7/08/2019

Os três desejos (Conto), de Firmino Rodrigues da Silva



Os três desejos
(Costumes Brasileiros)

Maria... Maria... por que sempre havemos de ser infelizes? nunca fizemos mal a ninguém, somos tementes a Deus... todos os domingos vamos ouvir missa à freguesia, e daqui lá é um queijo... e contudo cada vez mais para trás, não assim?

— Quem sabe! ainda somos moços, e pode muito bem ser que algum dia...

— Sim, algum dia... e no entanto soframos. Maria continuou no arranjo de sua casa, direi melhor, de sua miserável choupana, triste retiro, onde ela vivia com seu marido e seus dois filhinhos, Juca e Mariquinhas. Era um desses casebres feitos de pau-a-pique, cobertos de sapé que bordam nossas estradas; um catre feito de guascas entrançadas, sustido por quatro pequenos esteios fincados no chão, um velho tamborete, duas esteiras de tábuas, um rústico cabide, e um derrengado bufete eram os trastes de que se compunha a mobília do interior da choupana. Não esquecerei, para melhor retratar o painel, de dizer que em um canto da casa rosnava Galafre, o fiel Galafre, famoso veadeiro, leal, valente, delícias do senhor, no outro jazia uma lustrosa espingarda de guarda nacional, e no cabide um embrulho de peles de onça entre as quais se achava o guizo da cascavel, talismã misterioso que cura de quebranto e serve de antídoto ao veneno da mesma cobra.

Se quereis, amigo leitor, conhecer a fundo quem era o marido de Maria, dir-vos-eI que era um mineiro por nome Felisberto, alto, robusto, bem apessoado, descendente de uma família que outrora possuía riquíssimas lavras, mas cujos cabedais haviam sido esbanjados pelo pai de Felisberto, perdulário de chapa, que com extraordinária despiedosa largueza despendeu o que nada lhe havia custado a ganhar. Pobre, sem meios de vida, viu-se ele obrigado a ser tropeiro. Talvez, leitor fluminense, vós que sabeis mais do que vai por Londres e Paris, do que de vossa terra, não compreendais à justa o que vem a ser um tropeiro, pois eu vos explico: — um homem natural do país que se incumbe de um lote de bestas, que as trata e afaga, que lhes conhece as bondades e as mazelas, que se faz entendido delas, chamando-as cada uma por apropriado apelido; o tropeiro não escolhe pouso sem saber se haverá bom pasto para seus animais; não temendo chuva nem sol, ele se embrenha por essas estradas que parecem intermináveis, ora suando no meio de um lameiro onde a Douradinha se afunda até as cangalhas, e a alivia do peso, ora segue a Ruana pelo despenhadeiro fora a ver se, não podendo salvá-la, ao menos não deixa perder-se a carga. Polido em extremo, o tropeiro não se encontra convosco sem tirar o seu chapéu, amigo de seu companheiro, ele não passa por tremedal ou lamaceiro sem fincar no meio um ramo para que outrem não se veja no mesmo perigo; franco e sincero o tropeiro ferra vosso cavalo em viagem, guia-o ao pasto sem levar nada, enfim apesar de todos estes trabalhos e incômodos ele contenta-se, como um Sparciata, com seu caldo de feijão preto e sua cuia de farinha de milho. Mas de todos os bons predicados do tropeiro não há como a sua probidade e honradez; podeis confiar-lhe os objetos do maior valor, e ele vo-los entregará sem o menor desfalque; também religioso em extremo, não o vereis passar por diante de uma cruz sem tirar-lhe o chapéu e algumas vezes enfeitá-la com alguns ramos agrestes. Contudo, apesar de todas estas qualidades, não brinqueis com ele, porque como é generoso sabe ser vingativo. Ora, se a isto ajuntardes um desabado Gabriel Milietti, ponche de pano azul, camisa de algodão por cima de ceroulas do mesmo estofo, faca de cabo e bainha de prata a cinta, tereis adequada ideia de quem era Felisberto.

