Preparemo-nos...
e vão...
Aparecia
à frente de todas as manifestações patrióticas, e sempre dominavam a algazarra
da multidão os seus gritos de Viva a guerra!
Pusera-se
de mal com todos os parentes, só por eles não terem, como ele, o fervoroso
culto de Marte, e um providencial excesso de coragem livrava-o de conflitos
sérios, com amigos inclinados à paz.
Em
apanhando três companheiros de feição, assinado o passaporte na taverna mais próxima,
lá iam todos de longada à Servia, afirmando-lhe a sua grande simpatia e a sua máxima
admiração, raivosos porque os traidores não deixavam que Portugal
entrasse no conflito, a cobrir-se de glórias. Os traidores, bem entendido, não
eram os que pretendiam que Portugal faltasse aos seus mais nobres compromissos,
negando à Inglaterra, velha aliada, o auxílio que ela nos pedisse, com
fundamento em múltiplos tratados de aliança e amizade. Traidores eram os que
pretendiam que Portugal, a ter de entrar na refrega, entrasse como aliado da
Inglaterra, e por virtude dessa aliança, honrando os seus compromissos não
apenas com rigorosa exatidão, mas com manifesta generosidade.
O
heroísmo, como o suor, vinha-lhe à pele no delírio das manifestações patrióticas,
e era de ver o arreganho com que ele ameaçava os covardes, abrasado era cóleras
sagradas. Nas conferências em que se procurava orientar o sentimento público no
sentido da guerra, ele era dos que aplaudiam com mais estrépito, era dos que se
manifestavam com mais ruído, e invariavelmente, apenas o conferenceiro fechava
a torneira dos patrióticos dislates, ele erguia-se vermelho como um tomate
maduro, e enchendo de ar o arcabouço taurino, berrava com toda a força dos seus
pulmões de bronze— Viva a guerra! Abaixo os traidores!
Repetia,
como um papagaio, tudo o que ouvira, tudo o que lera com respeito à nossa
participação no conflito mundial, aliados da Inglaterra, ficando para sempre desonrados
se lhe negássemos o auxílio que ela nos pedira, e afirmava a existência desse
pedido como se tivesse visto, como se tivesse lido a respectiva nota
diplomática. Havia quem negasse a existência dessa nota — eram os maus republicanos,
os maus portugueses, traidores e covardes. Um dia, em conversa amena de café,
um amigo por quem ele tinha a maior estima e a mais alta consideração,
afirmou-lhe que, de fato, a Inglaterra pedira a nossa intervenção, mas que o
fizera muito instada por nós para que o fizesse. Serviu-lhe isso para daí em
diante afirmar, com inabalável segurança, que o nosso auxílio fora pedido, e
berrava, quase a romper as goelas, que a respectiva nota diplomática lá estava
no Ministério dos Negócios Estrangeiros, não se tendo ainda publicado nos jornais,
sem a falta de uma letra, na integra, por conveniências da política
internacional. De resto, acrescentava ele, repetindo como um eco o que ouvira
em discursos, o que lera nos jornais — devíamos entrar na guerra, mesmo
contrariando a nossa Aliada, para salvarmos as colônias.
Era
uma vergonha, andarem as Nações todas aos tiros umas contra as outras, numa
febre de morticínio como não havia exemplo na História, e nós para aqui de
braços cruzados, pouco nos importando que a Força triunfasse do Direito, que o
Crime triunfasse da Justiça, que a Barbaria triunfasse da Civilização.
A
muitos dava a impressão de uma fera à solta, procurando vítimas para saciar a
sua ânsia de sangue e a sua fome de carne; a outros dava a impressão de um
malandrete a soldo, sem vislumbres de paixão, sem a menor sombra de
sinceridade, para fazer a propaganda truculenta de uma causa que não tinha raízes
no sentimento nacional.
A
apreensão dos barcos alemães, surtos no Tejo, em março de 1916, levara a
Alemanha a declararmos guerra, não se dispensando de o fazer por maneira a
vexar os nossos brios e ofender o nosso orgulho de Nação independente.
