17 de JANEIRO DE 1847
Teatro de São Francisco
E era um dia... Não, não comecemos em tom de história da carochinha,
porque o fato é verdadeiro como a verdade, épico como a guerra de Tróia,
pindárico como um triunfo nos jogos olímpicos; falemos pois com a seriedade que
o caso merece. Se não nos podemos guindar à lírica sublimidade ou à grandíloqua
eminência da epopeia, fiquemos na rasteira e singela narração da verdade... mas
como, se a verdade aqui parece peta?... Como, se a verdade aqui para não
provocar indignação, carece de ser auxiliada provocando bom frouxo de riso?
E pois era um dia, e na capital de um vasto império, liberal e
ilustrado, que de há muitos anos goza da vantagem do regime representativo e da
liberdade, isto é, da vantagem de ler, quatro ou seis meses por ano, discursos
demostênicos, cotidianamente discussões e novidades jornalísticas, e de vez em
quando o seu trecho de interessante, moralíssima e espirituosa novela; nessa
capital, onde, se é solta a língua dos palestrantes, não menos soltas são as
penas dos jornalistas de profissão ou dos jornalistas acidentais; nesta capital
enfim, que se chama o Rio de Janeiro, havia uma associação mai s ou menos
literária, composta de... todo o mundo e de mais alguns literatos de polpa, com
o fim de fecundar o solo dramático brasileiro, e fazer crescer e medrar a arte
teatral no império. A essa sociedade o governo, protetor das
letras, querendo dar um sinal de sua atenção e fazer-lhe honra, cometeu a
atribuição policial da censura das composições dramáticas, para vedar a
representação de peças imorais, de declamações que solapassem as bases da
sociedade civil, religiosa ou política. Querem alguns que o governo não podia
fazer isso... Deixemos porém esses chicanistas lá com as suas argumentações: a
prova de que o podia é que o fez; fê-lo já lá vão seus bons cinco anos, e
fá-lo, e todos se lhe sujeitam; ergo...
Revestida a tal associação do direito de censura, julgareis sem dúvida
que compreendeu ela a importância da atribuição que lhe era conferida, e que
tratou de corresponder à expectativa do governo, que lhe conferia a missão de
vigilante salvadora da moralidade pública nos teatros? Pois não! Era de crer
que a sociedade nomeasse uma comissão do seu seio, composta dos seus membros
mai s hábeis para exercerem essa censura sobre todas as peças, com igual
critério, igual espírito de acertar... Em vez disso, eis aí como se procedeu: o
presidente da associação reservou-se o direito de regular esse trabalho, e na lista
inúmera dos sócios escolhe, não sabemos se por capricho ou por escala, dois a
quem remete a composição dramática para ser revista. Um após outro a examina,
cada um dá a sua tenção escrita, na
forma dos antigos tribunais de justiça, sem combinar com a opinião do colega, sem saber qual essa opinião nem
qual esse colega. Afinal o presidente toma as duas tenções: se estão conformes,
lavra a decisão que delas se conclui; senão, examina ele a composição dramática
e adota um dos dois pareceres, o que mais lhe apraz.
Desse modo extravagante de exercer-se a censura dramática seguem-se
irregularidades esquisitíssimas: aqui um censor mais severo repreende que em
uma comédia se dê um beijo. – Um beijo em cena! Exclama indignado, nada de
beijos!
...Cela
fait venir de coupables pensées,
especialmente se a atriz for bonita e moça. Outro c ensor, porém, em
outra peça, outro censor menos erótico ou talvez
...moins
tendre à la tentation,
Passa pelo beijo como pela coisa mais comum deste mundo e sem lhe fazer
o menor reparo. Daí resulta que temos às vezes peças em que contra a vontade do
autor primitivo, os atores jejuam de beijos, outras em que os podem dar e levar
a fartarem-se.
