O senhor cura
O senhor cura
era o homem mais caritativo e generoso que havia na aldeia.
Velho já, os
cabelos brancos como a neve, quando o viam atravessar as ruas, a cabeça trêmula,
o passo incerto, a velha batina de pano grosseiro cheia de rasgões e remendos,
os aldeões acompanhavam-no com olhar respeitoso e cumprimentavam-no, sorrindo.
As crianças
corriam a tomar-lhe a bênção. Ele afagava-as, alisando-lhes os cabelos;
perguntava pela saúde dos pais e dava-lhes moedas em cobre. Todos o amavam.
Quando uma
rapariga se ia casar, partia o cura a visitá-la, a dar-lhe bons conselhos, como
si fosse pai. Se a moça era pobre, o cura ia de casa em casa angariando esmolas
e presenteava-a com o enxoval e objetos úteis.
À cabeceira do
doente, era, ao mesmo tempo, médico e enfermeiro: — preparava as tisanas e
aplicava-as. No leito do agonizante era confessor e amigo: — aconselhava ao
arrependimento, ensinando o caminho do céu, e chorava aos primeiros anseios da
agonia.
Nas horas
vagas, depois de haver rezado e feito as suas obras de caridade, ensinava às
crianças a doutrina cristã e dava-lhes gulodices.
À noite, quer
nas chuvas do estio ou no frio do inverno, ia visitar a miséria da aldeia. A
este dava o azeite para a lamparina, àquele um pedaço de pão, e a todos, em
geral, bênçãos, conselhos e carinhos.
E no entanto,
quanta vez a velha criada que o servia não o ia encontrar sentado à beira da
estrada, morto de fadiga e quase moribundo de fome! Ralhava-lhe então com
palavras afetuosas e amargas:
— Isto já não
tem jeito! Viver por aí a socorrer a pobreza, a pedir esmolas para dar aos
outros e não se lembrar de que é pobre também, que está com a batina em trapos,
o calçado roto e que em casa não há nem uma côdea de pão para a nossa boca! É de
mais! Vamos, saia daí, apoie-se em meu braço e vamos para casa! Até parece que
Deus vira seu santíssimo rosto!
E lá iam os
dois, estrada fora, de braços dados, como dois mendigos.
Era assim o
pobre cura — bom até à dedicação, caridoso até ao sacrifício.
Houve um dia
em que uma febre contagiosa e mortal atacou os habitantes do lugar.
Os ricos
fugiram; alguns abandonaram suas casas; muitos, porém, preferindo morrer da
febre a sofrer miséria em terra estranha, ou, talvez, na esperança de ser
protegidos pela providência, deixaram-se ficar na aldeia, a trabalhar.
Quem passava
pela rua ouvia no interior das casas gemidos de dor e gritos de desespero.
O cura, então,
saiu, foi de casa em casa em socorro dos doentes, consolando os aflitos,
confessando os agonizantes, sempre solícito, sempre carinhoso, sem se importar
com o cansaço que lhe invadia o corpo e nem com a fome que lhe devorava as
entranhas.
Houve um
instante em que, não podendo mais sofrer o cansaço e a fome, se deixou cair no
chão, e, tirando do bolso um pedaço de pão duro, dispôs-se a comer.
Um mendigo,
que passava, pediu-lhe a bênção e disse-lhe:
— Senhor cura,
estou quase morto de fome e mal posso sustentar-me nas pernas. Socorrei-me.
— Toma, pobre
homem, este pedaço de pão. É o único que me resta, mas a minha fome está satisfeita.
— Toma.
O mendigo
comeu e partiu.
Minutos depois
o velho cura tinha morrido.
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Francisca Júlia César da Silva Münster (1871-1920)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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