(Costumes Brasileiros)
— Maria...
Maria... por que sempre havemos
de ser infelizes? nunca fizemos mal a
ninguém, somos tementes a Deus... todos os domingos vamos ouvir missa à
freguesia, e daqui lá é um queijo... e contudo cada vez mais para trás, não assim?
— Quem sabe! ainda somos moços, e pode muito bem
ser que algum dia...
— Sim, algum dia... e no entanto soframos. Maria
continuou no arranjo de sua casa, direi melhor, de sua miserável choupana,
triste retiro, onde ela vivia com seu marido e seus dois filhinhos, Juca e
Mariquinhas. Era um desses casebres feitos de pau-a-pique, cobertos de sapé que
bordam nossas estradas; um catre feito de guascas entrançadas, sustido por
quatro pequenos esteios fincados no chão, um velho tamborete, duas esteiras de
tábuas, um rústico cabide, e um derrengado bufete eram os trastes de que se
compunha a mobília do interior da choupana. Não esquecerei, para melhor
retratar o painel, de dizer que em um canto da casa rosnava Galafre, o fiel
Galafre, famoso veadeiro, leal, valente, delícias do senhor, no outro jazia uma
lustrosa espingarda de guarda nacional, e no cabide um embrulho de peles de
onça entre as quais se achava o guizo da cascavel, talismã misterioso que cura
de quebranto e serve de antídoto ao veneno da mesma cobra.
Se quereis, amigo leitor, conhecer a fundo quem
era o marido de Maria, dir-vos-eI que era um mineiro por nome Felisberto, alto,
robusto, bem apessoado, descendente de uma família que outrora possuía
riquíssimas lavras, mas cujos cabedais haviam sido esbanjados pelo pai de
Felisberto, perdulário de chapa, que com extraordinária despiedosa largueza
despendeu o que nada lhe havia custado a ganhar. Pobre, sem meios de vida,
viu-se ele obrigado a ser tropeiro. Talvez, leitor fluminense, vós que sabeis
mais do que vai por Londres e Paris, do que de vossa terra, não compreendais à
justa o que vem a ser um tropeiro, pois eu vos explico: — um homem natural do
país que se incumbe de um lote de bestas, que as trata e afaga, que lhes
conhece as bondades e as mazelas, que se faz entendido delas, chamando-as cada
uma por apropriado apelido; o tropeiro não escolhe pouso sem saber se haverá bom
pasto para seus animais; não temendo chuva nem sol, ele se embrenha por essas
estradas que parecem intermináveis, ora suando no meio de um lameiro onde a
Douradinha se afunda até as cangalhas, e a alivia do peso, ora segue a Ruana
pelo despenhadeiro fora a ver se, não podendo salvá-la, ao menos não deixa
perder-se a carga. Polido em extremo, o tropeiro não se encontra convosco sem
tirar o seu chapéu, amigo de seu companheiro, ele não passa por tremedal ou
lamaceiro sem fincar no meio um ramo para que outrem não se veja no mesmo
perigo; franco e sincero o tropeiro ferra vosso cavalo em viagem, guia-o ao
pasto sem levar nada, enfim apesar de todos estes trabalhos e incômodos ele
contenta-se, como um Sparciata, com seu caldo de feijão preto e sua cuia de farinha
de milho. Mas de todos os bons predicados do tropeiro não há como a sua
probidade e honradez; podeis confiar-lhe os objetos do maior valor, e ele
vo-los entregará sem o menor desfalque; também religioso em extremo, não o
vereis passar por diante de uma cruz sem tirar-lhe o chapéu e algumas vezes
enfeitá-la com alguns ramos agrestes. Contudo, apesar de todas estas
qualidades, não brinqueis com ele, porque como é generoso sabe ser vingativo.
Ora, se a isto ajuntardes um desabado Gabriel Milietti, ponche de pano azul,
camisa de algodão por cima de ceroulas do mesmo estofo, faca de cabo e bainha
de prata a cinta, tereis adequada ideia de quem era Felisberto.
