A antiga fazenda
do Domingos Nunes agacha-se num descampado, esparrimada nos flancos de um
declive que verte para um riacho.
Tem o aspecto
senil duma tapera. As paredes denegridas, o madeiramento pesado, o telhado enegrecido
e escabroso dão aquela decrepitude arquitetônica os ares torvos de alguma coisa
morta.
Para os fundos
se mostra o quintal, no verde fosco das laranjeiras a enfeitar debalde sua
velhice com as flores de noivado que todas se desprendem à mais fagueira
viração da tarde. Na frente, o curral de aroeira fincada e o chão duro do
terreiro. Junto da porta, um montão de pedras à guisa de escadaria. A porta,
muito grossa e perra nos seus gonzos ferrugentos, dá acesso a uma sala
desguarnecida e vazia. Apenas ali se notam uma grosseira mesa de cerne, dois
bancos duros de taboa e uns arreios de couro, amontoados a um canto.
|A uma janela
lateral, um velho magro, Domingos Nunes, estava olhando para os lados do paiol.
Um pouco além, subsistiam ainda uns destroços de senzala.
A tarde
declinava. Domingos Nunes, como se o invadisse uma tristeza imensa, à vista do
paiol arruinado, arrancou-se dali e, arrastando os passos pelo assoalho de
grossas pranchas de peroba, enveredou para o salão, onde outrora as africanas
laboriosas trabalhavam nos intérminos dias de calor. Encostado duma banda,
permanecia inerte o tear. Rocas desmanteladas jaziam para os cantos. No meio
dos trastes abandonados, em desordem, como os destroços dum naufrágio,
sobrenadava uma argola de ferro com duas hastes como chifres, trazendo guizos
nas pontas. Ao modo de canga chinesa, ia ao pescoço das fujonas que costumavam
varar mato. A parca luz, que entrava pela única janela aberta e também encarada
pelo corredor que ia ter à cozinha, dava a tudo uns ares de sombra e de mistério.
O vasto compartimento oferecia saída a outros aposentos, cujas portas, fechadas
desde muitos anos, enclausuravam almas penadas e morcegos que atordoavam a
casa, pela noite a dentro, com uma algazarra infernal. Junto da escada de
madeira, lisa pelo uso constante, arrumada à parede, Domingos Nunes parou
meditabundo, como atando a ideia da escada às outras que tivera à janela, em
frente do paiol. Ali estava ainda no mesmo lugar a maldita escada, aquele
instrumento de suplícios para as pobres cativas; ligadas de bruços a ela, dos
pés à cabeça, como numa cruz, suportavam entre gemidos a brutalidade da
pancadaria. Junto do moirão, aquém da senzala, ainda se achava a sepultura anônima
daquela mestiça que sucumbira aos golpes do azorrague. Domingos Nunes chamou
para dentro, na sua voz asmática:
— Escrava!
Outra voz também asmática respondeu:
— Sinhô...
E à boca do
corredor assomou uma anosa crioula, meio coxa:
— Veva!
— Sinhô...
— Ainda resta
lenha para o lume?
— Sim, sinhô...
— Leva também
esta escada para queimar.
— Sim, sinhô...
Saindo
dificultosamente com o traste, Genoveva murmurava entre dentes, benzendo-se:
— Credo! Sinhô
parece capeta! Raias de sangue nos olhos! Sinhô não tarda morrer!...
Veva estava
livre, mas em Domingos Nunes era tão entranhado o sentimento daquela
propriedade que não a tratava como tal. Depois, ela mesma tinha, por instinto e
habito, índole por demais servil; no dia 13 de Maio de 1888, rejeitara a
liberdade. Prezava-a menos do que a honra e esta lhe fora extorquida por aquele
homem cruel. Pouco se lhe dava agora passar o resto da vida sob o seu jugo. Por
orgulho e por despeito renegara aquela liberdade tardia. Os filhos que nasceram
da sua desonra e das suas dores, ela os vira partir, um a um, nos balaios, em
cargueiros, vendidos como vis animais. A sede de fortuna fizera do seu senhor
um desumano. E não fora só ela a vítima; todas as suas companheiras de
escravidão foram também sócias do mesmo infortúnio. Por tudo isso, por toda aquela
desonra e por toda aquela revolta que sentia dentro d'alma, Veva sardonicamente
preferira ficar junto do déspota, alimentando a esperança de se vingar um dia.
Vingar-se terrivelmente, povoando de fantasmas e assombrações o fim da vida do
velho fazendeiro. Ainda na execução do seu plano sinistro lá estava ela
carcomida pelos anos, emperrada pela dor do reumatismo que lhe torturava os
ossos. Sentia dentro em si a morte!
Também o velho
parece que a percebia, a negra parca, enganchada nos seus ombros. Naquela tarde
vieram-lhe certos caprichos de quem vai morrer. Havendo escutado o gemido cavo
do monjolo, a mourejar, pilando arroz, fê-lo parar. Tendo visto pendurado na
varanda o sino que em outros tempos servira para reunir, em determinadas horas,
o seu harém negro, desprendeu-o dali a muito custo e o depositou a um canto. Aquele
sino, às vezes, alta noite começava a badalar tristemente. Nessas horas,
Domingos Nunes ficava transido de agonia. Todo barulho estranho o congelava de
susto. Já era noite fechada quando ele se recolheu ao quarto junto da sala. Acendeu
a candeia, abriu a janela e derreou-se no parapeito. Sofria de insônia. Antes
de conciliar o sono não arredava dali, a olhar os astros como um cão de guarda.