Não era tão comum e ordinário o caráter do nosso tropeiro que não valha a pena dar-vos dele notícia; a recordação das riquezas de seus avós esparzia sobre seu semblante algumas sombras de tristeza; comparando o passado com o presente, as faixas de cambraia com as ceroulas de algodão, Felisberto suspirava; afrontando com a vista extensa a serrania que o circundava, domínio outrora de seus antepassados, o infeliz ficava absorto em mil conjeturas para adivinhar como seria possível que de novo a possuísse; ora supunha que os atuais senhores condoídos de suas misérias talvez o agregassem, e por fim o deixariam herdeiro em falta de parentes; ora lembrava-se de comprá-las a força de economias, também às vezes vinha-lhe à ideia esse meio terrível, a peste que, ceifando toda a gente daquela comarca, o constituísse senhor das tão suspiradas lavras.

Companheira de infortúnio, Maria também deixava levar-se por loucas esperanças, quando boquiaberta, fitos os olhos em seu homem, ela atenta escutava a narração que lhe fazia dos bois, dos carros, das fazendas, dos escravos, das lavras de seus antepassados. Maria em tudo piamente cria, e como não havia de ser assim, se a pobre caipira acreditava na história da gata borralheira, das três cidras do amor, dos coroados de Roma, enfim em todos esses contos da carochinha, de que hoje ingratos zombamos depois de terem feito as delícias de nossa infância! Com uma fé profunda em todo o misticismo de fadas e duendes, Maria julgava obter a realização de suas esperanças somente por intercessão de algum desses entes misteriosos; muita vez, atenta, ela parava para observar essas extraordinárias figuras que os desvairados ramos das árvores nos apresentam, ora sons lúgubres e angélicos retiniam a seus ouvidos, e ela para, dirige-se para o lugar de onde eles partiam: — oh! sim era o sabiá que carpia seus amores; ora parece-lhe que algum duende transformado em ferrador faz soar a bigorna, de modo que arrepia os ouvidos, chama devagarinho Felisberto para mostrar-lhe o duende, e Felisberto só vê uma araponga, a monótona araponga, que não cessa o canto sem primeiro outra lhe haver respondido.

Muito se falava na aldeia vizinha do casamento de Felisberto e Maria; ninguém sabia a que atribuir tão estranha união, porque a falar a verdade Maria nada tinha de formosa, nem de engraçada, era até, se me permitis uma expressão que nunca empregam os romancistas que descrevem suas heroínas, era feia, solenemente feia, por isso muita gente a supunha feiticeira, atribuindo à magia o amor que Felisberto lhe consagrava. Como quer que seja, — a choupana era o templo da paz e da esperança.

Era uma noite de junho, o granizo sussurrava no sapé como gotas de chuva que resvalam pelas folhas da bananeira, e um ar frio, que enregelava os membros e fazia apetecer a caninha, entrava pelas fendas das mal barreadas paredes, e Maria dispunha no meio da sala uma pequena fogueira feita de gravetos que Juca e Mariquinhas tinham ido buscar ao mato, esfregava as mãos junto do fogo e de vez em quando esvaziava saboreando um copete de caninha. Felisberto acompanhava-a na sua tarefa e um tanto alentado pelos vapores da geribita dava largas às suas esperanças, formando mil castelos no ar, cada qual mais disparatado.

— Ora, disse ele, quando meu avô pensaria que eu, seu único neto legítimo, havia de ser tão infeliz?

— Mas tudo tem fim... o nosso vizinho não era ainda mais pobre do que somos! e hoje é o mais rico fazendeiro destes lugares.

— Sim, mas eu não quero ser garimpeiro.

— Não é por certo das melhores coisas, mas contanto que fiquemos ricos que importa o mais?

Não era sem pensar muito e muito que assim se expressava Maria; ela também desejava, e desejava muito; esse pressentimento de mais lisonjeiro futuro que nos embala em um sonho de ilusões, esse desejo de melhorar de fortuna que de contínuo atormenta, rala o desditoso, essa incerta esperança de que um dia... um dia, e qual será ele? saborearemos o favor da ventura, tudo isso agitava o coração de Maria, todo mistérios. Quantos casos de extraordinária fortuna tinham aparecido, ela os sabia de cor; nada mais sincero havia em seu peito de que uma cega confiança na compaixão de alguma fada amiga, então ela se julgava também abastada, também ditosa.