Não era tão comum e ordinário o caráter do nosso
tropeiro que não valha a pena dar-vos dele notícia; a recordação das riquezas
de seus avós esparzia sobre seu semblante algumas sombras de tristeza;
comparando o passado com o presente, as faixas de cambraia com as ceroulas de
algodão, Felisberto suspirava; afrontando com a vista extensa a serrania que o
circundava, domínio outrora de seus antepassados, o infeliz ficava absorto em
mil conjeturas para adivinhar como seria possível que de novo a possuísse; ora
supunha que os atuais senhores condoídos de suas misérias talvez o agregassem,
e por fim o deixariam herdeiro em falta de parentes; ora lembrava-se de
comprá-las a força de economias, também às vezes vinha-lhe à ideia esse meio
terrível, a peste que, ceifando toda a gente daquela comarca, o constituísse
senhor das tão suspiradas lavras.
Companheira de infortúnio, Maria também deixava
levar-se por loucas esperanças, quando boquiaberta, fitos os olhos em seu
homem, ela atenta escutava a narração que lhe fazia dos bois, dos carros, das
fazendas, dos escravos, das lavras de seus antepassados. Maria em tudo piamente
cria, e como não havia de ser assim, se a pobre caipira acreditava na história
da gata borralheira, das três cidras do amor, dos coroados de Roma, enfim em
todos esses contos da carochinha, de que hoje ingratos zombamos depois de terem
feito as delícias de nossa infância! Com uma fé profunda em todo o misticismo
de fadas e duendes, Maria julgava obter a realização de suas esperanças somente
por intercessão de algum desses entes misteriosos; muita vez, atenta, ela
parava para observar essas extraordinárias figuras que os desvairados ramos das
árvores nos apresentam, ora sons lúgubres e angélicos retiniam a seus ouvidos,
e ela para, dirige-se para o lugar de onde eles partiam: — oh! sim era o sabiá
que carpia seus amores; ora parece-lhe que algum duende transformado em
ferrador faz soar a bigorna, de modo que arrepia os ouvidos, chama devagarinho
Felisberto para mostrar-lhe o duende, e Felisberto só vê uma araponga, a
monótona araponga, que não cessa o canto sem primeiro outra lhe haver
respondido.
Muito se falava na aldeia vizinha do casamento
de Felisberto e Maria; ninguém sabia a que atribuir tão estranha união, porque
a falar a verdade Maria nada tinha de formosa, nem de engraçada, era até, se me
permitis uma expressão que nunca empregam os romancistas que descrevem suas
heroínas, era feia, solenemente feia, por isso muita gente a supunha
feiticeira, atribuindo à magia o amor que Felisberto lhe consagrava. Como quer
que seja, — a choupana era o templo da paz e da esperança.
Era uma noite de junho, o granizo sussurrava no
sapé como gotas de chuva que resvalam pelas folhas da bananeira, e um ar frio,
que enregelava os membros e fazia apetecer a caninha, entrava pelas fendas das mal barreadas paredes, e Maria
dispunha no meio da sala uma pequena fogueira feita de gravetos que Juca e
Mariquinhas tinham ido buscar ao mato, esfregava as mãos junto do fogo e de vez
em quando esvaziava saboreando um copete de caninha.
Felisberto acompanhava-a na sua tarefa e um tanto alentado pelos vapores da geribita dava largas às suas esperanças,
formando mil castelos no ar, cada qual mais disparatado.
— Ora, disse ele, quando meu avô pensaria que
eu, seu único neto legítimo, havia de ser tão infeliz?
— Mas tudo tem fim... o nosso vizinho não era
ainda mais pobre do que somos! e hoje é o mais rico fazendeiro destes lugares.
— Sim, mas eu não quero ser garimpeiro.
— Não é por certo das melhores coisas, mas
contanto que fiquemos ricos que importa o mais?
Não era sem pensar muito e muito que assim se
expressava Maria; ela também desejava, e desejava muito; esse pressentimento de
mais lisonjeiro futuro que nos embala em um sonho de ilusões, esse desejo de
melhorar de fortuna que de contínuo atormenta, rala o desditoso, essa incerta
esperança de que um dia... um dia, e qual será ele? saborearemos o favor da
ventura, tudo isso agitava o coração de Maria, todo mistérios. Quantos casos de
extraordinária fortuna tinham aparecido, ela os sabia de cor; nada mais sincero
havia em seu peito de que uma cega confiança na compaixão de alguma fada amiga,
então ela se julgava também abastada, também ditosa.