Vassalos
da Inglaterra!
Mas
se assim fosse, há muito seríamos beligerantes, desde a primeira hora, correndo
a sorte da Nação soberana desde que ela pegara em armas. O fato de nos
conservarmos neutros andando já ateada a guerra, era a afirmação categórica,
absoluta, insofismável da nossa independência, povo soberano que só uma vez, e
por breve tempo, no longo curso da História, sofrerá a dominação estrangeira.
Vassalos
da Inglaterra!
Uma
semelhante afronta, gratuita e calculada, exigia estrondosa desforra, e
antecipadamente a tirara o Almirante que no Mar da Palha batera a esquadra
alemã, ancorada no Tejo desde o começo das hostilidades. Troara o canhão de
bordo, intimando os navios boches a se entregarem, e dentro em pouco a bandeira
nacional, triunfante e gloriosa, como que gritava a todos os ventos, para que
se ouvisse no Orbe, que no seu primeiro recontro conosco o inimigo fora
derrotado.
Logo
se organizou uma grandiosa manifestação ao marinheiro que inscrevera na história
marítima de Portugal uma página mais bela, mais epopeica que a de Trafalgar.
Milhares de cidadãos se reuniram, seguidamente ao jantar, no Terreiro do Paço,
soltando gritos de saudação, de reconhecimento patriótico, ao vencedor do Mar
da Palha. A luz um bocadinho baça dos holofotes, incidindo sobre a multidão,
dava-lhe os ares de uma horda incendida em fúrias mavórticas, preparando-se
para um combate homérico.
Urna
voz se ergueu, formidanda, imperativa, rouca do muito que já tinha berrado:
—
Vamos à Servia!
Era
o remate de todas as manifestações patrióticas, a respeito de cuja composição
dizia um diplomata estrangeiro, já farto de os aturar: — Ils sont toujours
les mêmes.
Veio
o decreto de mobilização, e a partir desse momento começou ele a ser menos
estrondoso nos seus entusiasmos guerreiros, reclamando ainda a nossa
intervenção, mas já calculando que poderia muito bem vir a ser colhido na rede
se a mobilização se fizesse nos termos em que estava decretada.
Que
os militares fossem para a guerra, achava bem; mas que os civis, ainda na idade
de pegar em armas, fossem arrancados às suas ocupações para os lançarem nos
campos de batalha, isso é que lhe parecia mal, e contra tal abuso e violência
protestaria, se ela viesse a consumar-se.
A
mobilização fora o Tabor em que o miserável se transfigurara. Afirmava por toda
a parte, em público e raso, que a Inglaterra não invocara tal os tratados para
nos pedir um auxílio militar, e intimava os intervencionistas contumazes a
desmentirem-no com provas, as irrecusáveis provas que deviam estar no Ministério
dos Negócios Estrangeiros, expressas em notas diplomáticas.
O
risco de perdermos as colônias?
Mas
era evidente que as perderíamos se a Alemanha vencesse, quer entrássemos, quer
não entrássemos na guerra, e seria monstruosamente absurdo admitir que também
as perderíamos se a Alemanha fosse vencida, praticando contra nós, os
vencedores, um dos maiores e mais repulsantes crimes da História.
Como
estivesse na idade de pegar em armas, quando chegou a vez aos da sua freguesia,
levando na algibeira um atestado médico em que se jurava que tinha vertigens,
apresentou-se à junta de inspeção. Um perfeito animal, disseram os da
]unta, ao caírem-lhes os olhos na sua nudez hercúlea. E puseram na guia — Apto
para o serviço.
Fazia
dó a sua tristeza acabrunhada, por modo que alguns dos parentes, esquecendo injúrias
e agravos, procuraram-no em casa, para o verem e para o consolarem.
—
O que lá vai, lá vai. Mas que doidice era a tua, a gritares por toda a parte: —
Viva a guerra! a chamares traidores a todos que honestamente mostravam
desejos de a evitar!...
E
ele, os olhos cheios de lágrimas, vergando ao peso do remorso.
Eu
acreditei lá nunca que vivêssemos a ter guerra a sério?
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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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