O Sangue do Vigário
A geada caíra abundantemente durante
a noite; ao romper da aurora os campos alvinitentes pareciam de prata e das
grotas erguia-se densa neblina, que semelhava véu enorme, com que a terra ao
despertar ia cobrir-se para evitar o olhar indiscreto do sol. Pelas encostas,
pelas lombadas, pelos cumes dos montes desdobrou-se ela, arrastada por invisível
mão até os píncaros da serrania distante, envolvendo em rápidos minutos a terra
nas suas dobras profundas. Através dela destacava-se, como apagada iluminura de
um quadro, a cruz da igreja e o grupo de casinhas de São Bom Jesus dos Perdões.
O silêncio em que se quedava a
natureza era profundo! nem o canto da patativa; nem o estrídulo do grilo, que o
frio enregelava; nem o rugir da cachoeira, cuja voz a névoa ensurdecera; nem o
mugido do touro, oculto por entre as árvores da restinga, se ouviam; o homem,
mesmo o homem estava sepultado no sono ou tiritava ao fogo do lar. Como enorme crisálida
a terra esperava o momento da sua metamorfose. Os germens da vida estavam
encerrados em completo quietismo nas dobras desse inerte casulo – que ao
romper-se ostentaria ao mundo formosa borboleta, ou venenoso inseto: – a
virtude, ou o crime!
O som de uma aldraba e o subsequente
ranger de uma rótula erguendo-se quebraram o silêncio e pareceram querer
despertar a solidão. Cabeça de mulher, cujos negros cabelos e moreno semblante
contrastavam com a alvura da neve, banhando-se na neblina, como ave que
desperta antes da aurora e recolhe apressada a cabeça friorenta sob a quente
asa, assim ela espreitou à direita e à esquerda cerrando incontinente sobre si
a gelosia. Em seguida a porta da casinha abriu e um negro vulto esguerou-se por
entre as casas raras e desertas ruas, sumindo-se em breve, envolto pela névoa,
como batel, perdido em meio da cerração.
No quarto interno da casa bruxuleava
a luz de uma candeia e no leito revolto e abandonado sentou-se a solitária e só
moradora daquela habitação.
Cismava.
A melancolia imprimia-lhe ao
semblante um tom branco e simpático; na lisa fronte estampava-se a mocidade; no
olhar lânguido da marabá lia-se a paixão; nas faces abatidas o sofrimento e na
palidez dos lábios o pesar. A longa e negra cabeleira descia por sobre os ombros,
mal cobrindo os seios erguidos, que alva e negligente camisa em abandono
deixava entrever; as mãos emagrecidas, senzeladas a primor, cruzavam-se no
regaço, desenhando as dobras da saia as linhas corretas das pernas, terminadas
em pés pequenos e mimosos. O olhar estava parado e fixo no chão.
Cismava.
O lábios murmuraram por fim,
parecendo proferir uma prece, que terminou em prolongado e dolente suspiro.
Ergueu os olhos do chão e foi pousá-los
no crucifixo, pendurado à parede; embebendo-se na contemplação da sagrada
imagem, casando a sua magoa à dela, estampada no rosto ensanguentado.
Deixou-se resvalar pela borda do
leito e caiu de joelhos.
Os olhos inundaram-se de lágrimas,
que, batidas pela luz avermelhada da candeia, aljofraram-lhe o semblante como
fios de perolas.
– Meu Deus! exclamou; aqui na Tua
presença, esquecida do Teu poder infinito, ofendi-Te, Senhor, tornando-me
indigna do Teu perdão e da graça da Tua Mãe Imaculada Maria Santíssima. Pequei,
Senhor. Cega pelo demônio, não Te vi, surda pelo pecado, não Te ouvi, doida
pelo amor, não pensei em Ti. Perdoa-me, Senhor. Sinto que as minhas entranhas
se corromperam e que nelas gerou-se o filho do pecado! Não sou digna de Ti; mas
deixa, Deus Misericordioso, germinar o fruto do meu ventre, que ele Te dará em
dobrado amor, o que perdeste com o meu crime e o meu pecado. Perdoa-me, Senhor.
Abençoa-o meu Deus.
