Estávamos na cidade. A vida era totalmente
diversa ali: passeava-se a cavalo pelas ruas do Funchal, tomava-se o ar na
praça da Constituição e à noite admiravam-se as elegantes nas pequenas reuniões
de família.
Como recebem, como se esmeram em tratar os
estrangeiros, as amáveis pessoas daquela terra! Que liberdade e distinção nos
costumes, que franqueza e carinho na hospitalidade! No momento de lhe dizermos
adeus, de a vermos desaparecer para sempre, os olhos arrasam-se de lágrimas e o
coração aperta-se com bem tristes saudades!
A história que se segue, passou-se ali no
inverno de 1836 a 1851.
Se tu, leitor benévolo, falares por acaso com
algum dos filhos daquela ilha, ou com alguma das pessoas que lá estiveram comigo,
dir-te-á que em toda ela não se encontra uma só palavra de verdade. Não
acredites, que pretendem indispor-me contigo.
Eu vou contar-ta tal qual foi, simples,
sentida e breve. Recordas-te ainda daquela jovem senhora inglesa que eu vi quase
como se fora em sonho, no meu primeiro passeio com o teu já conhecido Sir John? Lembras-te que estava para
casar-se e que se esperava a cada momento o noivo? Pois é exatamente dela e dele
que vou falar-te no prologo desta autentica narração.
Era um domingo, tantos de novembro. O sol
brilhava nas ondas azuis do oceano Atlântico, que se enrolavam umas sobre
outras encrespadas por uma fresca viração do norte. Eu tinha acordado na melhor
disposição de espírito. Assim que se abriu a janela, um raio de luz, em vez de
me deslumbrar os olhos, como acontece sempre em princípio de dia aziago,
penetrou lânguida e cortesmente no interior do quarto.
Saudei-o, e declarei-me inspirado. É mister que tu notes que esta declaração era fatal para
o meu amigo C. de C, que contava logo em seguida a ela, com ter de ouvir uns
duzentos versos octossílabos, dispostos em pelotões e que ele detestava com
toda a ingenuidade da sua alma infantil.
À noite esperávamos uma reunião em casa de
uma família inglesa, para onde havíamos sido convidados, por intervenção do
nosso cortes Sir John. Tinha ajustado
vir buscar-nos ele mesmo e com efeito à hora precisa estávamos prontos os três.
O seu toilette simples, mas elegantíssimo,
faria desesperar muitos desses aspirantes a dândis,
que consomem por aí a vida ao espelho. Foi até nessa noite que eu descobri
que era esbelto e gentil o meu amigo. É porque não estava despeitado com ele. Também
era quase a primeira vez que a sua presença não vinha anunciar-me um terrível suplício.
Assim que chegamos foi apresentar-nos à
pessoa que fazia as honras da casa. Era uma respeitável e aprumada lady, que devia estar tocando nos seus cinquenta
e cinco.
Confesso que estive quase a perder o sangue
frio, imaginando ter diante de mim alguma dessas castelãs normandas ou saxônias
de que Walter Scott nos deu perfeito e acabado tipo nos seus romances.
Restabeleceram-me felizmente da súbita e
desagradável impressão, o gesto afável e as maneiras distintas com que nos
recebeu.
Entramos na sala. A inglesa, a adorável Miss Ofélia,
estava ali. O nome fazia-me recordar de uma das mais sublimes criações do
grande poeta inglês.
A sua formosura, esplêndida e provocante como
era, e como o estava sobretudo nessa noite, arrebatou-me ao primeiro lance de
vista. Fui cumprimentá-la. Que sedução nas palavras! Que inflexões tão agradáveis
no metal argentino e fresco da voz!
Quando me levantei dali estava louco,
arrebatado de amor por ela.
E pensar eu que outro homem, o mais feliz de
todos os homens, me havia de roubar dentro em pouco, e para sempre, aquela
mulher, era um suplício a que não podia resignar-me.
— Ali está o noivo, murmurou ao meu ouvido
uma voz conhecida.
Voltei-me, e vi com efeito no limiar da porta
a mais gentil figura de homem que em minha vida tenho visto. Era o jovem oficial
inglês. Ninguém dizia, encarando com aquele tipo, que o céu nublado de Londres
o tinha visto nascer. Os olhos negros e cintilantes, a testa recuada e
espaçosa, o corpo musculoso e esbelto, denunciavam-no antes como pertencendo à
raça peninsular.
