(Ao
Dr. Brício Filho)
Estávamos no quarto cinco rapazes atentos
e silenciosos. O que se deitara, no sofá, os olhos no teto, tirando beatamente
fumacinhas curtas e pardacentas do charuto coroado de um zimbório de cinza alvíssima,
era o Lúcio, um gorducho, estudante de medicina. De vez em quando, tinha alguma
pilhéria para cortar a narração dos outros.
No quarto, onde as palavras, ora
escorregavam, monótonas, ora explodiam sonoras, dos lábios dos narradores,
havia por momentos interrupções de gargalhadas, aplaudindo as graçolas do Lúcio.
Verdade seja que o patife as tinha excelentes!
O Heitor, um da Politécnica, que,
montado em uma cadeira austríaca, se divertia a fazê-la balouçar sobre os dois
pés posteriores, era sempre dos primeiros a abrir em formidáveis explosões de
riso, logo seguidas pelas do Andrade e do Carlos, dois outros de medicina.
Eram onze horas da noite. Desde as
nove ali estávamos. Tínhamos projetado um passeio de barco pela baía de
Botafogo, em grande troça, mas o luar — um luar esplêndido que nos entrava nos cálculos
— desfizera-se em enorme aguaceiro.
Assegurava o Andrade que as onze mil
virgens deviam estar tomando banho. E o cavanhaque negro — mais do que negro, lutuoso
e trágico — corroborava de tal forma a asserção que a pilhéria soava com um
clangor sibilino de dogma. Dir-se-ia que um apêndice daqueles tinha alguma coisa
de pontifício, de infalível.
Como a chuva ameaçasse reeditar o dilúvio,
o Lúcio propôs que, abrigados àquela arca, esperássemos o fim dos quarenta dias
e das quarenta noites, ouvindo e contando histórias.
E de passagem foi aproveitando a ocasião
para abandalhar umas alusões à pomba, que nos devia trazer o ramo da
oliveira... Muito riso, muita galhofa. E ele iniciou a série, contando uma boa anedota,
que afirmou ter lido em Armand Silvestre.
Pura mentira. Era fértil o maroto
naquele gênero grivois. Ninguém como
ele para sublinhar qualquer malícia. Ia do conto apimentado à narração lasciva,
dando vigor e colorido às mínimas coisas.
Teve um êxito enorme. E, como
houvesse pago o seu tributo, estirou-se de papo para cima, enquanto se discutia
a quem tocava falar.
Nisto, o Heitor anunciou que ia ler
uma poesia.
Houve protestos...
— É um crime, revestido de circunstâncias
agravantes: lugar ermo, premeditação, alta noite...
— Que era preferível a morfina,
regougou por cima do cavanhaque o Andrade...
— Havia casos de princesa, que se
ficaram a dormir anos sem conta por causa disso; a Belle au bois dormant adormecera ouvindo um soneto...
Mas o Heitor humilhou-se. Deixou
passar a fuzilaria de epigramas, e disse que aquilo devia ter a gravidade de um
sacramento. Pecara; queria confessar-se. Tinha preparado cinco quadras, com um
trabalhão de mil diabos, e pretendia impingi-las como improviso.
Mas para isto era preciso que
tivesse havido luar, pois que a ele se aludia nas mencionadas quadras.
Conformando-se, porém, à fatalidade, já agora queria, por castigo de "sua
culpa, sua culpa, sua máxima culpa" abeirar-se do tribunal da penitência...
E afinal leu as quadras. Solene, o cavanhaque
do Andrade deixou cair-lhe em cima a absolvição, coando as palavras em vibrações
de De Profundis.
Aproveitando a ocasião, o Caldas anunciou
que tinha uma história curiosa e verdadeira, a do Lucas: um rapaz que todos eles
tinham conhecido.
Vozes pediram o Caldas: "À cena
o Caldas!" Dois minutos de vozeria. O Lúcio perguntou, interessado, se a história
era alegre e salgadinha...
O Caldas, um sujeito alto e magro,
declarou solenemente que não. Era um acontecimento triste e verdadeiro, embora inverosímel.
— Quanto ao personagem, vocês o
conheceram.
— O Lucas, aquele que morreu o ano
passado, um da turma de 87?
— Exatamente.
