Palavras
amargas
(A
um literato rico)
A
sinceridade é um luxo que só é permitido, como os diademas e a autoridade, às
mais elevadas categorias, a quem é permitido dizer as verdades por não terem
ninguém acima de si aquém adular ou com quem se conformar. Todo homem isolado é
sincero. Quando entra outra pessoa, começa a hipocrisia.
Emerson - Iludido Jayme de Torrealta:
Escrevo-te com palavras amargas,
porque elas se prestam melhor a traduzir a sinceridade.
Bem sei que ser sincero é ser
grosseiro; mas para romper a espessa atmosfera de ilusões que te envolve e
domina, sou forçado, neste momento, a recorrer a tal arma. Doutro modo, não
poderia a minha sinceridade atravessar a cortícula da tua encruada vaidade, a
fim de te ferir justamente no âmago.
Somente assim, meu inefável, lograrei
consumar o meu desideratum, que é o
que deve ser sincero. Não estranhes, pois, se as palavras e os conceitos desta carta,
inçada do agridoce da ironia e da saburra desagradável do sarcasmo,
condimentada de perfídias e cinismos, perturbarem o jardim silencioso da tua
alma, onde os pavões mirabolantes da vaidade espalmam o leque furta-cor da sua
cauda insolente.
Sim, é necessário que saibas que és
uma vítima dos tais pavões a que acabei de aludir...
Do alto estapafúrdio das tuas
polainas, e mumificado através da lasca do teu irritante monóculo, que tem o
desdém pretensioso de destilar indiferentíssimo sobre o meio ambiente e
circulante, grávido de hipocrisias, julgas dominar a vida? Puro e lamentável
engano!
Muito provavelmente seja um nome
fictício e irônico pela escolha do sobrenome Torrealta.
O acaso,
esse pseudônimo de Deus, como disse Gautier, fez de ti um homem rico, e depois
agravou a tua situação fazendo-te um homem de letras!
De uns meses a esta parte, a
mentalidade paulista, tomada, como foi, da ânsia de assaltar a glória e forçar
com o pé-de-cabra da audácia deslavada e manhosa as portas da cidadela da
Imortalidade, deu em parturejar um livro caxingó em cada quinze dias. E tu
também quiseste, com um gesto castiçamente deselegante, figurar na galeria dos
parturientes; com o fórceps do teu
dinheiro, os prelos gemeram desesperadoramente, num parto infeliz, e deram à
luz do sol da Pauliceia o teu livro, — aborto teratológico concebido na câmara
escura do teu heráldico bestunto. Não afrontou o ridículo essa tua mania, mas
afrontou a indiferença, que é pior ainda.
A tua silhueta de dândi pretensamente
letrado, quando passa por entre os homens, desperta em todos uma galhofa surda,
recalcada no fundo da malícia, e que escapa à tua argentaria argúcia. Nessa
ocasião, o teu nome é murmurado em surdina, acompanhado de beliscões morais e
crivado de farpilhas envoltas em laçarotes de vermelhos adjetivos lanciolantes.
Se nesse momento, porém, a tua figura, que carrega uma alma de manequim,
enfrenta o grupo, como a querer lamuriar a sede de glória que arde no teu
íntimo, não percebes a estupefação que tolhe a voz e os gestos de todos. E
passas convicto de que aquele silêncio foi uma manifestação espontânea de
admiração. Como a tua ingenuidade é irritante! O insulto velado, amordaçado
pelo açaimo do convencionalismo, cantou aos teus nababescos ouvidos como poema
de comovidos louvores.
No mundo do bom tom, da galanteria, os
teus gestos ritmicamente estudados, e mais a cenografia da indumentária,
sugestionam e vencem, com o dinheiro; abres portas que dão para todos os salões
do mundanismo; mas, no mundo literário, desprovido como és da chave do talento,
não consegues abrir uma portinhola!
Ser um bom rico é mais fácil do que
ser um literato. Já pensava assim o teu particular amigo, o conselheiro Acácio.
A tua formidável boa-fé, e a pueril
confiança depositada nas dunas movediças dos elogios de falsete, alardeados
pelos amigos exageradores, fizeram estraçalhar a tua ótima ingenuidade pela
rampa acidentada desse declive enganador, que tem por fundo um fojo trevoso,
onde dorme a fauna variegada de todos os ridículos.
Aos teus amigos, num grande desprezo
pela tua figura humana, não lhes doeu a alma, ao te arremessarem nesse fojo em
cuja borda todos os que passam riem da tua caricata pessoa.