Apresentaram-me a ele. Procurei, despeitadíssimo,
ver se lhe encontrava alguma coisa de esquerdo, de trivial ou de feio. Foi impossível. Sir D... era um Apolo, e um gentleman ao mesmo tempo. O diálogo
correu rápido, e sobre coisas indiferentes. O momento era crítico. Miss Ofélia,
sentada num dos ângulos da sala, olhava para ele com aqueles olhos de odalisca que me tinham perdido a mim,
nos delírios da paixão mais frenética e mais nervosa de quantas tem por aí cantado poetas e descrito
romancistas!
Era mister que eu esgotasse aquele longo cálix
de amargura. Tinha de os ver um ao pé do outro, e ébrios de ventura os dois.
Oh! Antony! Antony! Como nesse instante me apareceu
a tua imagem, e como copiei fielmente as tuas posições favoritas! Encostei-me
ao umbral de uma porta, franzi as sobrancelhas, enruguei a testa, desgrenhei os
cabelos, e principiei a deitar um olhar vago e quase delirante à roda de mim.
Como acordei eu deste pesadelo horrível! É o
que ainda me faz arrepiar as carnes quando me lembra. Foi uma dessas explosões
de ridículo que deixam um homem suspenso entre a morte e a vida.
Sir John viu-me, chegou-se a mim, e
disparou-me ao ouvido uma gargalhada diabólica, que me fez saltar como o cadáver
tocado pela pilha galvânica.
— Quer matar-se? disse-me ele com uma ironia
de demônio: olhe que é um trabalho inútil. Quando se tem uma organização assim,
e se é acometido de uma paixão dessas, a morte não se procura no punhal ou no
veneno, espera-se nos efeitos de uma inevitável congestão cerebral.
— Sir John
abusa do seu espírito. Há situações que se devem respeitar— respondi eu,
mordendo os beiços por um impulso de furor cego.
— Deixe ver o pulso. Aflige-me deveras o seu
estado; tem a voz convulsa, a respiração abafada: retire-se a tempo, que a catástrofe
pode vir mais cedo do que se espera.
Sai da sala sem saber como e encontrei-me no
jardim passeando a largos passos...
O ar fresco da noite foi-me pouco a pouco reabilitando;
o sangue corria-me já mais sossegado pelas veias e o coração batia-me com menos
violência.
O vulto de um demônio encarnado na figura de
um inglês surgiu diante de mim...— Então, esta brisa perfumada e fresca, aposto
que lhe há de ter feito bem? Beba um copo do Reno, e pode ser que consiga
salvar-se.
— Oh! maligno espírito que prometeste imolar-me
nos altares da tua ímpia ironia! deixa-me sequer ao menos em paz com o silêncio
da noite e com o aroma das flores.
— E quem diz o contrário? Lembrava-lhe
simplesmente o hok por ser uma bebida
quase refrigerante. Agora o meu amigo pode rejeitá-la, se quiser, para
continuar na sua contemplação extática.
Aquele homem exercia decerto sobre mim algum
poder oculto. Eu devia detestá-lo, e creio que o detestava, mas apesar de tudo
era-me impossível passar sem ele. Dei-lhe o braço e deixei-me conduzir. Encontrei-me
sentado a uma mesa, tendo defronte de mim um copo verde cheio daquele
transparente e perfumado licor.
— Lord Byron costumava suicidar grande parte
das suas paixões com vinho do Reno. O meu amigo acho que está decidido a fazer
o mesmo.
A este tempo ouviu-se o ritornelo de uma valsa. Levantei-me repentinamente.
— Está engajado?
— Não, mas falta-me o ar aqui. Deixe-me ir
até à sala.
— É o melhor meio de abafar de todo; torne a
sentar-se, encha outro copo e asseguro-lhe que daqui a meia hora está em muito
melhor estado de avaliar o baile e até de admirar os encantos da minha gentil
compatriota. Vê? já principia a voltar-lhe a cor; dentro em pouco está no seu
perfeito estado normal.
— Meu caro, deve notar que eu não nasci em
Londres.
— Que quer dizer nisso?
— Quero dizer que não descobri ainda no vinho
a panaceia universal.
— É um epigrama que pretende fazer-me?! Não
importa: à saúde daquele nome querido!