A qualidade mais distinta dos nobres censores é um zelo contra o maior e
os pecadinhos que ele faz cometer, é um fervor santo pela honestidade do
casamento, é uma guerra sagrada contra certos chistes menos discretos;
qualidades nimiamente respeitáveis, que poderão em breve dar cabo de todas
essas composições graciosas que abundam no teatro moderno, de todas essas
composições que despertam o riso, ainda dos mais preocupados; mas que, em
compensação, tomando ao pé da letra o extravagante axioma “o teatro é a escola
dos costumes”, dar-nos-ão em breve representações teatrais tão divertidas como
aí uma aula de lógica em dia em que se defendem conclusões... Se com isso
ganhasse a moralidade pública!... Mas esses senhores parecem querer nos fazer
voltar ao tempo em que os pais não mandavam ensinar a ler e a escrever às
filhas para que não escrevessem cartinhas de namoro nem lessem as gracinhas
escritas pelos namorados; belos tempos em que o casamento quase que não
existia, em que o concubinato era geral. Nesses tempos, as moças nem podiam
chegar à janela senão pelas frestas de uma rótula que devi a resguardar sua
beleza dos indiscretos olhares do homem, mas que a nada obstavam, e até
aguçavam o desejo pelo espírito de contradição que ditou aos romanos o seu vetita placent, que antes deles levou a
primeira das Evas a comer a fruta do bem e do mal, e que ditou às Evazinhas
desse belo tempo a que nos referimos o enérgico protesto:
Minha
mãe não quê que eu fale a Pedro;
Eu
a Pedro hei-de falá,
Se
não fô pela p orta da rua,
Há
de sê pela douintáq.
Embalde porém tentem os censores puxar para trás o carro da civilização
e do progresso; poderão, sim, contribuir para a morte e extinção do teatro em
língua portuguesa em nossa terra mas não nos hão de levar a esses belos tempos
de hipocrisia e de afetação de moralidade que tão longe estão da verdadeira
moralidade.
Nunca porém os exímios censores se mostraram mais chibantes do que por
ocasião da ópera francesa – Les Diamants
de la Couronne. Aí inflamou-os, não o zelo pelos bons costumes, não o ódio
ao amor e a tudo quanto se lhe s segue; porém o zelo ainda mais patriótico e
sublimado, um zelo eminente pela monarquia e pela dinastia imperante.
A fábula da peça, assaz conhecida hoje dos nossos leitores, dá uma
rainha de Portugal, que, em vésperas de sua maioridade, vendo exaustos os
cofres públicos pelas habilidades do conselho de regência, ajusta-se com um
chefe de bandidos, contrabandistas e moedeiros falsos, que tem muito jeito para
fabricar brilhantes, para que lhe substitua por diamantes falsos todos os
diamantes da coroa, e que lhe mande vender pelas praças da Europa os diamantes
verdadeiros; assim aproveita essas inutilizadas riquezas em bem de seus
súditos, e habilita-se para governar sem empréstimos e sem novos impostos.
Ora, com isso embirraram os censores. Uma rainha e uma ilustre bisavó de
Sua Majestade Imperial, cometendo uma ação tão indigna, entendendo-se com gente
dessa laia, indo ter com eles, sob um disfarce, pra presidir aos trabalhos que
lhes encomendou, e, embora lhes vedasse nesse ínterim o contrabando e o roubo,
protegendo-os, dando-lhes desejo de mudar de vida, e fazendo-os sair do reino
em vez de entregá-los à justiça!... Não, não, não; isso não se há de
representar no Rio de Janeiro, não: porque isso é abater a régia majestade!
Embalde se lhes dizia: – Senhores da censura, olhai que é uma peça de
música e em língua estrangeira, e que nessas peças o merecimento dramático
desaparece sob o merecimento musical; apenas sobressai por um ou outro dito
mais ou menos agudo. – Não! respondiam os censores. – Olhai, senhores, que essa
peça foi representada e aplaudida por toda a parte, até mesmo em Portugal, sem
que a português algum ocorresse a mais pequena lembrança análoga a essa
vossa... – Não! respondiam os censores. – Olhai que essa ação mesma que pratica
a rainha da ópera é toda fábula,e que todos a veem e aceitam como fábula para
composição da ópera. – Não! respondiam os censores. – Olhai, senhores, que essa
ação atribuída à rainha poderá ser um tanto indiscreta e essencialmente
inverossímil, mas ao menos honrosa; uma rainha que sacrifica seus brilhantes,
que se resigna a adornar-se com vidrilhos para não recorrer a impostos e a
empréstimos, isso é até de ótimo exemplo, é até muito consolador para os povos,
muito honroso para Maria I, se o houvesse ela feito. – Não, não, não! Temos
dito, repetiam os censores.
