O
voto livre
Fora
assistir ao comício.
Tinham-lhe
dito que valia a pena, e como nunca assistira a espetáculos daquela natureza,
abalou de cambulhada com outros, como para uma romaria. Esperava se gente de fora,
senhores de muita nomeada, figurões de muita fama em toda a redondeza do país.
Pouco mais ou menos, pensava ele, havia de ser uma coisa assim como as
Endoenças, com uns poucos de pregadores. Habituado a nada entender de sermões,
feitos geralmente num português pior que todos os latins, lá lhe parecia que
outro tanto havia de perceber dos discursos.
Tratava-se
das eleições, ouvira ele dizer na taberna, pela manhã, quando fora matar o
bicho. Provavelmente iam obrigá-lo a dar o voto a quem não tinha direito a ele,
e então era pela certa que lhe aumentariam os impostos, que lhe encoimariam os
três bacoritos que trazia pastando em terra alheia, e talvez mesmo ficasse sem
a courela, ao pé do rio, ou lhe aumentassem a renda fora de todas as medidas.
Ainda
deu uns passos para trás, com uma desculpa qualquer — vou ali e já venho — resolvido
a não sacrificar a uma curiosidade de palerma a felicidade inteira de seus
dias.
Bem
lhe dissera a mulher, a não querer que ele fosse, que se deixasse de asneiras,
que em ele não tendo de comer, ninguém lho daria.
—
Diabo viu, sermões num quintal.
E
ele tinha um grande respeito pela sua Inácia, criatura de muito bom senso, toda
prática, incapaz de se mover por cantigas.
Mas
considerou que era uma cobardia fugir, os outros todos, nas condições dele,
continuando a sua jornada, saltando e rindo na mais saudável despreocupação do
mundo.
Em
três saltos apanhou os camaradas, e lá foram todos, bando alegre de
trabalhadores em folga, a ver o que seria aquilo.
Armara-se
um camarote, como para a música, nas touradas de aldeia, e em cima do camarote
via-se uma pequena mesa de quatro pés, alta e comprida. Uma garrafa de vidro,
com água; um copo, também de vidro, ao pé da garrafa; um tinteiro de folha
prateada; um areeiro à moda antiga; uma folha de papel azul, riscado; um lápis
muito aparadinho, e era tudo quanto sobre a mesa havia.
Muito
depois da hora marcada para começar a função chegaram os senhores de fora,
acompanhados das pessoas mais importantes da terra, as que tinham fama de serem
republicanas, e disso não faziam segredo. A multidão acolheu-os com vivas,
muitos e calorosos vivas, agitando-se chapéus no ar.
O
primeiro orador que usou da palavra, já entrado em idade, disse que era preciso
fazer a República, porque a Monarquia, incorrigível nos seus desmandos e nos
seus crimes, punha em risco a independência nacional. O que se lhe seguiu, ainda
novo, de gaforina ao vento, voz de estentor, áspera e sem modulação, acusou o
Regime de todos os embaraços da vida nacional, sem Exército e sem Marinha, sem
estradas e sem escolas, o império ultramarino em risco de perder-se, o Tesouro
de cada vez mais pobre, a dívida pública de cada vez maior, a Liberdade a
sofrer restrições todos os dias e a Reação a ganhar terreno a cada hora. A
multidão aplaudia, mas cada um dos espectadores, gente rústica e analfabeta,
tinha o ar, entre curioso e simplório, de perguntar ao vizinho mais próximo — o
que foi que ele disse? Verificava agora, o nosso homem, o bem fundado das suas
apreensões, quando se dispunha a não assistir ao comício, bocarejando-lhe que
perceberia tanto dos discursos como percebia dos sermões, e dos sermões,
geralmente num português pior que todos os latins, não percebia patavina.
Muito
desapontado, muito aborrecido, dispôs-se a furar a mole imensa no meio da qual
se encontrava, pedindo licença a uns, metendo os cotovelos ao peito de outros
para abrir caminho. Mas eis que a palavra é dada a um orador que lhe faz boa
impressão, e que logo às primeiras palavras o empolgou, a dizer coisas que o
interessavam e que sem esforço ele entendia.
—
O voto, cidadãos, é livre, porque é a expressão da consciência individual. É uma
infâmia sem nome obrigar o eleitor a votar por este ou por aquele, e sem a prática
dessa infâmia, a que urge pôr termo, a República sairia da boca das urnas em
vez de sair da boca das espingardas. Experimente o governo deixar que os
cidadãos votem livremente, sem coação de qualquer espécie, e veremos quantas
vingam das suas candidaturas.
Rematando
a demostênica oração, num supremo arranco de eloquência pulmonar, o orador
atira para cima da multidão, esta bomba incendiaria:
—
O voto pertence-vos, cidadãos; é o vosso direito e a vossa propriedade, tão
vosso como aquilo que adquiristes com o vosso dinheiro ou herdastes de vossos pais.
Estava
acabado o comício; a multidão entrou a mover se, a tornar-se permeável, a
fragmentar-se como um rochedo que se desagrega.
À
noite, de regresso a casa, tinha o ar satisfeito de quem não perdera o seu dia.
Molhara as goelas, numa tenda, à beira do caminho, e a pinga caíra-lhe bem no
estomago, abrindo-lhe o apetite. Avistou-o de longe a sua Inácia, de modo que
foi só entrar e sentar-se à mesa, onde já fumegava uma valente pratada de
selcas e grão de bico.
—
Então? Era melhor lá não teres ido...
—
Cala-te, mulher, não digas asneiras. Estamos a ser roubados há uns poucos de anos
com esta léria de termos que dar o voto ao governo.
—
Mas sempre ouvi dizer...
—
Cantigas! Lá o disseram alto e bom som, nas barbas do administrador, que o voto
é livre, e ele não tugiu nem mugiu,
—
De modo que...
—
De modo que sendo o voto livre... a gente pôde vendê-lo a quem mais der. Pois
então como canta?...
---
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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