá! Amo-a. Dá-me
vontade de chorar ao vê-la. Amo os seus olhos tristes, o seu feitio de cão
espancado. Amo-a, porque qualquer outra me desprezaria, envelhecido a sonhar.
Ela é parecida comigo, talvez tenha pena de mim.
Todos somos construtores.
De terra e de emoção andamos pelo mundo a amassar estátuas; de realidade e de
sonho arquitetamos as figuras que se misturam na nossa vida. Elas existem mais
pelo que lhes damos de nós mesmos do que pelo que na realidade são. De saudade,
de sonho, de lodo e piedade, construíra uma figurinha ofendida e triste,
andando no mundo aos tombos, sem pão e sem abrigo. A ele que passara a vida
inteira a atear um brasido, cabia-lhe em sorte a Mouca, escárnio de ladrões e
de soldados.
A casa das mulheres de dia
é fúnebre, mas de noite, luz do petróleo
que esvoaça e deixa tudo numa meia tinta de aflição – candeeiros partidos,
luzes fumarentas – lembra um circo de
desgraça, onde palhaçadas trágicas façam gargalhar e onde os ladrões e as
mulheres enfarinhadas representem a sério vícios e crimes, com risos e choros à
mistura, para que o público que paga se possa rir. Vem um Velho, que sem falar
gargalha toda a noite
ao vê-las maltratadas, e o Morto, pálido soturno, com um laivo na cara. Tem as
mãos ósseas e enormes sempre frias e as mulheres temem-no pela sua crueldade e
pelo sorriso trágico. Despreza a dor e os gritos. Sente-se que dele não há a
esperar piedade. Só a Mouca se atreve a resistir-lhe. Aparecem outros e toda a
noite se ouvem insultos, choros, gargalhadas.
Cada um ali arranca a
máscara, transforma-se, fica um ser nu: as feições endurecem, o riso é atroz. O
homem tem vontade de ouvir gritos. Paga, maltrata. É lodo, não há que ter piedade.
E as mulheres cantam sempre na mesma toada triste e soluçante... Nenhuma fala
do passado, com medo ao escárnio, mas guardam-no para si, sem o esquecerem. A
história é idêntica e amassada em lágrimas. Elas sabem que nasceram para sofrer
e resignam-se: o esgoto é necessário. Tudo na vida se alimenta de gritos, como
as raízes na terra se sustentam de água. Enganam-nas e não se queixam. É o
fado. Não têm ódio a quem as iludiu: ao contrário, não esquecem esse fio de
sonho espezinhado, que ainda sentem correr na vida, longínquo e triste, quase a
sumir-se de todo. O Fado as faz nascer e as traga. Triste é sempre a vida –
lágrimas, pancadas, pão, e assim as leva a sorte até à cova. Ouvi: esta seiva
dolorida fará nascer um dia alguma misteriosa Árvore.
São unidas, sustentam-se na
desgraça. Os amantes moem-nas e elas humilham-se, tão triste é não ter ninguém
a quem amar. E as desgraçadas, aquelas que, de confundidas
com a lama, se não enxergam, são as que de todo se sacrificam por eles. Míseras
criaturas, a quem se paga com injúrias, quanto mais afundadas na desgraça e
mais pobres, quanto mais perto da enfermaria e da morte, mais sentem a
necessidade de amar. Ficam dias sem pão para que os amantes o tenham. Tiram a
última camisa do corpo para lhes dar de comer. As arroladas matam-se se as
desiludirem. Seres de ignomínia só amam idealmente. Assim será o amor das
ervas, dos sapos, das nascentes, de tudo o que na natureza é pequenino ou
disforme. O Sonho para o esgoto é a única realidade.
A casa é trágica, de tetos
negros, sumidouros, corredores onde toda a gente agoniza uma luz de petróleo.
Há mulheres tísicas, com
tosse e a tábua do peito rasa! há-as que insultam quem entra para serem
espancadas. A filha do Gebo, Sofia, é alta, curva, cansada, e tão cheia de resignação
que perece morta; outra, Luísa, a quem chamam a Asilada, quase não fala. Olha
soturna, com os negros cabelos violentos todos soltos e a fisionomia empedrada
de mágoa.