— De qual? perguntei eu ingenuamente.
— Eis aí como são os poetas! E quer que eu
acredite neles! Pois não se lembra que mo confessou há pouco tempo, num momento
de expansão intima, dizendo que se encerrava nele o único e verdadeiro afeto de
toda a sua vida?
Abaixei os olhos suplicante; tinha lavrado a
minha própria condenação. Podia agora tiranizar-me como quisesse; eu esperava
resignado. Felizmente condoeu-se de mim.
— Vamos, se já se não lembra dele, ao de miss Ofélia, então! quem sabe? pode ser
que ainda venha a apaixonar-se pelo meu amigo...
— Como? se ama outro tanto... quanto se pode,
quanto se deve amar um homem daqueles.
— E o futuro?
— O futuro que tem com isto?
— Que pergunta a sua! Que tem? tudo. As
mulheres variam como o vento. Daqui a um ano pode muito bem ser que eu o veja
convertido no seu sweet haert. A propósito
de vento: olhe como sopra impetuoso agora?
Com efeito fomos à janela, e vimos que o céu,
pesado e negro, se achatava sobre o mar que arrancava de espaço a espaço uns
gemidos lúgubres, anunciando próxima a tempestade.
Como aquela mulher era sedutora! Não sei se
ta descrevi já, meu bom leitor — creio que o fiz, mas tão rapidamente que não a
podes ter na imaginação agora.
Os olhos... eu sei? verdes ou azuis não eram,
castanhos tão pouco, negros ainda menos: deviam ser tudo isto para poderem refletir
tantos acidentes de luz, para maravilharem com tão esquisito fulgor.
Às vezes, e vistos decerto modo, atiravam
para a cor brilhante da esmeralda, outras vezes concentravam mais a luz e
pareciam escuros. Por fim eram furtar
cores, legítimos. Nunca os viste assim, porque não há nem se encontram
outros. Imagina-os agora num rosto oval cor de mármore de Carrara, cercados de
negras e bem acentuadas sobrancelhas. Em harmonia, a boca breve e graciosamente
recortada, os lábios frescos como as pétalas do cravo úmidas ainda pelo orvalho
da manhã. A cabeça pequena, e perfeitamente modelada; cabelos loiros e abundantíssimos.
O corpo esbelto, tendo nos movimentos graça e flexibilidade admiráveis. Pés
torneados e estreitos, que no rápido voltear da dança se descobriam e com eles
um fragmento de perna delicadíssimo, no lugar em que apertava a botinha de cetim
branco, e que prometia.... quem sabe o que prometia?
Não vai, nem pode ir com verdade mais adiante
a descrição.
Valsava-se. Eu tinha acabado de falar
seguramente uma hora com o jovem oficial
Sir D... É escusado dizer que a princípio foi preciso contrafazer-me muito
para não lhe mostrar má cara. Passado um quarto de hora o meu despeito cedeu
àquela nobre presença e aos, dotes da sua acabada educação. Falamos muito e com
entusiasmo por fim. O resultado disto foi o mais singular do mundo. Fez com que
visse Ofélia passar por diante de mim valsando com ele, que sentisse a sua voz
murmurar-lhe o que quer que fosse de apaixonado e que ficasse sem me fazer nada
disso a mínima impressão desagradável.
— Parece-me que o hok produziu o efeito que se desejava, disse Sir John batendo-me amigavelmente no ombro. Já não tem no rosto
aqueles sinais de excitação febril que me davam há pouco sérios cuidados.
— A paixão morreu, meu amigo.
— E foi sepultada no último copo do Reno, não
é verdade?
— Enganou-se desta vez. Evaporou-se num aprazível
diálogo que tive, não há meia hora, com
Sir D.
— Que me diz, homem?! Fez a mais importante
descoberta que se tem feito: encontrar nas mãos de um rival bálsamo para sarar
as feridas de um amor infeliz! Não se esqueça de escrever isso; pode tirar daí
partido para um originalíssimo romance.
— Admira-se? não conhece um proverbio que
existe entre nós?
— Bem sei, e vem a ser a base da homeopatia.
Quem sabe se não é essa mais uma maravilha daquela prodigiosa escola.
Neste momento estremeceu a casa, cessou a música,
e pararam repentinamente os dançantes. Um tiro de peça ribombou, dando sinal de
vento de levante. O vendaval bramia
fora urrando furioso por aquelas serras.