Naquela noite estava preocupado com recordações dolorosas. Depois de ficar
assim uma hora esquecida, a absorver a aragem e o silêncio, começou a sentir um
tremor esquisito nas carnes. Súbito pareceu- lhe ouvir uma voz semelhante à sua
dizer-lhe ao ouvido o seu nome:
— Domingos
Nunes!
Todo trêmulo e
reprimindo a respiração, despregou-se da janela e se recostou à parede como temendo
que uma alma do outro mundo o assaltasse pelas costas. E que, na pressão do
medo que sentira, não viu que fora ele mesmo quem pronunciara o próprio nome.
Mas, como reinasse depois um silencio de pedra, começou a recuperar a
tranquilidade, imaginando:
— Foi o vento...
Teve então uma
ideia que já o salvara em iguais conjunturas, para dissipar as sombras do
espírito: — abrir o seu baú — porquanto nada o distraía mais do que mirar e
remirar, contar e recontar o dinheiro que rendera a venda dos seus filhos. Foi
à canastra, tirou o baú, aproximou a candeia, espalhou sobre a cama os pacotes
embolorados de papel-moeda. E contou mentalmente:
— Onze maços de
cinco contos de reis!
E acrescentou
depois duma demora:
— Tudo preço de
sangue!...
Nesse mesmo
momento explodiu lá dentro a sarabanda das almas perdidas. Gemidos, vozerio, pancadaria,
ranger de ferros. Domingos Nunes, pálido de espanto, pôs-se a rezar. O alarido
cessou por uni instante. Foi quando ele ouviu no fundo do grande compartimento
das escravas um arrastar vagaroso de chinelas. E aqueles passos caminhavam para
ele, trazendo através da casa uma voz horrível a engrolar uma língua
estapafúrdia que ele não entendia. Pareceu-lhe conhecer a voz, que era de
mulher, mas a linguagem como era estranha! devia vir do inferno... Tendo
atravessado o vasto salão, parou à sua porta, monologando muito tempo naquela
monotonia desconcertada do sotaque africano. Se entrasse! Mas não entrou.
Calou-se é voltou sobre os passos, ao arrastar sossegado dos chinelos. Houve um
silêncio. Domingos Nunes tremia. Tomado de sobressalto arrebanhou a dinheirama no
baú e meteu tudo no esconderijo. Depois, agarrando a candeia, saiu do quarto.
Viu ainda na escuridão um vulto, como sombra envolta na sombra, embocando pelo
corredor. Não gritou pela escrava: teria, medo da sua própria voz. Apegou-se
mais à claridade que tinha nas mãos, como se aquela luz mesquinha desmanchasse
todos os espectros. Cobrou animo e avançou. Temendo sempre pelas costas, sondava,
com os olhos esbugalhados, as trevas em redor. Chegado ao quarto de Veva, fez
um esforço e chamou:
— Veva!
— Sinhô...
— Vem para o meu quarto.... traz a tua cama.
A negra,
temerosa, agarrou o colchão de palha e seguiu o seu senhor. Em chegando, entendeu
a enxerga no assoalho e deitou-se.
— Veva!
— Sinhô...
— Eu vou morrer?
— Não morre,
não, sinhô...
Domingos Nunes
estirou o corpo sobre o leito, ao estalar dos ossos, como um cadáver. Reinou a
solidão. Fora a água da bica querelava sem descontinuar, despejando-se no poço
do monjolo. À noite já ia muito adiantada quando um chamado roufenho
interrompeu o silêncio:
— Veva!
Ela dormia.
Chamado mais forte:
— Escrava...
Escrava...
— Sinhô...
— Vai aquela
canastra, no canto.
Ela cumpriu a
ordem, levantando-se devagar e receosa.
— Arranca fora o
baú... Traz a candeia.
— A negra
se aproximou com o baú e a candeia.
— Abre!
Escancarou o baú,
apalermada ao ver tanta riqueza de papel pardacento...
— Põe no chão e
ateia fogo!
— E ele
acrescentou como uma ideia fixa:
— Tudo preço de
sangue...
A velha africana
começou a chorar. Lembrou-se dos filhos, lembrou-se de tudo... E soluçava:
— Não queime,
não sinhô, não queime, não...
— Obedece!
A esse mando imperioso,
Genoveva dobrou a cerviz. Numa longa obediência e numa longa servidão habituara-se
a servir e obedecer. Fez um esforço supremo e achegou o lume aos pacotes embolorados
e sujos.
Um clarão
sangrento iluminou o quarto.
Domingos Nunes,
inteiriçado no seu catre, estendendo os braços ao estalar dos ossos, os olhos
arregalados para o teto, resmungava numa ânsia desesperada:
— Preço de
sangue...
São
Paulo, 1921.
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Jorge Falleiros (1898-1924)Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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Jorge Falleiros (1898-1924)Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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