Ao fundo divide a casa um
corredor com cubículos. Às vezes, altas horas, tudo sereno, ouve-se na
escuridão um ruído de choro sufocado.
Fora vê-se o hospital e a
rua negra, onde o enxurro humano sem cessar carreia detritos, lágrimas, sonho.
Especadas às esquinas criaturas esperam... Parecem pedaços
de noite destacados da própria noite. Fazem-lhe nicho as arcarias e arrancam à
treva, para se embrulharem, um farrapo do seu manto. Às vezes da escuridão sai
um perfil, mãos que querem arrepelar, mas logo tudo se some entre roupagens,
que têm a rigidez trágica das estátuas. Só a mão, que o lampião ilumina, fica
decepada. Por vezes toda a figura baça e amolgada surge, para logo se
aniquilar. A lama faz-lhe pedestal, passa o enxurro, e elas nem se mexem,
petrificadas. Algumas, de viverem dum passado de fogo, parecem mirradas, outras
procuram minguar, extinguir-se, não ocupar lugar na terra. E entretanto as
mulheres vão cantando na mesma toada de catástrofe, que a noite traga, como
farrapos de sonho espezinhado...
Todas as noites o Gabiru lá
vai sentar-se a um canto a cismar. Olha a Mouca sem palavra e sonha.
Conhecem-no os ladrões e os soldados, e elas, vendo-o entrar, esgrouviado e
triste, exclamam:
– Lá vem o enguiço!
A Mouca às risadas diz:
– Cá temos o enguiço!...
Mas em vão! Ele, com as
enormes pernas dobradas, alheado, sem ver nem ouvir, pensa num amor ideal e
monologa baixinho, entre as mulheres, os ladrões e os soldados:
"O que eu sonho! Eu
que sou tão tímido, ponho-me a falar e a cismar... E tanto cismo!... Troco
tudo...
Como é que tu gostas de
mim, que nem te sei sorrir? Ando a inventar uma língua nova, que seja como a
das fontes e a das árvores, quando desponta março, para te exprimir o que
sinto. Todas as palavras me parecem mirradas e servidas.
Olha, dize-me: chamas-te
Maria, não é?"
E entretanto os ladrões e
as mulheres conversam:
– Tu não te calarás,
estupor!
E uma tísica, magra, só com
a pele e o osso, explica:
– Uma mulher da vida... Que
estão vocês a dizer das mulheres da vida? Eu inda queria ver... Quando tu não
tens pão, quem to dá?
E o ladrão responde:
– És tu.
– O pão que eu ganho com o
meu corpo, com quem o parto?
– Comigo.
Mas outra do lado berra:
– A gente aqui é como os
cães. Toca a rir, raparigas! Se uma mãe adivinhasse para o que cria aos seus
peitos uma filha!... – E virada para um que entra! – Olha lá, ó coisa,
puseste-me o corpo negro noutro dia... Tu imaginas que uma pessoa é de ferro?
– Abaixo as patas!
Uma mulher pergunta a um
velho ladrão calvo, que a um canto ri, com a boca disforme, escancarada na
sombra:
– Tu que eras, ó velho?
Mas ele ri-se com a boca
aberta saindo do escuro
– só boca – como a fauce
desdentada dum lobo, e um outro é que responde:
– O velho era lavrador.
Olhai-lhe pra as mãos. Cheira a terra e a pobre.
O filósofo, a um canto,
cisma, olhando a Mouca entretida a falar com os soldados:
– "Tenho muito que te
dizer – tanto!... – e não sei o que te hei de dizer!...
Se me perguntam: – Tu que
tens? – parece-me que acordo e que me puxam para a terra.
As árvores levam todo o
inverno a sonhar inchadas e um dia acordam desfeitas em sonho. É o que lhes
acontece.
Ora vem aí Março, já
rebentaram novas fontes...
Maria é um nome tão lindo!"
Falam aos grupos, num
burburinho. Andam todas mal vestidas e com frio. Uma traz meias amarelas e
outra, a quem a tosse desconjunta, cobre-se com um xale de seda que a não
aquece.
– E tu que eras?
– Eu nada. Basta de
conversas. Dás-me um beijo?
– Tira-te! A ti um
beijo!... Antes queria morrer. Nem morta eras capaz de me dar um beijo. Com
essa cara! Olhai pra ele, raparigas... Já viram alguém rir-se assim?