Os oficiais de marinha ingleses que estavam
ali, despediram-se à pressa e saíram todos. Ofélia, transparente de susto,
apertava as mãos do seu amante e não o queria deixar partir. Ele disse-lhe
algumas palavras em voz baixa que pareceram
sossegá-la, depois tomou o seu paletó, e
quando passava por Sir John, deu-lhe
a mão, e disse-lhe alguma coisa ao ouvido.
Saímos eram quatro horas da manhã.
À tarde todos os navios tinham desamparado o porto,
menos a corveta, que se conservava fundeada ainda.
O temporal crescia de momento a momento, e os
entendidos diziam que se ela não levantasse imediatamente, viria sem remédio
despedaçar-se sobre o calhau. Pela volta das cinco foi quando principiou a
largar pano.
É mister tê-los visto, para se fazer perfeita
ideia de um temporal daqueles. As vagas da altura de montanhas arremessam-se
umas após outras sobre o costado das rochas, arrancando um som lúgubre que deve
ser semelhante ao bramido do tigre quando cai ferido nos juncais da Ásia.
Na praia, quando rebentam e se alastram sobre
o calhau, soltam no momento em que refluem outra vez para o mar, um rugido
dilatado a que sucede um silêncio breve, mas tétrico, enquanto se levanta a
curva abóbada das outras que seguem a despedaçar-se também.
A corveta era finíssima de vela, mas
levantara tarde e duvidava-se que pudesse dobrar as pontas. A noite aproximava-se e podia haver resultados fatais. Contudo
a perícia dos que a comandavam dava grandes esperanças às pessoas que a estavam
vendo da terra.
Sir John, ao pé de mim, no cais, seguia ansioso
todas as manobras.
— Sabe que esta noite, quando se ouviu o sinal
do vento, senti uma coisa que não sei explicar e eu tenho sempre medo dos meus pressentimentos.
— Dizem que não há risco de vidas, mesmo
quando tivesse de vir despedaçar-se aqui.
— Bem sei, mas que quer? Ao comandante
aconteceu-lhe o mesmo, e conheço poucos homens que sejam capazes de jogar tão afoitamente
a sua vida.
A corveta estava a este tempo quase dobrando
uma das pontas; tão depressa pudesse transpô-la ficava salva. Foi nessa ocasião
que todos os olhos se volveram ansiosos para ela.
De repente
Sir John deixou escapar um grito e bateu fortemente o pé. Uma violenta
rajada de vento que a apanhou em sentido contrário, arremessou-a para dentro
outra vez.
Toda aquela gente que podia prestar para
alguma coisa, por instinto boa e valedora, estava junta na praia.
Era um espetáculo horrível, mas esplêndido ao
mesmo tempo. Apenas se podiam descobrir já as velas da embarcação, que ora desaparecia,
ora se levantava no dorso da onda, para tornar a sumir-se outra vez.
Com o sair da lua, o vento em vez de mudar
como havia esperanças, continuava soprando mais violento e mais ponteiro ainda.
Já não tinham remédio senão tentearem-se em
bordos cada vez mais e mais curtos.
Do meio daquela imensa turba que a olhava de
terra, saíam de quando em quando uns gritos agudos e estridentes, que se
misturavam como sinistro uivar da tempestade. Em poucos minutos a corveta
estava sem mais recurso algum. Deu a popa ao vento, e avançou empavesada
aproando à terra. Então fez-se um absoluto silêncio em toda aquela gente. As
luzes afogueadas dos archotes cruzavam-se em diversas direções, levadas pelos
homens que iam e vinham com os utensílios que podiam servir naquele apertado
lance.
A embarcação estaria a vinte braças de terra.
Quase que desapareceu na curva de uma onda, em seguida veio acima no costado de
outra, que a teve como suspensa uns segundos e que a arremessou depois com a fúria
de um gigante que desse de ombros a uma montanha.
As nuvens tinham-se separado em negras e
pesadas massas; pelas fendas abertas transudavam uns raios da lua, lançando um
clarão sinistro e lúgubre sobre aquela cena, que o espírito mais leviano não
poderia ver sem se sentir profundamente subjugado por ela.
Passados alguns momentos, principiou a
ouvir-se uma confusão de vozes que pretendiam infundir coragem nos pobres náufragos.
