– Que pena,
vovó, exclamou Narizinho, que essa desgraça viesse estragar um tempo tão
bonito.
– A peste
não foi nada, minha filha, apesar da grande perda que causou com a morte de
Péricles. Muito pior do que a peste foi o que veio depois...
– Será
possível que haja alguma coisa pior que a peste? admirou-se Pedrinho.
– Há, sim,
meu filho. A Guerra é cem vezes pior, sobretudo a guerra civil, isto é, guerra
dentro de casa, entre filhos do mesmo país. Pois logo que o horror da peste
passou, os horrores da guerra vieram estragar a linda Grécia daquele tempo.
– Conte!
conte! pediram os meninos – e dona Benta contou.
– A causa da
desgraça foi o ciúme que depois da vitória sobre os persas, Atenas começou a
inspirar. Os espartanos tinham um grande orgulho da superioridade dos seus
soldados, que realmente eram os primeiros do mundo. Atenas, que também tinha
excelentes soldados, depois da grande vitória da sua esquadra em Salamina
ficou, sem querer, mais do que
Esparta, pois possuía uma esquadra poderosa. A bela reconstrução de Atenas
feita por Péricles e o florescimento de todas as artes não incomodavam Esparta,
porque os espartanos não ligavam grande importância à cultura. Mas a esquadra
ateniense incomodava. Esparta ficava no interior e por isso não podia ter
esquadra, e como não podia ter esquadra não queria que Atenas a tivesse.
Considerava desaforo. Daí nasceu a guerra.
– Mas não
eram um mesmo país, Esparta e Atenas?
– Eram e não
eram. Ambas faziam parte da Grécia, mas cada qual se governava como queria.
Esparta estava situada num pedaço da Grécia chamado Pe-lo-po-ne-so, e por isso
essa terrível luta entrou para a História com o nome de Guerra do Peloponeso. E
sabem quanto tempo durou? Vinte e sete anos!
– Que
horror, vovó! fez Narizinho. Vinte e sete anos! Imaginem...
– Foi uma
luta horrorosa, com vantagem ora para este lado, ora para aquele, mas Esparta,
que quase sempre ficava de cima, acabou tomando a cidade de Atenas. Depois
disto entrou na briga outra cidade grega.
– Tebas, a
qual conseguiu o milagre de vencer a invencível Esparta. Os espartanos ficaram
muito admirados de ver forças inimigas em seu território, coisa que durante
cinco séculos jamais acontecera.
Mais tarde,
quando for tempo de ler uma história do mundo das grandes, vocês verão tudo
quando sucedeu nesses vinte e sete anos de luta. Por agora basta que saibam que
a Guerra do Peloponeso enfraqueceu e arruinou quase todas as cidades gregas,
pondo fim da importância da Grécia no mundo.
Durante esse
tempo viveu em Atenas um grande filósofo de nome Sócrates, que considerado o
melhor e mais sábio homem que a humanidade produziu. Sócrates andava pela
cidade ensinando os moços a pensar; mas em vez de ensinar como outros
filósofos, dizendo isto é assim ou assado, empregava outro sistema – fazia
perguntas e ia indo até que por si mesmo o discípulo achasse a resposta exata.
A esse sistema ficou ligado o seu nome. Chama-se método socrático.
Sócrates era
muito feio; careca e de nariz arrebitado. Mas apesar de serem os atenienses
grandes amigos da beleza, todos gostavam dele, porque se não possuía a beleza
física tinha em compensação todas as belezas morais – e não há belezas que
valham estas.
Sócrates era
casado com Xantipa, uma verdadeira jararaca. Xantipa jamais compreendeu o
marido, ao qual vivia xingando de vadio, e indolente, de traste inútil. "Este
diabo leva a falar, a falar o tempo todo e nada de aparecer aqui com dinheiro"
– devia ser a xingação diária dessa senhora. Certa vez ela o descompôs com
tamanha fúria que Sócrates achou prudente fazer uma retirada estratégica. Assim
que ia saindo, Xantipa jogou sobre ele um balde d'água. O grande sábio apenas
murmurou: "depois da trovoada vem a chuva" – e nada mais.
– Ah, se
fosse comigo! exclamou Pedrinho, arregaçando as mangas.
– Batia-lhe
com um pau, não é verdade? disse dona Benta. Pois seria um ato mui vulgar e reles.
Não há brutamonte na roça que não faça o mesmo. Justamente porque em vez de
bater em Xantipa, Sócrates respondeu de maneira tão fi-lo-só-fi-ca, é que
estamos a falar nele. Procure nunca ser vulgar, Pedrinho, que você acertará.
Sócrates não
acreditava nos deuses gregos, embora nada dissesse em público, porque os gregos
não admitiam que ninguém brincasse ou descresse de tais deuses. Mas um homem
com a cabeça de Sócrates não podia tomar a sério o senhor Júpiter nem a senhora
Vênus, e por isso, sem falar mal deles, também não falava bem. Calava-se. Era
como se não existissem.
Foi o
bastante para incorrer nas iras do povo, sendo denunciado como inimigo dos
deuses e corruptor da mocidade. Resultado: condenação à morte.
– Que
horror, vovó! Já estou ficando com ódio nos gregos. Por uma coisinha a toa
mataram Fídias, que era o maior escultor; agora vão matar Sócrates, o melhor e
o mais sábio dos homens! Isso é demais. E com certeza o enforcaram...
– Felizmente
não chegaram a essa monstruosa brutalidade. Intimaram-no a beber uma taça de
chá de cicuta, planta venenosíssima. Sócrates obedeceu – e morreu a mais bela
das mortes, rodeado de seus queridos discípulos em lágrimas. Tinha então
setenta anos. A morte de Sócrates é uma das cenas mais altas do drama da
humanidade.
Emília
declarou que ia plantar cicuta na horta.
– Para quê?
Perguntou Narizinho.
– Para não ser
preciso enforcar o visconde, se alguma dia ele for condenado à morte...
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José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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