Ninguém se atreve a ter piedade de ti,
expondo-te a tua própria situação. Seria isso um insulto ao teu dinheiro. Mas,
se fosses um literato pelitrapo, desses que almoçam sem nenhuma lembrança do
último jantar, amaldiçoados pela sorte bruxa, não te faltariam críticos conselheiros,
amigos guiadores. Tens aquilo que mata nos homens a sinceridade, e por isso não
há um que se atreva a dar-te um conselho.
Confiaste em demasia nos outros,
porque te faltava o hábito de confiar em ti mesmo!
O teu bem-estar material e o teu
excesso de conforto obumbraram-te a ótica da análise.
Vês os homens sem perfídias, julgando
que eles também procederão da mesma forma para contigo.
Sinuosa miragem!
Nunca encontraste no teu caminho algum
desassombrado que, arcando com o minúsculo fardo do teu desprezo, ousasse ser
sincero. Nunca!
A tua conduta admira-me, porque afinal
de contas, não és totalmente cretino. O bom senso dos medíocres ainda não se
extinguiu em ti.
Grande egoísta, não te bastavam as mil
e uma regalias que o dinheiro vem de proporcionar-te pela vida afora?
Não! Quiseste, num gesto manque de
cabotinismo, sair da obscuridade burguesa que entenebrecia a tua confusa
personalidade. E publicaste o indigesto cartapácio que meia dúzia dos que se
dizem teus amigos leu com enfado e de que a maioria não tem sequer noção de tal
ignomínia impressa. Publicaste para mostrar que sabes escrever, porém São Paulo
está cheio de imbecis que julgam saber escrever. De grafomonos está a Pauliceia
repleta: em cada repartição pública há um literato inédito, que para escrever
livros que ninguém lê, como o teu, molha a pena no marnel da própria vaidade.
Feliz daquele que, tendo escrito um
livro para passar o tempo, por mero diletantismo, esconde, sigilosamente, o
fruto das emoções, dos olhos da maioria dos mortais!
Feliz dos que têm notícia da própria
mediocridade!
A esses, a ironia chula dos pérfidos
não os ferirá.
O teu descrédito no mundo das letras é
formidável, embora os incensadores digam o contrário. Não soubeste esconder,
como era devido, a tua brilhante mediocridade; por isso pensas absurdamente que
és um homem que carrega a glória, quando a verdade, que todos cogitam esconder
aos teus olhos, é bem outra. A verdade apunhaladora é que és um homem falho de
senso crítico, de acanhado temperamento artístico, cultura vulgar, imbuído de
literatice, dessa que alucina os colegiais e os provincianos.
Amigo, medita um pouco sobre a tua
jocosa situação, e depois isola-te o mais que possas, a fim de reabilitares na
solidão a pequena vaidade com a tua imensa ambição.
A crítica oca, feita por meia dúzia de
paspalhões atacados da peste do intelectualismo, proclamou em todos os
diapasões as Excelências que não existem no teu livro. Os desalmados, na lavra
do exagero, não procuraram estabelecer premissas, para chegarem a uma dedução
mais ou menos razoável, a fim de se ver em que altura devia figurar o teu
talento, na escala dos valores!
Nada disso foi feito. E o teu livro,
que ninguém lê, porque tem a grande qualidade de não interessar ao mais
insignificante habitante desta capital, foi rotulado, por esses criticoides, de
esplendido e maravilhoso. Como a sinceridade teve medo do teu dinheiro!
Mudando de tom: não há uma só pessoa,
sob o céu da Pauliceia, que se atreva a negar-te talento! E tu, na verdade, não
és um homem de talento. És, quando muito, um homem futilmente brilhante; e com
esse brilhantismo, tiveste a petulância de escrever um livro falso, postiço,
que não reflete a grande vida que turbilhona cá fora, amarga e agitada, onde os
homens se contorcionam na febre delirante dos interesses e do egoísmo que os
impulsiona na ânsia bárbara de se devorarem mutuamente. Longe destes fenômenos
foi urdido o teu desalinhavado volume.
Tudo é fantasioso nele. A única
verdade que ele projeta é a tua existenciazinha passada entre paredes doiradas
e ambientes pacatos, onde o rumor mais sensacional é o de um bocejo distraído.
Falta paixão, tragédia e sofrimento no
teu livro.
Escrever um livro é um trabalho fácil,
mas criar um livro, como disse Ibsen, é um trabalho difícil.
Ninguém te odeia, ninguém te combate!
Rubinstein exclamou um dia: — “Tem-se a medida exata do valor de um literato,
contando o número de medíocres que se coligam para o derrubar”. Ora, não
havendo quem se coligue para te derrubar, quer dizer que tu não existes na
esfera das letras...
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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