Eles obedeciam ainda ao mando dos oficiais. A
rigorosa disciplina não se perturbou nem com a aproximação do momento supremo!
Em pouco tempo estavam quase todos salvos; o
valor e a eficácia com que os de terra os socorriam prevenia tudo. A coragem
sobrava naquela nobre gente. As vagas batiam com o mesmo ímpeto; o navio estava
próximo a despedaçar-se totalmente. Faltava salvar-se um homem, que ajudara a
todos, e que esperava para ser o último. Era o comandante. Deitou ambas as mãos
â corda que estava presa a terra. Nesse momento uma vaga bateu em cheio no
costado do navio e fê-lo pender todo a um lado. A corda estalou, e o mancebo
desapareceu. Alguns marinheiros deitaram-se instintivamente ao mar. Todos foram
vítimas com ele.
A marinha inglesa perdeu nessa noite uma
linda corveta e um dos seus mais bravos oficiais. — Miss Ofélia o homem que
devia ser seu marido.
No outro dia de manhã a vaga azul e serena
veio depor na praia o cadáver do infeliz marinheiro.
Uma larga ferida que tinha na cabeça, fazia acreditar que a sua morte fora rápida.
Um mês depois, miss Ofélia dava grandes cuidados ao médico que a tratava. Dizia-se
que estava tisica. Eu sei que a vi um dia a passear no campo, e estou certo que
a Santa Filomena dos bosques não deveria ter no rosto uma expressão mais
sublime de dor, do que a que se derramara no semblante pálido daquela mulher.
A sua beleza, que até ali era provocadora e
por assim dizer mais própria para falar aos sentidos do que ao coração, abatida
e macerada pela mão do infortúnio, assemelhava-se à imagem de uma virgem mártir.
Uma noite estávamos os três, Ofélia, Sir John e eu. O inglês, que se tinha
sentado ao piano, tocava uma valsa de
Strauss, cujo ritornelo melancólico acordava com a voz fraca e fluente
daquela mulher que me falava da sua vida passada.
Como ela amava! Que tesouros de afeto se
encerravam naquele coração! Se um dia se tornariam a abrir para outro homem! Que
homem tão feliz devia de ser esse! Tudo isto pensava eu, escutando as suas
palavras que vinham tanto da alma, admirando a sua formosura que parecia a de
um anjo descido à terra para consolar os infelizes.
Sei que ao sair dali amava-a outra vez, não
com o frenesi daquela noite em que a vi no baile, mas com toda a admiração de
um amor verdadeiro.
O pior de todos os rivais, meu bom leitor, é o que morreu já. Vivo, resta-nos a
esperança, embora louca, de o podermos vencer; o amor próprio entra-nos a remorder
por dentro, e supomo-nos superiores a ele, e julgamos produzir maior efeito na
mulher; deste modo resta-nos a luta ao menos, de outro não há suplício que se
lhe igual, nem desespero que se lhe aproxime.
Imagina que estás ao pé de uma mulher que
amas, que essa mulher amou antes de ti outro homem, que esse amor não terminou
senão com a morte dele!... a cada palavra de afeto que ela te diga, vê-lo-ás
surgir diante de ti, o maldito defunto! e repetir-te ao ouvido, com voz solene,
as mesmas frases que te seduzem, que te enlouquecem, mas que já o seduziram também
noutro tempo a ele.
Então vem-te de súbito a tremenda ideia que
se essa entidade fantástica para ti se convertesse de repente numa entidade
real para ela, vê-la-ias cair-lhe aos pés arrebatada, esquecer-te, e dizer-lhe:
Sou tua outra vez!
Depois, o respeito que inspira um túmulo: as
virtudes, os dotes físicos e morais que se exageram no morto!... Há momentos em
que o teu anjo mau te inspira a sacrílega ideia de lhe maldizeres a alma e te
impele a ires revolver-lhe as cinzas. Achas-te então abatido a teus próprios
olhos: encontras-te a braços com as misérias das paixões vis, e foges horrorizado
de ti mesmo. Se um acidente qualquer vem entristecê-la, são saudades dele. Se
um dia espontaneamente te protesta que amor assim não o sentira nunca por
outrem, que duvida pungente te dilacerai... Se vivesse, podias esmagá-lo com a
tua felicidade; o orgulho da vitória indenizava-te do passado; assim diz-te
amargamente a consciência que venceste porque estavas só no campo. Oh! que martírio
é esse, nem sequer ao menos nos resta o acre prazer do ódio. Quem se atreve a
ir gravar palavras de maldição sobre a pedra rasa de uma sepultura?!