– O minha arrolada!
E deu-lhe um pontapé.
Entretanto duas mais
afastadas conversam no escuro:
– Nesse dia tomo um
bebedeira, que há de dar que falar.
– Tu?
– Sim.
– A mim minha mãe é que era
a capa. Encobria-me.
E ninguém se importa com o
Gabiru, que tece, vai tecendo a sua teia, toda de emoção e de nuvens, encolhido
a um canto, absorto, sem ver nem ouvir:
– "Não sei bem o que
sinto, que nunca me vi assim. Do meu coração sai uma bica que rega as coisas
mais secas. E ouço! o que ouço!... Ao luar, lá em cima, ouço as montanhas em
diálogo e falarem árvores e pedras!...
E a tísica, voltada
para o ladrão, diz-lhe:
– Que queres mais que te eu
dê?
E ele, rindo:
– Ora! dinheiro...
– Nem pra pão já o tenho,
quanto mais!... Já o não ganho. Quem me quer, se todos dizem que estou tísica?
Estarei...
– Tu arranjas sempre.
– Aonde? os meus trapos
estão no prego, este xale emprestado por misericórdia. O lenço que ontem
trazia, vendi-o pra pagar à patroa. E amanhã entro para o Hospital.
– Bem sei onde ir buscá-lo.
Magra, desconjuntada, a
tossir, a tísica exclama:
– Pois vai! vai!... Se
outras te dão mais, vai!...
Deixa-me!...
– Pois vou...
E logo ela, arrependida,
torna:
– Espera. Dei-te tudo.
Escuta... Tens sido como quê? com um filho meu... – E para as outras com um
amargo sorriso: – Ó raparigas, quem há aí que me empreste algum dinheiro pelas
almas?
Uma abaixa-se. De entre a
meia e o sapato tira uma moeda, e a tísica, estendendo a mão:
– Já a não ganho com o meu
corpo.
E beija as cruzes ao
dinheiro.
– Toma.
Dá-lha e baixinho pede-lhe:
– Antes de eu morrer,
prometes que me vais ver ao Hospital? Todos dizem que estou tísica. Não é por
nada, mas vai-me custar morrer, sem ver ninguém ao pé de mim... Quem hei de eu
ver? Agora olha como te portas sozinho, ouviste? Inda te levam para o xilindró.
Vocês, em se pilhando à solta, adeus meu amigo!... Entro amanhã de manhã para o
Hospital e na quinta é dia de visita. Não te esqueças de mim, ouviste? A gente
prende-se e depois custa-lhe. Ora! que é que eu faço neste mundo!... Tu há
bocado disseste que bem sabias onde ir buscar o dinheiro.
Era à Gorda, pois era? Podes dizer, que eu bem sei. Estou pronta! Sou um
cangalho, só sirvo de tropeço... Mas olha que fui sempre tua amiga. Já agora
deixa-me acabar, pra lhe não dares esse gosto... Só te peço uma coisa... É que
me vás ver antes de eu ir pra a cova. Pra a terra! Isto de a gente morrer sem
mais nem menos até me parece esquisito... Que haverá no outro mundo?... Estou
pronta. O médico ontem disse: – Estás pronta! –E atiram assim com a gente pra o
cemitério!...
Eu ainda queria que me
dissessem o que é que a gente cá vem fazer...
– Sei lá!
– Chorar. Só se for... E
levar má vida. Apertando-lhe as mãos, envergonhada:
– Então vê lá se te
esqueces de mim.
– Agora!...
E ela, sorrindo com um
sorrir triste que lhe ilumina a boca descorada como um reflexo de sol:
– Agora! é o que vocês
sabem dizer. Os homens são todos o mesmo, falam todos pela mesma boca. A gente,
coitada, prende-se, mas vem a morte e tudo leva consigo.
O Gabiru, desenroscando as
pernas, ergue-se e murmura de si para si:
"Que tempo este em que
estamos! Parece feito de emoção... E tudo vai sonhando o seu sonho, que eu bem
sei, bem no sinto nas árvores, nas pedras e na terra, até na
terra mirrada... E eu tanto te queria dizer! tanto!...
Olha, sempre te chamas
Maria?"
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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