Onde
as garças são mais brancas
Depois do êxtase produzido pela música
e dos momentos de alegria espiritual provocados pela meditação, é possível
poder-se afirmar que nada consegue evocar um pensamento de paz e harmonia,
quanto aquele que nos proporciona um bando de garças em revoada. Oh! Delírios
de brancura! É uma sinfonia de alvas irisações resvalando pelo mistério das
canduras! É todo um poema latescente de penas mimosas e asas estouvadas que se
agitam nervosamente na freima irregular dos adejos, pela região cariciosa do
azul, como se essas gentis filhas das águas e das nuvens, ufanas da própria
maravilha, investidas do direito de se igualarem às brancuras das camélias, na
ânsia de espalhar a beleza, levassem nos seus voos para o céu, todos os sonhos
de pureza da terra.
E ante as suas asas que se arqueiam e
recurvam pelo espaço em fora, tem-se a visão das coisas alcandoradas que se
confundem no horizonte do sublime. Isto quando se tem a ventura máxima de ver
os grandiosos bandos de garças de Mato Grosso, onde esses sutis voláteis, são
dotados de tal brancura, que até parecem abusar do direito de ser brancos;
direito esse que nos induz a crer que as garças nestas plagas, são, de fato,
mais brancas do que as suas irmãs de brancura de outras regiões e paragens.
Nas margens dos rios São Lourenço e
Cuiabá, além da fértil colônia dos jacarés e da prolífera família das capivaras
que calculadamente assentaram o firme propósito de não saírem mais da orla
hospitaleira desses rios, nem mesmo à bala, há, depois das garças, que
constituem uma espécie de alma das águas, atuando como um domínio branco,
dilatado até as raias de uma tirania suave, feita de asas frufrulejantes,
também um formidável número de outras aves, aí agremiadas, entregues à disputa
reiterada dos ariscos e reverberantes peixes. E essa agremiação matizada e
barulhenta, que se açula ao encalço da presa, entre gritos, grasnados, e cicios
siflantes, é composta de teimosos biguás, insolentes baguaris, calculistas
anhumas, irrequietas arranquãs, espertos tuiuiús, ariscos colhereiros rosados,
gaivotas ingênuas, solertes mutuns e de uma infinita variedade de patos que,
juntamente com os persistentes martins pescadores e outras aves aquáticas, de
menor importância, vivem em pé de guerra contra os pobres peixinhos que caem na
patetice de vir à tona da água.
E a lida pela existência nessas
frescas regiões, segue a sua marcha sinuosa, em que os mais fortes e bem
aparelhados, conseguem vencer galhardamente, nessa eterna luta dos aptos contra
os ineptos.
E todas essas aves munidas de
violentas garras e bicos vorazes, pescam nos rios Cuiabá e São Lourenço, em
todas as suas horas de fome, e depois vão sestear à sombra das árvores
frondosas dos vastos pantanais que se debruçam sobre a caudal desses dois rios.
O pantanal, nas margens dos rios
Cuiabá, S. Lourenço e Paraguai, é uma espécie de grandiosa floresta lacustre,
formada pelas águas que em determinadas épocas do ano, avolumam-se tanto, que
entendem de invadir as sombras das matas. É a tragédia das enchentes, em que
essa região denominada pantanal, numa extensão calculadamente de uns oitocentos
quilômetros, toma, assim, o aspecto de um oceano improvisado. É um espetáculo
surpreendente que evoca, em miniatura, uma contrafação, uma paródia daquele
lendário dilúvio que nos relata a Bíblia. E durante os meses em que as águas,
abusando do direito de correr, se alastram pelo seio intérmino da floresta
secular, causando aflições aos que vivem por essas localidades e alegria aos
que navegam pelos rios, livres do tormento dos baixios, o pantanal é um mar
pontilhado de árvores que protestam contra o abuso dessas periódicas invasões.
Porém, esse protesto não tem produzido efeito nenhum, porque as árvores
aparentam a resignada atitude de quem teve, por força das circunstâncias, de
adaptar-se ao direito do mais forte. Fenômeno paradoxal! O mais forte, em vez
de ser a floresta com o seu vigor e espessura, é justamente a água, com toda a
sua moleza e transparência.
Depois de um longo período de
incursões pelo domínio sombrio das matas, as águas vão lentamente procurando o
leito dos rios. Mas, o pantanal, pelas irregularidades do seu terreno, parece
que aprisiona, para as futuras sedes das suas jornadas de seca, uma certa
quantidade de água que se transforma em lago, lago esse que por sua vez também
se constitui em viveiros de garças. E o pantanal, com seus infinitos lagos de
águas vítreas, alguns das regiões arenosas, e de águas turvas dos lugares de
terras que se transformam em lamaçais periódicos devido à periódica visita das
águas, é uma vasta canaã de aves aquáticas de todos os tamanhos e feitios e é
também a charneca da promissão das aluviões de garças, que, debruçadas sobre o
espelho silencioso dos lagos, parecem florações maravilhosas, brotadas do reino
das alvuras quando paradas a debruar a margem dessas águas aprisionadas, de
marcos brancos como essência de neve. E quando cruzam a superfície dos lagos,
parecem flocos de algodão, caprichosamente triangulados, dotados de vibração
vital. E surpreendendo-as nos mistérios seios da região dos banhados, ora em
atitudes hieráticas, ora tatalando as asas, alongando o simpático pescoço e
distendendo as magríssimas pernas, parecem-nos muito mais brancas, como de
costume o são outras garças. São como que um prolongamento do espírito bom das
águas, que, dessa forma se penitenciam dos momentos negros e sinistros que
infundem a essa zona, transformando-a em pantanal. E essa penitência, como uma
desforra dos males causados, está toda ela concentrada na brancura das garças
que representam, assim, o arrependimento das águas perante o espírito da
floresta.
Oh! Como são lindas as garças do
pantanal de Mato Grosso! E como se tornam encantadoras as mulheres quando
trazem, na cabeça, ao lado de um pensamento cor de rosa de candura e beleza,
uma aigrette tremulante e espiritual,
arrancada da asa doida de uma daquelas garças.
Oh! Sonhos de elegância! Oh! Visões de
luxo!
Vendo a maravilha sem par das garças
do pantanal, é que se pode avaliar o quanto as mulheres devem amar essas aves
que vivem unicamente para criar penas que toucam, garridecem e enfeitiçam as
cabeças femininas!
Deus, ao povoar o pantanal de garças,
é possível que tivesse fixa na lembrança, a ideia de proteger com a graça e
homenagear com a bondade, as representantes máximas de sua beleza na terra — as
mulheres!
Sim, Deus nunca se esquece das
mulheres.
Rio
Cuiabá, 11 de Outubro de 1926.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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