Eu amava Ofélia, e mais infeliz ainda que na hipótese
que acima aventurei, ela nem sequer se lembrava de mim.
Imagina os dias, as horas de incríveis
torturas que passei. Uma tarde, em que estávamos os dois no jardim, atrevi-me a
dizer-lho. Confessei-lhe que não pretendia ouvir dos seus lábios um protesto de
amor, sabia que era impossível isso, mas queria, no momento de me separar dela
para sempre, revelar-lhe francamente o que sentia.
Ofélia escutou sem se admirar as minhas
palavras, e disse-me depois com um sorriso de adorável melancolia:
— Sabia-o já; sabia-o, e tinha pena, porque eu
não posso amar mais ninguém neste mundo.
Recolhi religiosamente no coração aquelas
palavras: ela estreitou-me a mão e dissemo-nos adeus, certos de que nunca mais
nos tornaríamos a ver. Ofélia partia no dia seguinte para o campo;
aconselhava-lho o seu médico, porque estava gravemente enferma. Eu sabia que
depois disto não poderia encontrá-la mais.
Passaram dois meses. No dia 6 de março o paquete que vinha do Rio de Janeiro, e
que devia conduzir-nos para Lisboa, estava fundeado na bania eram sete da manhã,
e, com aquela exatidão inglesa, anunciou que levantava ferro em sendo meia-noite.
Isto, meu caro leitor, de deixarmos uma terra
onde já o coração se aninhou, é das coisas menos agradáveis que nos podem acontecer
neste mundo.
Sete meses que se vivem num país daqueles,
onde além de grande civilização nos costumes, se encontra um carinho, uma
hospitalidade tal no centro de certas famílias, que quase nos suprem os desvelos
da nossa, não esquecem nunca. Para mim a lembrança de certas pessoas, que ali
me receberam, não se me há de desvanecer do coração, por mais que viva.
Daqui, do meio desta grande cidade, onde tudo
c oco e banal, onde apenas se encontra um ou outro que, escapando à febre
furiosa das paixões e ambições políticas, nos aperte sinceramente a mão, envio
eu a esses com quem aí lidei tão estreitas relações de amizade, em bem sentido adeus.
Às sete da manhã chegou o vapor, à meia-noite
devíamos estar prontos e todos a bordo já.
Não fazia vento e os gemidos abafados que o
mar arrancava de espaço a espaço, pareciam o respirar opresso da natureza. A
mim faltava-me o ar; algumas horas apenas e nem ao menos tornaria a avistar
mais o horizonte que encobria aquela mulher.
Sir John estava no meu quarto: confessei-lhe
tudo; disse-lhe que queria vê-la ainda uma vez, tínhamos tempo, mas era mister
que ele me acompanhasse.
O inglês olhou para mim, com singular
sorriso; depois disse-me:
— É uma loucura, vai fazer-lhe pior.
— Não importa, quero.
— Mas eu é que não posso acompanhá-lo.
— Por quê? perguntei eu admirado. — Um dia lho
direi.
Calei-me, fiquei como se uma mão poderosa me
tivesse derribado.
Pouco depois de meia-noite o vapor acendeu os
seus dois globos corados, e avançou direito pela bania. Eu estava encostado à
amurada do navio e sentia ainda nos ouvidos o eco daqueles adeuses que me haviam sido proferidos entre as lágrimas da
despedida.
O vapor dobrou os cabos, a cidade desapareceu e eu dei de frente com a ossada
escalvada e negra das rochas. Desci para o meu camarote e dormi um sono pesado
e sem sonhos até às sete do dia seguinte.
Quando me levantei já Sir John passeava na tolda.
— Por São Jorge! exclamou ele assim que me
viu, o meu amigo vem pálido como um cadáver: aqui tem, saúde a majestade do
pleno oceano.
Não lhe respondi uma palavra: fui-me até à popa,
e pus-me a olhar para a Madeira que apenas se distinguia como uma nuvem no horizonte.
O norte fresco sublevava as ondas azuis-ferretes
iluminadas por um sol vivíssimo. Com efeito, aquela vista, aquela atmosfera,
arrancavam-me do meu horrível pesadelo.