A narração começou. O Caldas tinha pretensões
a literato. Isto fazia com que alambicasse demais as frases, imprimindo-lhes um
estilo de mau gosto, avesso à naturalidade. Assegurava, porém, que era aquele o
seu modo de exprimir-se. E foi contando quem era o Lucas: um romântico, um
sonhador de ideais. Viera estudar medicina forçado pelo pai, que o não deixou
ir para São Paulo, temendo que o rapaz se perdesse na vida de boemia,
acervejada e livre. Os cinco primeiros anos na Faculdade nada ofereciam de
interessante: estudante regular, comportamento regular..."
— Eu sei, atalhou o Lúcio; como o
passaporte com que vim de Lisboa e em que todos os sinais foram preenchidos com
esse monótono adjetivo, chegando até a dizer: cor dos olhos: — regular!
O Caldas prosseguiu. No sexto ano
contou como o Lucas se apaixonara pela Virgínia Barros, filha do Barão de Souza
Barros. E aos poucos a voz do narrador, que começara rouca, foi ganhando ênfase
e sonoridade:
"... Era alta e magra, de uma
magreza aristocrática. Piso de garça real: flexível e garboso. Meneios de castelã
vaporosa, comandando pelos gestos a admiração e o respeito à sua estranha beleza
— beleza, em que, se não bastasse o perfil correto e amadonado, a boca pequenina
e rubra, seria de sobra o olhar.
Conheceu-a o Lucas em um baile,
vendo-a dançar freneticamente polcas e quadrilhas, quadrilhas e valsas — e
desde o primeiro passo até o rodopio último do galope final — sem que um riso
pudesse desanuviar-lhe a densa camada de tristeza, que visivelmente a
assoberbava. "Fez-lhe aquilo uma impressão extrema e, encontrando-a de
novo, dias depois, em uma recita dos Puritanos,
teve-a nas objetivas do binóculo durante toda noite.
Era tão clara e tão sincera a
manifestação do seu exaltado sentimento que sob a cútis finíssima parecia
sentir-se a vibração doentia dos nervos excitados pela música. Os olhos
chispavam e, sem que tivessem uma só lágrima, irradiavam tão estranhamente que cada raio deles parecia impelir legiões de soluços e de
preces, clamando alto, alto chorando... A batuta do regente dá orquestra, como
um bastão elétrico, a cuja passagem se levantam em revoada pequenas coisas atraídas,
tangia-lhe da alma voos loucos de mágoas e tristezas, de queixas de uma dor tão
profunda, que se diria porejar lágrimas no deslumbramento da sala. Nem voz de
contralto e tenores, nem harmonias quérulas de violoncelos tinham a intensidade
daquele olhar, misto talvez — por uma extravagância indefinível — de luz, de
som e de perfume. Mas por todo o teatro, pompeando sedas e brilhantes, maciez
de veludos e de colos formosos e nus, sopitando um momento sob os atrativos da música
e da vaidade as demais paixões humanas, — por todo o teatro, só houve no seu
caminho um coração capaz de entendê-lo: o do Lucas.
Uma semana depois, ele encontrava-a
novamente em um baile e nunca declaração de amor tão estranha e tão ardente
soou entre o frou-frou das caudas roçagantes das valsistas...
A sala da festa voltava-se para a baía
de Botafogo. O mar plangia, lambendo, no desanimo da vazante, as pedras limosas
do sopé do paredão. Longe — como luzeiro de vaga-lumes — batiam pálpebras trementes
os lampiões da cidade. O céu, varrera-o alguém de nuvens. Havia, como a poeira
esquecida por um criado descuidoso, o esbranquiçado da via-láctea, enquanto ao
derredor um anjo prodigo atirara inconsideramente punhados de astros, chispando
fagulhas...
Ele e ela, duas almas de românticos,
pareciam haurir no ambiente uma pulverização de sonhos e devaneios. Estavam
debruçados à varanda e expandiam-se longamente em confissões.
O Lucas saiu dali cambaleante, não sabia
bem se de tristeza, se de ventura. De um desses sentimentos deliciosamente martirizantes,
que são sofrimento e são gozo, que são gozo e são sofrimento. Conquistara uma
alma de eleição: alma branca, alma de arminho. Mas arminho ensopado em pranto.
Tinha, enfim, compreendido a
tristeza que minava aquela existência de donzela. Sabia-se irremissivelmente
condenada: era uma tuberculosa.
E, a pé, ao longo do cais, ele foi
seguindo... Uma brisa muito fresca vinha do mar. A areia alvejava em larga
fita. As ondas não tinham força. A besta marinha resfolegava de manso, como exausta
ao cabo de um delíquio de amor. Chegavam de longe os sons dolentes de um canto:
de tão longe que ninguém saberia se eram ouvidos, se eram apenas recordados...
