(Ao Senhor Joaquim de Araújo)
Ai a gente que o doutor tinha naquele dia a jantar!... Primeiro a fidalga
de Arnozela, gorda, cinquenta anos, cor de maçã camoesa, largas risadas
cantantes; depois o abade — o diabo do abade! — comilão insaciável, um bucho que
eu sei lá!... — e que já lhe tinha dito na véspera:
— Ora eu sempre quero ver esse jantar!...
E ainda, com a mãe — a morgadinha dos Trigais,
tão fresca, tão boa rapariga, tão amiga dele!...
Por isso o doutor dizia à criada:
— Ai Gertrudinhas, eu quero isto como um brinco!
Como um brinco, filha! O que mais o afligia, porém, eram os pêssegos...
— Ora, como o diabo hei de eu arranjar isto, não
fazem favor de me dizer?...
Três frutos magníficos aqueles! Três pêssegos
enormes, alourados, penugentos!...
A árvore nascia ao meio do quintal, entre couves
galegas de folhas verdes, rendilhadas, e duma margem de hortelã pimenta,
cortada por um fiozinho de água, que saía do tanque e atravessava a horta,
embalando-a com mil murmúrios. Na primavera tinham-lhe nascido três florinhas
delicadas, duma cor de rosa muito esbatida e imediatamente o doutor a rodeara
de cuidados, cavando a terra em redor, matando sem piedade o besouro mais
inocente que se atrevesse a passear naquele sítio, aquecendo-se ao sol do bom
Deus.
Que eu nunca vi velhote mais contente! Uma
alegria santa esfuziando em risadas; bebendo sempre pingas dum vinho velho que
possuía arrecadado no fundo da adega.
Setenta anos saudáveis e alegres. Gostava de
contar histórias galantes...
O Outono corria lindo. Os dias amanheciam azuis,
límpidos, serenos, aquecidos por um sol temperado que amadurecia lentamente a
fruta pelas árvores — e o doutor espreitava a todos os momentos a fruteira,
olhava com admiração os pêssegos enormes, magníficos que a luz trespassando-os
fazia de um ouro soberbo...
À noite, depois da regalada ceia, enfiava-se na
cama, satisfeito com a frescura do linho dos seus lençóis, apagava a luz,
atabafava-se bem e punha-se a discutir com a sua própria pessoa, para conciliar
o sono, o caso grave e interessante de se deveria ou não convidar para o jantar
em que se comeriam os pêssegos o seu excelente amigo abade de Arnozela.
— Nada! E se ele come a fruta toda?
E revolvia-se na cama aflito com aquela
lembrança. Mas logo se recordava com alegria das excelentes histórias e
chalaças que o seu amigo para o regalo de ambos tinha por costume contar à
sobremesa.
— É o diabo aquele homem! É o diabo!
E ria-se com vontade à simples recordação
daquelas pilhérias tão ricas, daqueles casos galantes sobre que versavam de
ordinário as palestras do jantar.
— Mas se o homem come os pêssegos? Com um bucho
como o dele!... — perguntava bocejando, com o sono um bocadinho espertado.
— Amanhã resolverei.
Mas os pêssegos é que não podiam esperar muito:
iam dia para dia amadurecendo mais; tornavam-se alourados, enormes, e as
manchas vermelhas pareciam à luz do sol três grandes nódoas de sangue.
— E amanhã! Convido o abade, ponho dois pêssegos
na mesa para que ele não possa comer senão um, e o terceiro guardo-o para mim
só.
E exclamava, olhando os frutos já maduros,
excelentes, parecendo prestes a rebentar muito cheios de sumo.
— Que ricos!
A cozinha tinha um aspecto alegre e confortável
com a sua grande chaminé onde se defumavam os paios do Alentejo e os presuntos
saborosos, e fazia gosto ver a ordem, a simetria, o modo porque a Gertrudes
dependurava os grandes tachos de cobre reluzente, dispunha as caçoilas
vidradas, e encastelava a um canto as assadeiras enormes, a contrastarem com a
verdura dos louros.
Naquele dia, porém, tudo estava fora dos seus
lugares, e a velhota, inquieta, formigando, ralhava com a criada, provava o
arroz muito lourinho e levemente tostado por cima, dispunha ao redor do lombo
de porco pequeninas rodelas de limão, enfeitava com ramos de salsa a carne ensanguentada.
— Saia daqui, criatura! A cozinha fez-se para as
mulheres!
E empurrava familiarmente o doutor que provava
como entendido um molho já preparado.
Bom, bom... Eu vou até o quintal.... Olhe: dê cá
esse prato de louça da Índia para trazer os pêssegos.
E ia a sair contente quando a criada lhe
perguntou:
— Já sabe
que vieram uns noivos passar uns dias à aldeia?... Estão em casa da D.
Genoveva.
— Uns
noivos! Olá!...
E, assaltado de repente por uma ideia brejeira,
foi pulando às risadas pelo quintal adiante.
— Uns noivos!... Ih! Ih!...
O dia estava lindíssimo: perfumado pelas flores
silvestres, dourado pelo sol que punha cintilações de cobre antigo na folhagem
verde das árvores; num campo fronteiro duas vacas pastavam pachorrentas, e o
quintal, com o pomar cuidadosamente tratado e a água brilhando como um espelho
ao sol, tinha um aspecto encantador.
— Devem estar bons! Murmurou.
E seguiu pensando na beleza, no tamanho, no
aroma daqueles frutos sem igual.
— Até apetece comê-los!
Abriu a navalha e dirigiu-se radiante para a
árvore, com um sorriso de satisfação nos lábios vermelhos.
— Vamos a isto!
Mas de repente estacou, a fisionomia
transtornada, deixou cair o prato de finíssima louça, agitou os braços num
desespero, e estendeu o punho, exclamando num rugido.
— Ladrões!
Nem um! Nem um só dos pêssegos restava na
árvore.
Caíram-lhe silenciosas as lágrimas pelas faces
afogueadas, e, aos soluços, aos soluços, deixou-se cair sobre um banco de pedra
que ali havia.
“Tinha-lhes dedicado todos os seus cuidados,
toda a sua ternura! Na Primavera, depois de lhe terem nascido as florinhas,
quantas aflições não tivera por causa delas? Quantas vezes, altas horas da
noite, não acordara estremunhado, julgando ouvir o estalejar da saraiva nas
vidraças?... E para quê todo aquele trabalho, todos aqueles incômodos?...”
Mas uma risada fresca, vibrante, cristalina,
soou do lado do campo.
As lágrimas secaram-se-lhe, levantou-se dum pulo, e vagarosamente,
arrastando-se cheio de
precauções, aproximou-se da sebe de trepadeiras
em flor, que serviam de divisão, e olhou...
— Os noivos!
Efetivamente, sentados na relva à sombra dum
carvalho, os noivos acabavam de comer o último pêssego, e pelo chão rolavam
ainda os caroços muito vermelhos, em sangue, da fruta que tinham roubado.
Então o doutor, cheio de despeito, desfazendo
entre as mãos trêmulas as flores da trepadeira a que se encostava, berrou,
pulando de raiva:
— Ladrões! Ladrões!
E, na janela da sala do jantar, o abade, que
tinha chegado naquele momento, gritava, rindo às gargalhadas: Ó doutor! Ó malandro!
Então vamos ou não vamos a esse jantar!
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Raul Germano Brandão (1867-1930)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
Raul Germano Brandão (1867-1930)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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