O navio estava atochado de ingleses e brasileiros.
São as duas raças mais opostas que ha. Uns brutalmente circunspetos, gastando
três palavras e meia por dia, mesmo com os seus particulares amigos. Os outros
sempre com um sorriso estereotipado nos
lábios, dirigindo todas aquelas pieguices açucaradas que produzem ânsias gástricas.
A calça do brasileiro é fabulosamente larga, a do inglês excessivamente
estreita. A voz do primeiro em falsete, e com uns requebros que se assemelham
aos do lundum chorado: a do segundo
um grunhido que mais se articula do que se pronuncia e áspero como o seu caráter
soberbo. Um enfim quase preto, e outro deslavadamente branco. Quando estes dois
tipos se encontravam no tombadilho, ninguém imagina o delicioso contraste que
faziam.
Entre os ingleses havia um que me surpreendeu
logo à mesa do almoço. Foi Sir John
quem me disse que era seu compatriota e que embarcara conosco na Madeira. Eu
primeiro tomei-o por um desses minhotos que
vão descalços para o Brasil e que voltam dentro de poucos anos senhores de um
milhão de cruzados.
Era a mais extravagante figura de homem que
se pode imaginar. Inglês até aos ombros, isto é, cara vermelha como uma
malagueta e pescoço entaipado numa disforme gravata branca: o resto brasileiro
legitimo; grosso cordão de oiro posto em repetidas dobras, uma espécie de
quinzena de cotim de linho e calças da mesma fazenda.
O que me deu mais nos olhos foi o temível
chapéu que trazia, preso de um lado por uma larga fita de linha; a cor era já
assas duvidosa, as abas monstruosas e a copa tinha seguramente um côvado de
altura.
— Conhece este estafermo! perguntei eu a Sir
John.
— Pessoalmente não, mas sei que é de uma família
nobre e que tem dez mil libras de renda por ano.
— Haverá alguma mulher que o queira, apesar
disso?
— Duvida, meu caro amigo? disse-me Sir John rindo.
— Eu sei? parece-me que sim. Continuamos a
passear ambos sobre o convés.
O meu amigo C. de C. tinha-se retirado para
baixo padecendo já os horríveis incômodos do enjoo, e a quase todos os nossos
amigos havia acontecido o mesmo. No fim de um largo silêncio disse eu para o
meu companheiro:
— Ora vamos, a que se apega esse seu pertinaz
cepticismo, de onde nasce essa exclusiva falta de fé nas mulheres? Na sua vida
tem dois fatos já; Matilde não morreu de paixão? Ofélia não lhe vai talvez
acontecer o mesmo?
O inglês parou e fez um ligeiro movimento de
cabeça.
— Meu caro, Matilde tinha o peito fraco,
senão talvez se tivesse salvado, enquanto a
miss Ofélia pode ser que o ar do campo a restabeleça em breve.
— E restabelecida que esteja?
— Provavelmente casa e vive muito feliz com
seu marido.
— Sir John
é um homem diabólico, não acredita nem no céu nem na terra!
— No céu ainda lhe não disse que descria, na
terra há de vir tempo em que lhe aconteça pouco mais ou menos o mesmo do que a
mim.
— Paramos de repente rindo a bandeiras
despregadas; uma rajada de vento apanhou em cheio o homérico chapéu do célebre inglês,
e arremessou com ele para o pleno oceano. O infeliz deitou-lhe um olhar saudoso
quando o viu boiar nas ondas e desceu vagarosamente as escadas escutando o som
da sineta que tocava para o jantar. Quando voltamos outra vez acima, vemo-lo a
ele andando às corridinhas de um para outro lado e trazendo na cabeça outro
chapéu tão semelhante ao primeiro que nós estivemos quase a acreditar que seria
o mesmo.
No segundo dia de viagem até às quatro da
tarde tinha perdido cinco chapéus; com outro da mesmíssima forma que trazia
completava-se a meia dúzia.
Isto era num sábado; no domingo pela manhã devíamos
avistar a terra. Nesse dia ao jantar Sir John
ficou colocado diante de mim. No lugar em que estava foi obrigado a trinchar
para três brasileiros, que tinha à direita e dois compatriotas que lhe ficavam
à esquerda. O infeliz tendo de satisfazer às dispendiosas necessidades daqueles
vigorosos estômagos, passou toda a mesa sem atravessar bocado.