A moça lhe havia contado que o seu médico
declarara ao pai que ela teria somente um ou dois anos de vida. O velho barão
não queria acreditar. Talvez com um tratamento enérgico, dizia ele, se
conseguisse alguma coisa.
— Qual, meu amigo? replicava o médico.
A avó morreu com vinte e nove anos, a mãe com vinte e cinco: ela está fadada a
morrer muito moça. Você fez-me jurar que lhe diria a verdade inteira, sem atenuações
nem enganos: esta é a verdade.
— Mas...
— Não há mas... O micróbio da tuberculose é implacável... Tudo tem sido em
vão. Tentativas sobre tentativas, todas se têm frustrado. Sua filha já quase
não tem o pulmão esquerdo. Mesmo do direito resta-lho também muito pouco... O micróbio
é implacável...
E, repetindo aquele estribilho de
fatalidade, o velho facultativo saiu lentamente. O ouvido da moça colado à fechadura
de um quarto vizinho para não perder-lhe uma só palavra, percebeu o rumor dos
passos afastando-se...
O pai, depois que o médico saiu,
voltou à sala, ajoelhou-se no tapete e debruçado sobre o sofá, segurando com as
velhas mãos trêmulas a cabeça branca, ficou chorando, chorando como uma
criança...
De então em diante uma tristeza
dolorosa e pungitiva encheu-lhe toda a alma, vestindo de crepe as explosões
mais brilhantes das alegrias que a cercavam. E, como todos se apercebessem do
seu desanimo e lho aumentassem, perguntando sempre por sua saúde, ela, na
obsessão da ideia que a dominava, supôs que os olhos estranhos viam claramente
o seu estado. Parecia que dos seus gestos, da sua voz, dos seus olhares saía um
rumor de cantochão, um cheiro de cemitério, uma visão de espectros... Se a
olhavam muito, era como se dissessem, gritando por toda a parte, no rasto de
seus passos: "Esta é a que vai morrer!" E que volúpia, que apetite excitado
por cada dia de espera, o dos vermes que a tinham de devorar!
Resolveu lutar. Aquilo que lhe
parecia tão claramente escrito no seu rosto jurou que ninguém o veria.
E dançou e folgou loucamente, acelerando
a hora fatal, mas encobrindo o seu tormento, o seu naufrágio irremissível.
Queria ser como um navio a afundar-se, sem que na tolda a marinhagem, rindo e
festejando, desse por isso.
Como César, ao morrer apunhalado,
cobrira o rosto com o manto, ocultando por um instinto de grandeza a miséria
dos esgares de dor — ela queria cair enrolada em estendais de flores, em músicas
de galanteios, em perfumes capitosos de salas de bailes...
Isto tudo, desde a conversa do médico,
fielmente conservada, até os seus mais íntimos pensamentos, ela dissera ao
Lucas. E o Lucas — sonhador, em cuja alma o fermento do misticismo catolicodormia,
não de todo extinto, sentia uma grandeza extrema nesse amor quase etéreo, quase
irreal, com um toque religioso.
Amaram-se, exaltando mutuamente tudo
o que havia de pouco comum em semelhante afeição.
O velho médico da casa, por descargo
de consciência, continuava a receitar fazendo a moça ingerir umas drogas
nauseantes. Julgando- a ignorante, assegurava de cada vez que ela ia melhor,
muito melhor...
Ela sorria. Triste, como um dobre de
finados, soava-lhe aos ouvidos a frase surpreendida : "O micróbio da
tuberculose é implacável".
O micróbio! Ninguém sabia que desejo
intenso tinha ela de o ver! Era aquele o seu adversário, era aquele o sapador terrível
do seu organismo — e ela não o conheceria?!
Figurava-se às vezes, quando em silêncio,
na solidão do seu quarto, ver a legião dos animálculos, pululando, formigando,
rastejando sobre a massa rubra dos pulmões. E por um grotesto sinistro de
imaginação, na sua ignorância, o que a ideia lhe lembrava era um queijo coberto
de bichos.
O pulmão seria como um queijo
vermelho e sangrento, roído pelos micróbios... Da primeira hemoptises colheu
com cuidado o sangue, e apurou debalde a vista, julgando infantilmente que
poderia distinguir qualquer coisa.
