O sabiá doente
Era pequeno
ainda o sabiá, quase implume, quando caiu do ninho onde nasceu. Curioso,
invejando o voo de outros passarinhos menores que ele, tentou também voar: —
abriu as asas mal empenadas, fez um esforço e caiu. Ao cair, foi resvalando
pelos galhos, pelas folhas da árvore, de modo que a queda foi pequena e não o
magoou.
Quando caiu na
grama, começou a ensaiar o voo para subir de novo até ao ninho, arrependido de
o ter deixado, piando, piando de medo.
Um homem, que
passou, levou-o consigo.
O passarinho
cresceu preso na gaiola.
À tarde,
quando os outros pássaros cortavam o ar em busca do repouso, ele sonhava com a
tepidez do ninho escondido num galho, perdido no meio do bosque. Léguas em
redor tudo era verde, coberto de folhagens que o vento agitava.
Além,
escorregava entre fileiras de murtas, seixos. O ar livre do campo, a frescura
das manhãs, o marulho das folhas, tudo acudia ao seu espírito, o fazia sonhar
por muito tempo, arrancando-lhe da sonora garganta as mais angustiosas queixas.
E com a
cabecinha no ar, os olhos cerrados, os nervos agitados de comoção, traduzindo a
tristeza que o invadia, cantava, cantava horas inteiras, às vezes triste,
alegre às vezes, executando escalas e gorjeios ou prolongando numa nota toda a
amargura de sua alma.
Os que lhe
ouviam o canto, paravam a escutá-lo, encantados.
Assim viveu o
sabiá por muitos anos, sempre preso, sem conhecer a liberdade de que gozam os
outros pássaros que ele via através da grade, a uma vertiginosa altura,
espalhados pelo azul.
Voar! Quem lhe
dera também um dia em que a porta da prisão amanhecesse aberta, fugir, e, de
asas entendidas, voar, voar, ir muito alto, muito alto, e gozar, até à
embriaguez, da vertigem de luz que deve haver lá em cima!.
E o pobre
pássaro sentia no corpo estremeções de ânsia, agitações de desejo, e abria as asas;
mas a ilusão desfazia-se e ele fechava-as de novo, recolhendo-se à sua tristeza
de encarcerado.
Então pensava
que, quando ficasse velho e sua voz se tornasse rouca, haviam de apiedar-se dele
e dar-lhe a tão desejada liberdade. Vivia dessa esperança.
Envelheceu.
Sua vista foi-se escurecendo aos poucos. O sabiá estava cego.
Uma manhã,
passeando pelo chão da gaiola, aproximou-se da porta, como de costume, a sentir
se estava aberta.
Estava aberta
a porta.
Pôs a
cabecinha de fora, aspirou o ar, agitou o corpo, sacudiu as asas entorpecidas
pela velhice e quis voar. Mas, como já estava cego, teve receio de bater-se
contra a parede, no ímpeto do voo, em vez de tomar a direção do campo; então
recolheu-se de novo e chorou abundantemente .
Daí em diante
nunca mais da sua sonora garganta saíram os gorjeios de outrora.
---
Francisca Júlia César da Silva Münster (1871-1920)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Francisca Júlia César da Silva Münster (1871-1920)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...