As lágrimas corriam em torrentes. E
tão puras e tão sinceras brotadas do rochedo da fé, ao toque da vara mágica do
arrependimento, que limparam o seu coração de toda a macula do erro.
Aos olhos da pecadora arrependida a
Santa Imagem animou-se, uma gota de seu sangue liquefez-se, rolou pela sagrada
face e tombou sobre o seio da criminosa, imiscuindo-se com as lágrimas tão
devotamente derramadas.
A Madalena estava salva!
Bendito o fruto do seu ventre.
As lágrimas da mãe arrependida e o
sangue do Deus Clemente constituíram as primeiras moléculas do ser que se
gerava e as orações maternas, a humildade da virtude, o pensamento volvido
sempre para o Céu, insuflaram-lhe os primeiros movimentos do espírito vital.
Nasceu o menino. Sobre o coração dele
estava estampada a imagem de uma gota sanguínea: era o sinal de que pertencia a
Deus, o emblema do novo Cruzado.
A infância passou-a ele recebendo as
carícias, ouvindo as orações maternas no santuário da família, ou nos degraus
do altar.
Fez-se homem e fez-se padre.
Dedicou-se à terra de seu berço,
amando-a, com esse amor severo dos juízes incorruptíveis, cheio de santas
indignações, cóleras tremendas; que não se abatem nem contra a ferocidade dos
crimes, nem perante as multidões enfurecidas; cóleras que só se acalmam para
dar lugar ao perdão, prêmio dos regenerados! Cóleras divinas!
Em seu peito havia um oceano de amor
placidamente folgaz ao sopro das brisas da caridade; impetuoso, rugidor quando
batido pelas tempestades infernais em revolta contra Deus dos vícios e dos
crimes.
Estes tinham então pasto abundante
na ambição dos homens, instigada pelo ouro, que a terra mineira com exuberância
oferecia das suas entranhas; na bruteza dos tempos; na origem adventícia dos
indivíduos, que de longe, trazidos pela sede de riquezas, vinham saciá-la nos córregos
auríferos dos Gerais.
Aventureiros d'aquém e d´além mar,
por todo o Vale do Rio das Mortes, pelos serros alpestres de Ouro Preto, pelos territórios
de Ouro Branco, pelas campinas de Paracatu, por Sabará, por toda parte enfim
onde uma pisca de ouro faiscava ou uma simples suspeita
o denunciava, arrojavam-se com fúria insana, resolvendo as entranhas da terra,
rasgando as serras, desviando o leito dos rios, como se fosse um povo de Titãs
amontoando montanhas para escalar os céus!
Todas as religiões, todas as raças,
homens de todas as origens, representantes de todas as nações; o branco, o
negro, o pardo, o mameluco; todos os sexos, todas as idades; o rico, o pobre,
confundiam-se sacrificados ao Bezerro de Ouro!
O lavrador, esquecido de seus plácidos
serões, o artesão deslembrado de seus alegres cânticos, o padre despedaçada a
batina, o pastor abandonado o rebanho, o homem sem família, a mulher sem
esposo, a criança sem inocência mergulhavam-se nas betas profundas, certos de aí
acharem a sepultura, se as montanhas esboroassem, ou se torrentes subterrâneas
surpreendessem-nos.
Naqueles antros reinava feroz
alegria, satânicos prazeres, diabólicos amores. A luxúria expelia o pudor e a
flor da virgindade ainda em verde botão era colhida! O latrocínio, o roubo e o
assassinato eram as ultimas consequências desse esforço cruel e a miséria a
derradeira estrofe desse terrível poema de infernal ambição!
São Bom Jesus dos Perdões também
teve o seu dia.
Homens desconhecidos, esquivos,
suspeitosos apareceram em Bom Jesus. Dizendo-se lavradores percorriam as
ribeiras, sondavam os vales. Eram os primeiros exploradores. Onde o esmeril
formava o seu negro deposito as enxadas cavavam a terra, e as bateias
revolviam-na. As piscas e as folhetas eram ocultadas, guardando-se a mais
profunda reserva. O ouro, porém, tem uma voz misteriosa, que se denuncia por
arte de magia desconhecida, atrai para junto de si todos os que se deixam
seduzir pelo seu brilho e dominar pela ganância da sua posse!