A decepção aumentou o desejo. Uma
tarde, entre a crítica de uma festa e uma anedota graciosa, expôs ao Lucas a
sua vontade. Sorrindo, com o sorriso desolador de uma ironia de mártir
resignada, contou-lhe de outra vez, um pensamento fantástico que lhe acudira: —
Ela parecia uma mina. Por uma das galerias — a dos pulmões — mineiros ativíssimos
trabalhavam incessantemente. Breve estaria morta. Novas turmas de operários, os
vermes, se abateriam sobre o seu corpo. Que alegria — como nas minas de carvão
ou gesso — quando as duas turmas de mineiros se encontrassem, uma seguindo de
dentro para fora, outra de fora para dentro. Aleluia! Aleluia! A sua carcaça podre
vibraria com a festa dos vermes tripudiando sobre as carnes decompostas!
O Lucas saiu aterrado. Que
imaginação sinistra a daquela pobre vítima! Nada lhe prometeu. Iludiu-lhe as
instâncias assegurando que era muito difícil, que era preciso um microscópio
muito aperfeiçoado, impossível para ele de obter. Além de tudo, tornava-se necessário
um preparo químico especial para colorir os micróbios e ele não o sabia fazer.
Mil outras dificuldades...
A moça deixava passar algum tempo e
voltava a insistir. O Lucas teve de prometer. Não bastava, porém, que fosse
qualquer sangue.
Ela queria do seu. Queria ver, não
outros, mas os seus próprios inimigos. Lucas conformou-se. Levou o sangue,
preparou a cultura especial, coloriu à violeta e ficou de trazê-la na
quinta-feira. Precisamente era a véspera da colação do seu grau de médico.
O microscópio veio sob um pretexto
qualquer. O barão devia ignorar o capricho da filha.
Quando o Lucas entrou, achou-a de
cama, Tinha tido uma grande hemoptises, mas ocultou-lhe.
Era uma pontinha de febre —
assegurava a sorrir. As maçãs do rosto, queimando, protestavam contra aquela
alegria. O Lucas, ao apertar-lhe a mão, sentiu que
abrasava. O olhar tinha uma vivacidade fantástica e alucinada. Fez que
chamassem o velho médico, apesar dos protestos dela, sempre risonha.
Isso não impedia que ele mostrasse a
preparação, dizia a moça. Foi necessário ceder. Armou o instrumento, focalizou
com cuidado, voltando o espelhinho para a janela aberta e mandou-lhe olhar. O microscópio
estava sobre uma cadeira, à direita da cama. Mesmo deitada, debruçando-se um
pouco, ela colou a vista à ocular.
O quê! era aquilo!? Uns bastõezinhos roxos, alguns mesmo figurando antes uma sucessão de pontos do que um todo
continuo, — ali mesmo, com um aumento de mil e quinhentos diâmetros, quase
imperceptíveis! Era aquilo?! Admirava-se que ele o afirmasse: "os micróbios
da tuberculose são assim"
Parecia-lhe uma humilhação morrer
vencida por aqueles infinitesimais! Não pôde olhar muito tempo. A febre
crescia. Chegou a quarenta, a quarenta e um, a quase quarenta e dois graus... O
médico veio. Chamou o Lucas à parte e disse-lhe com muitos rodeios que a noiva
morreria infalivelmente, nessa noite, ou na manhã seguinte... Ele não teve uma
só lágrima, não articulou um som: a angustia tolhia-lhe a garganta como um
guante de ferro. Ficou à cabeceira do leito com uma obstinação feroz e sombria.
A moça delirava.
Via-se noiva. Ia entrar na igreja.
Quando dava os primeiros passos, o órgão imenso, com um trovão de apocalipse,
fazia-a parar aterrorizada. A música assombrosa cantava: "Esta é a que vai morrer! Esta é a que vai morrer!"
Apesar de tudo, um padre celebrava a
missa. Quando ele ergueu a hóstia, — a hóstia, iluminada vivamente, reproduzia
a objetiva do microscópio, cheia de traços roxos: os micróbios da tuberculose.
As linhas do missal eram cordões negros de vermes. Cada vez mais forte, o órgão
clamava ensurdecedoramente: "Esta é
a que vai morrer"
— Então, como uma surdina, como a
visão dos que do inferno enxergam o céu aberto, mas irreparavelmente perdido,
surgiam-lhe reminiscências de festas: valsas languescendo ao compasso da música
em espirais tortuosas... voo estonteante de perfumes... hinos de ventura, hinos
de amor... hosanas de glória e mocidade e vida... galanteios ouvidos outrora: "Como nossa excelência está formosa!... Posso
merecer à sua distinção de rainha a honra desta valsa?" ... E
as flores pareciam despeitadas da sua beleza!...
Bailes, festas, pompas de teatro, sedas e veludos, rubis diamantes...