E o vento zunia por entre as árvores da floresta, Galafre roncava, e Juca e Mariquinhas aproximavam-se um do outro porque mais se aquecessem, e a pouco e pouco as labaredas se extinguiam, e o sono, sorrateiramente, calava pelas pálpebras de Maria e Felisberto. Dormir quando um gênio vela em vossa felicidade! que vos quer fazer ditosos!

Quem era esse estranho que inopinado aparecia na choupana do pobre e que assim lhe falou? Era algum duende amigo ou inimigo dos homens? Não sei, mas o certo é que Maria viu uma delicada e esbelta moça, cujas longas aneladas tranças contrastavam belamente com a deslumbrante alvura de seu rosto e de seus vestidos, trazia na destra uma varinha toda enroscada, varinha misteriosa, de condão; como ela havia entrado é coisa que nunca souberam as comadres da terra, nem de tal nunca rezaram as crônicas.

— Pois então, se sois alguma fada amiga, dizei, — dizei o que pretendeis de nós, perguntou Maria toda atemorizada.

— Oh! quero melhorar vossa sorte, escolhei entre vossos desejos três, três tão somente, e eles serão satisfeitos. Disse e misteriosa desapareceu.

Absorta Maria não sabia o que pensasse; — mas seja verdade ou mentira o que é que custa desejar?

— Pois bem, Felisberto, eu queria ser rainha, ser rica, e que Mariquinhas fizesse um bom casamento.

— Cala-te tola, agora não há mais rainhas, lá o ser rica é alguma coisa, mas olha, de que nos servem cabedais sem saúde... pois eu queria ser rico, possuir aquela fazenda, olha... sim aquela fazenda do capitão-mor, e ter muita saúde.

— E o casamento de Mariquinhas e o Juca, e você não tem vontade de ter um cavalo?

— Ora em sendo ricos, tudo isso teremos, mas lembra-me uma coisa e é que podemos ser ricos, ter saúde e viver pouco.

— Viver pouco! não, essa é boa, então de que serve a riqueza l mais vale pobre vivo que defunto rico.

— Não, pois então pediremos riqueza, saúde e vida, até... até 70 anos.

— É pouco, é pouco, pois se podemos pedir mais... que se peçam pelo menos cento e vinte.

— Mas as lavras. Juca, Mariquinhas! Oh! que maldita fada, podia dar mais ensanchas aos nossos desejos; se ela pode dar três, bem podia ter dado vinte.

— E uma coisa só, Felisberto: não estavam estas brasas tão boas para assar uma linguiça?

Palavras não eram ditas que imediatamente vem por entre o sapé correndo uma coisa, aí vem, aí vem, ei-la mais perto... ti-bá, caiu no meio da fogueira. Que será? era uma linguiça.

— Oh! c'os mil diabos! lambareira de uma figa, tanto deste à taramela que por fim estamos bem avisados; três eram pouco, e agora como há de ser com dois? oh! para vingar-me queria que este penduricalho se te pregasse na ponta do nariz; maldita! — Ai, ai, que mal lhe fiz? gritou Maria levando ambas as mãos ao nariz, para ver se arrancava uma formidável linguiça, que à maneira de crista de peru lhe pendia do nariz, fazendo uma graciosa curva até ao peito.

Arranca, não arranca, qual! a linguiça estava sensível incorporada com ela; puxa para aqui, puxa para ali... nada, não sai.

— Ora mulher, temos ainda uma coisa que pedir, pois bem, desejo que esta linguiça te caia do nariz.

Meu dito, meu feito, imediatamente caiu o penduricalho...

O sol já entrava pelas frestas da janela, Juca vinha entrando com uma bilha d'água do próximo regato. Mariquinhas trazia na cabeça um feixinho de gravetos, Felisberto tinha saído, quando Maria acordou sobressaltada tendo na mão fortemente presa a cauda de Galafre. — Tinha sonhado.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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