E o vento zunia por entre as árvores da
floresta, Galafre roncava, e Juca e Mariquinhas aproximavam-se um do outro
porque mais se aquecessem, e a pouco e pouco as labaredas se extinguiam, e o
sono, sorrateiramente, calava pelas pálpebras de Maria e Felisberto. Dormir
quando um gênio vela em vossa felicidade! que vos quer fazer ditosos!
Quem era esse estranho que inopinado aparecia na
choupana do pobre e que assim lhe falou? Era algum duende amigo ou inimigo dos
homens? Não sei, mas o certo é que Maria viu uma delicada e esbelta moça, cujas
longas aneladas tranças contrastavam belamente com a deslumbrante alvura de seu
rosto e de seus vestidos, trazia na destra uma varinha toda enroscada, varinha
misteriosa, de condão; como ela havia entrado é coisa que nunca souberam as
comadres da terra, nem de tal nunca rezaram as crônicas.
— Pois então, se sois alguma fada amiga, dizei,
— dizei o que pretendeis de nós, perguntou Maria toda atemorizada.
— Oh! quero melhorar vossa sorte, escolhei entre
vossos desejos três, três tão somente, e eles serão satisfeitos. Disse e
misteriosa desapareceu.
Absorta Maria não sabia o que pensasse; — mas
seja verdade ou mentira o que é que custa desejar?
— Pois bem, Felisberto, eu queria ser rainha,
ser rica, e que Mariquinhas fizesse um bom casamento.
— Cala-te tola, agora não há mais rainhas, lá o
ser rica é alguma coisa, mas olha, de que nos servem cabedais sem saúde... pois
eu queria ser rico, possuir aquela fazenda, olha... sim aquela fazenda do
capitão-mor, e ter muita saúde.
— E o casamento de Mariquinhas e o Juca, e você
não tem vontade de ter um cavalo?
— Ora em sendo ricos, tudo isso teremos, mas
lembra-me uma coisa e é que podemos ser ricos, ter saúde e viver pouco.
— Viver pouco! não, essa é boa, então de que
serve a riqueza l mais vale pobre vivo que defunto rico.
— Não, pois então pediremos riqueza, saúde e
vida, até... até 70 anos.
— É pouco, é pouco, pois se podemos pedir mais...
que se peçam pelo menos cento e vinte.
— Mas as lavras. Juca, Mariquinhas! Oh! que
maldita fada, podia dar mais ensanchas aos nossos desejos; se ela pode dar
três, bem podia ter dado vinte.
— E uma coisa só, Felisberto: não estavam estas
brasas tão boas para assar uma linguiça?
Palavras não eram ditas que imediatamente vem
por entre o sapé correndo uma coisa, aí vem, aí vem, ei-la mais perto... ti-bá,
caiu no meio da fogueira. Que será? era uma linguiça.
— Oh! c'os mil diabos! lambareira de uma figa,
tanto deste à taramela que por fim estamos bem avisados; três eram pouco, e
agora como há de ser com dois? oh! para vingar-me queria que este penduricalho
se te pregasse na ponta do nariz; maldita! — Ai, ai, que mal lhe fiz? gritou
Maria levando ambas as mãos ao nariz, para ver se arrancava uma formidável linguiça,
que à maneira de crista de peru lhe pendia do nariz, fazendo uma graciosa curva
até ao peito.
Arranca, não arranca, qual! a linguiça estava
sensível incorporada com ela; puxa para aqui, puxa para ali... nada, não sai.
— Ora mulher, temos ainda uma coisa que pedir,
pois bem, desejo que esta linguiça te caia do nariz.
Meu dito, meu feito, imediatamente caiu o
penduricalho...
O sol já entrava pelas frestas da janela, Juca
vinha entrando com uma bilha d'água do próximo regato. Mariquinhas trazia na
cabeça um feixinho de gravetos, Felisberto tinha saído, quando Maria acordou
sobressaltada tendo na mão fortemente presa a cauda de Galafre. — Tinha
sonhado.
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...