Em vista de tão firme propósito, a indignação pública despertou-se, e os
amantes da cena lírica francesa já amaldiçoavam a absurda severidade que lhes
privava de uma das melhores composições do repertório francês... Súbito porém
se lhes anuncia: — Os censores enfim aplacaram-se, disseram: Sim... Os Diamantes da Coroa têm de ir
brevemente à cena. Então, como foi isso? como se fez o milagre? – Oh!
fizeram-se mudanças extraordinárias, cortes profundos! – Mau! Diga-nos porém,
com a prosa de Scribe e com algum dos seus versos, cortou-se modificou-se
alguma coisa da música de Auber? Houve mão tão sacrílega que nem respeitasse a
harmonia? – Não; a música está intacta. – Então paciência, iremos ver.
E em breve foi a peça levada ao palco cênico... Então pôde-se admirar os
escrúpulos dos censores. Se não fosse a superioridade da composição de Auber
que surriadas não teriam desagravado o bom povo do Rio de Janeiro do insulto
literário que lhe havia sido feito pelos censores! A peça se passa na
Dinamarca; ainda bem. Não é a coroa da Dinamarca das mais afamadas pela sua
riqueza em brilhantes; mas enfim vá essa concessão. Em correspondência a essa
mudança, fizeram-se mudanças idênticas nos nomes das personagens; tudo passou a
dinamarquesar-se. Santa Cruz passou a
ser Turvik, Pedro passou a ser Peters, e assim por diante. Feita essa transformação, Jesus, meu Deus! que espantoso
milagre se operou! A ópera cessou de ser antimonárquica, antidinástica; os
espectadores puderam, a paz e salvo, e com todo o sossego de suas consciências,
divertir-se, dar palmas, passarem algumas noites cheias no teatro de São
Francisco.
Nesse dinamarquesamento da
peça a atenção não podia ser tão completa que não deixasse alguma coisa
aportuguesada, nem a memória dos atores tão fiel que tivesse sempre pronta a
substituição: assim, se Santa Cruz chamou-se Turvik, um Sebastião sempre lá
ficou para dizer que ação da peça era portuguesa; se dera m à coroa de Dinamarca
um diamante de grande valor chamado – a brasileira – em compensação deram-lhe a
inquisição, que nunca fez em kopenhagen arder as suas fogueiras; se lhe
outorgaram para educação das meninas um convento da Trindade (a um país
protestante), também lhe deram soldados que ajoelham diante de uma procissão de
penitentes; e enfim, se, mentindo à geografia como a tudo o mais, deram-lhe
serras importantes, deixaram-lhe moedas espanholas na circulação, como sejam os
maravedis. Ora pois, descansem os manes de Maria I. No céu, onde para sem
dúvida a sua alma bem-aventurada, admire o zelo que ainda há nos censores
brasileiros pela sua glória, e se, na sua Lisboa, a insultaram com a
representação dos Diamantes da Coroa, quais os escreveu Scribe, veja ela que no
Brasil antes quiseram que fosse insultado o bom senso com disparates de toda a
casta, do que se dissesse que para governar sem impostos nem empréstimos havia
ela na sua minoridade (embora o seu reinado não houvesse começado por uma
minoridade) tomado algumas vezes o nome de Catalina e o trajar de cigana para
vir cantar música divina... em um tablado.
E pois, agradecida a tanto zelo, volva, lá do céu,os seus benignos olhos
para os devotos censores, e em paga implore ao Altíssimo que lhes dê... que
lhes dê... dois dedos de juízo... Amém!
---
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)
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