As primeiras fecundas bateadas no
São Bom Jesus foi como o toque de rebate, que pôs em alvoroto toda sua
população e os mineiros que em outras e longínquas partes ouviram a fama do
novo descoberto.
Em pouco tempo a azáfama, o bulício,
o tumultuar de aventureiros quebraram a paz do pequeno povoado, chamado às lavras
a população inteira da terra.
O padre de São Bom Jesus contemplava
aquele espetáculo com mágoa do seu coração.
O templo ficou deserto de fieis, os
lavradores da santa seara, dominados pelo demônio da ambição, deixaram-na sem
cultivo e o fruto celeste perdia-se no abandono, sem que houvesse terreno para
semeá-lo. O sino da capela em vão chamava os filhos de Deus à oração. Os passos
do vigário só ressoavam na deserta nave. O santo holocausto era feito sem que os
remidos por Jesus confessassem a sua culpa,
a sua grande culpa. A benção do
celebrante perdia-se no espaço; porque uma só cabeça não se curvava para recebê-la.
Percorria ele as ruas desertas e silenciosas
do pequeno arraial; e ao sair ou ao recolher-se a casa, não ouvia as saudações
amigas e respeitosas de tempos ainda bem próximos. As negras cruzes pregadas
sobre as portas cerradas das casas pareciam transformar aquele risonho sitio em
estranho cemitério, como se cada habitação fosse um mudo sepulcro. Reinava ali
a paz dos mortos, o silêncio das necrópoles!
Meditabundo, oprimido por
pensamentos dolorosos dirigiu o vigário os passos para as minas, onde a
multidão aglomerada lutava com a terra para arrancar-lhe do seio a oculta
sementeira de tão grandes males.
Aí chegando, o espetáculo que seus
olhos contemplaram foi horrível! O espírito recusava aceitar os conhecimentos,
que lhe forneciam os sentidos alterados. O coração recebia punhaladas e o
pensamento chocava-se ao acumulo de horrores sobre horrores! A alma do padre
confrangeu-se, como se quisesse evolar-se: por fim o seu peito rugiu como o
leão encarcerado e a palavra vibrante de cólera, tremente de indignação
retumbou como a voz de Jeová, saída do meio da sarça ardente para condenar as
prostituições do seu povo.
"Abandonaste Deus pelo Demônio,
povo, bradou ele, sacrificaste a pureza da tua vida à louca ambição de possuir
o que nunca careceste! Marido, onde está tua mulher? mulher, onde está o teu
esposo? pai, onde está tua filha? filha, onde está tua mãe? Ah! não sabeis;
desceram para as trevas do Inferno! Deus, retirai a cegueira dos olhos destes
infelizes, abri-lhe os ouvidos à verdade, a alma ao bem. – Ouro, demônio, fugi!"
Ao proferir esta exclamação os
veeiros desapareceram da terra, as bateias só deram cascalho. O ouro fugira!
Um grito de espanto e logo após um
brado de vingança partiu do peito da multidão indignada.
Apupado, ridicularizado como Jesus,
ferido, sangrento, levado de rojo como Cristo pelas estradas e ruas do Bom
Jesus, o padre, à porta da casa onde o filho de Deus perdoara a mãe criminosa
parou, ergueu-se, fazendo recuar a multidão, que vociferava.
Com o sangue, que manava da sagrada
coroa desenhou na porta da habitação a imagem dela e com o que do peito corria,
escreveu o seu nome.
"Não és digna, terra maldita de
possuíres tão formoso nome. Não durarás mais que este sangue, que teus
renegados filhos derramaram. Desaparecerás com ele: cada uma das suas partículas,
que o tempo diluir e apagar corresponderá a uma desagregação do teu solo, até o
teu inteiro desaparecimento da face terra."
Soltou o derradeiro alento da vida e
expirou.
***
A sentença do padre cumpriu-se. São
Bom Jesus dos Perdões viu as suas casas caírem uma a uma. O solo roto, fendido
pelas erosões das águas de ano em ano modifica-se, rompendo-se em profundos
sulcos. A esterilidade mata-o!
O sangue do vigário clama vingança.
---
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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