Mas agora, dominando tudo, os tubos
do órgão mugiam o estribilho formidável:
"Esta é a que vai morrer! Esta é a que vai morrer!"
De súbito uma onda de sangue
espumou-lhe aos lábios, como à boca ferida de um cavalo, após a carreira. O
sangue jorrou, púrpuro e claro, cantando a simonia alegre do vermelho. A febre
cedeu um pouco. Ela pareceu descansar.
Passara a noite. Vieram procurar o
Lucas para ir tomar o grau. A mãe e a irmã, que haviam chegado de Minas
expressamente para a cerimônia, apareceram-lhe já vestidas de sedas caras,
tendo à porta a esperá-las uma berlinda puxada a cavalos brancos. Ele,
completamente doido, mandou-as embora com uma brutalidade de alucinado. E, em um
instante, na vertigem de um caleidoscópio elétrico, todos os seus longos
estudos de seis anos, os melhores da mocidade, apareceram-lhe de uma
esterilidade desoladora. A Ciência? A Ciência que se orgulha de marcar o volume
de Júpiter, de determinar a órbita de um cometa que voltará daqui a centenas de
anos — a Ciência como se lhe representou miserável! A torre dos volumes cresce
todos os dias, mais alta que as pirâmides, mais alta que a Babel dos sonhos
antigos... São livros doutos, cheios de observações... Quando um volume novo se
acrescenta à coluna, parece dizer: "Aqui o verme não chegará!" Mas, a
desafiá-lo, o Infinitamente Pequeno
trepa-se lá em cima à cantoneira de marroquim, ao dourado das páginas. E o seu
rasto pegajoso e visguento é como a baba de uma boca que ri muito, que ri às escâncaras...
Ri do esforço humano, ri da Ciência,
ri da Vida... — E pensou que, amanhã talvez, fosse arrancar à morte um ser, inútil
ou perigoso, um bruto qualquer, um selvagem meio escondido sob a mascara de
homem civilizado, enquanto ela, a sua pobre noiva, tão boa e tão formosa, apodreceria
na frieza do sepulcro, dando ao pasto das larvas tacos da sua carne, hoje rósea,
amanhã verde-negra... Gritou de novo à mãe e à irmã que não ia, que não se
doutorava em nada...
O médico receitara infecções de éter.
Era a hora marcada. Fez com que as duas mulheres saíssem, fechou a porta
violentamente e veio fazer a injeção com uma delicadeza infinita. Apenas as
mãos tremiam-lhe um pouco.
Nisto, uma nova onda de sangue
ressumou aos lábios da moça. Ele — como a primeira coisa que encontrou à mão —
tomou do copo de cristal posto à cabeceira e aparou aí a hemoptises. Era um
liquido puro, de uma cor sonora e triunfal, um vermelho cantante, de saúde e
mocidade. Com o copo em punho, cheio de sangue, teve de súbito uma ideia: —
bebeu-o! Morreria da mesma morte que ela, roído dos mesmos vermes...
O velho barão com os olhos
estupidamente fitos em tudo aquilo, aniquilado pela dor, teve um salto
vigoroso, apesar dos jarretes entorpecidos pela idade e pelas moléstias. Era
tarde. Restava o copo, sujo de um desses vinhos cheios de borra, toldados e maus,
que mancham o vidro... Ao bigode louro do Lucas coalhos pequenos de sangue
tremiam, pendurados...
A moça moveu-se. As atenções
voltaram-se para ela. Um bálsamo de paz ungia-lhe o rosto, agora sereno e beatifico.
Os braços levantaram-se na intenção de um movimento, mas caíram logo... A arca
emagrecida do peito pareceu erguer-se muito, mas baixou com um pequeno
suspiro... Imobilidade absoluta. O Lucas precipitou-se alucinadamente a cobrir
de beijos o rosto da noiva, deixando, onde os seus lábios pousavam; borrões
sanguinolentos...
Morta, enterrou-se no dia seguinte,
um dia esplêndido de sol. Menos de uma semana depois, o Lucas a seguia. A
tuberculose tomara nele urna forma galopante, tendo rejeitado todo o tratamento
e ardendo em uma febre louca.
O Caldas acabara a história.
Meia-noite. A chuva passara. O luar, já então esplêndido, coando-se de um orifício
da janela sobre o tapete junto ao sofá em que estava o Lúcio, parecia pendurar
ao pescoço de leão, bordado a lã vermelha, um largo medalhão de prata...
---
José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque(1867-1934)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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