Os criados tinham-se esquecido de lhe trazer
a lista no princípio do jantar, à sobremesa puseram-lha defronte; Sir John agarrou dela, leu-a, e disse-me
com uma expressão indefinível:
— Aqui tem, veja o meu amigo tudo quanto eu
poderia ter comido!
Às onze da manhã do dia seguinte descobrimos
o Cabo da Roca, às duas estávamos na
bania de Cascais.
Que sensações tão diversas me agitavam nesse
instante o espírito! Tornava a ver a pátria, ia abraçar dentro em pouco os
meus.
Isto fazia-me estremecer de alegria, mas a
imagem pálida e triste de Ofélia vinha perturbar-ma, e cerrar-me
melancolicamente o coração.... Aquela mulher estava cercada para mim de uma
aureola sagrada de beleza, de paixão e de dor.
Passeava agitado pelo tombadilho, e respirava
a largos tragos a viração fresca do norte. Toda aquela gente tinha vindo para o
convés; as muletas que traziam os
pilotos da barra bordejavam diante de nós em diversas direções, e esta cidade
erguia-se das águas em todo o esplendor da sua beleza.
Sir John devia de estar nesse momento ao pé
de mim; pressenti-o, voltei-me e com efeito dei com ele que estava encostado à
borda do navio.
Era outro homem; aquela sarcástica e irônica
expressão que tinha de ordinário impressa no semblante, desaparecera
totalmente. Os sobrolhos carregados, franziam-se, anuviando-lhe a fisionomia, e
as rugas profundamente acentuadas da testa espaçosa, contraídas então,
denunciavam-no como mergulhado em sérios pensamentos.
Foi singular a impressão que senti vendo-o
assim, quis quebrar o silêncio, reteve-me um receio involuntário; decidi-me por
fim.
— Sir John,
vamos-nos separar em breve; não será ainda tempo de me explicar a razão por que
se quebraram as suas relações com Ofélia? Lembre-se que mo prometeu.
O inglês sobressaltou-se e olhou para mim abstrato;
vi que não tinha entendido nada. Houve um momento em silêncio. Foi ele quem o
quebrou.
— Diga-me, ama deveras aquela mulher e acredita-a
casta como uma virgem e inspirada como uma santa?
— Não lho confessei já?!
O pungente e irônico sorriso que lhe havia
desaparecido dos lábios, tornou-lhe a adejar por eles, mas como pronunciado e
amargo desta vez!
— Tem razão! há fisionomias de anjo que não
podem mentir. Nós os céticos, é que vemos através dessas encantadoras existências,
as misérias das paixões humanas agitando-se em toda a sua hediondez, vemos mal!
Senão, quem nuns olhos transparentes que estremecem à mínima sensação, deixaria
de ver o espelho da alma nobre, cândida, apaixonada?! Nós, nós só, porque um
poder maligno nos impele a isso.
Isto parecia mais que ele o dizia a si próprio
do que a mim. Eu-sentia o fel que transudava de cada uma daquelas palavras, mas
não me atrevia a responder.
Uma gargalhada desconchavada e estridente
dada por Sir John ao pé de mim,
fez-me voltar de relance; o sexto chapéu do impossível
inglês tinha ido banhar-se nas águas verdes do nosso pátrio Tejo. Era com efeito
o último; o desgraçado vendo que teria de desembarcar em carola, levou impetuosamente ambas as mãos à cabeça a ver se podia
agarrá-lo ainda, mas não encontrou já senão as enormes orelhas, as quais azamboou
com duas furiosas punhaladas. Sir John
continuava a rir como um perdido, contudo conhecia-se que era mais um riso
nervoso e contrafeito do que uma explosão espontânea.
Parou de repente, agarrou-me no braço e
apontando para o inglês que apenas se podia tentear nas pernas, disse-me:
— Ali tem o que vai ser dentro de três meses marido
de Ofélia; a partida para o campo foi no dia em que se contratou o casamento.
Continue agora a acreditá-la santa, e até mártir, se quiser.
Depois disto, quem chega de uma viagem, tem
mãe ainda, e sabe que o espera anelante, vai arremessar-se nos braços dela, e
exclamar interiormente
— Aqui está o único amor deste mundo!
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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